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A graça e o amor para além da lei. Marcelo Barros

Quem nos ensinará hoje a olhar a mulher como Jesus olhou?

Temos que sonhar com uma Igreja mais justa e mais igualitária em relação à mulher. Só retomando a igualdade do discipulado de Jesus e a autonomia das comunidades para celebrar a ceia e os sinais do amor divino que superaremos a marginalização estrutural da mulher na Igreja.

Nesse 5º domingo da Quaresma (ano C), lemos no evangelho o encontro de Jesus com a mulher que, como diz o evangelho, foi surpreendida em flagrante de adultério. (João 8, 1 – 11). Parece que não é um texto original do quarto evangelho. Pode ter sido acrescentado, quando todo o evangelho já estava escrito. Seja como for, corresponde a uma atitude fundamental de Jesus e, por várias razões, o encontro de Jesus com a mulher adúltera parece ter base histórica. (De um modo ou de outro, os quatro evangelhos guardam a memória dessa cena). Conforme João, a cena se passa no contexto da festa das Tendas (como continuação do capítulo 7). O espaço é o templo de Jerusalém e acontece de manhã bem cedo, de madrugada.

A festa das Tendas (Shukot) recorda a caminhada dos hebreus no deserto e retoma a esperança da libertação definitiva. O fato de que, no quarto evangelho, a cena acontece no templo é muito significativa. O templo que deveria ser o local da renovação da aliança de Deus com o seu povo e o sinal da presença divina para proteger os seus filhos e filhas se torna local de julgamento e condenação das pessoas consideradas pecadoras.

Os escribas e fariseus (sopherim e perushim) eram considerados os sábios da comunidade de Israel. Consideravam-se justos e guardiões da lei e da ordem divina. Conforme essa lei, o adultério era considerado pecado grave (Lv 20). A primeira coisa que me incomoda no texto é ver como os religiosos da época querem a todo custo condenar Jesus e não fazem isso com instrumentos do mal. Ao contrário, se servem do que há de mais santo: a própria lei de Moisés que o Judaísmo e o Cristianismo creem ter sido revelada por Deus. O texto deixa claro que, para os doutores da lei que a trouxeram a Jesus, a mulher e o seu adultério pouco importavam. Ela servia apenas como instrumento ou arma para que os religiosos pudessem pegar Jesus e o acusar perante o sinédrio dele ser contra a lei de Moisés. E para isso se serviam da coisa mais santa, a lei. Os religiosos usam a lei de Deus para matar a mulher e para poder acusar Jesus como desrespeitador da lei.

A lei de Deus se insere nas culturas humanas e por isso assume costumes humanos que na época e hoje nem sempre são os mais abertos. A sentença de apedrejar uma mulher que cometesse adultério era para salvar a instituição do casamento. Mas, de acordo com a mesma lei, o homem podia ter várias mulheres. E pela lei do levirato, a mulher deveria ser dada ao parente do marido morto como se fosse uma propriedade que ele herdou.

O evangelho, como está escrito, não discute a culpa da mulher. Já parte do princípio: ela é culpada. Ou Jesus concordava que, de acordo com a lei, apedrejassem a mulher ou se posicionava contra a lei de Deus.

Jesus não entra no jogo dos adversários. Não responde imediatamente. Inclina-se e começa a escrever no chão. É uma atitude estranha. Nos quatro evangelhos, é a única vez que Jesus age assim. Ele se nega a se concentrar no mal. Enquanto aqueles homens viam ali uma mulher adúltera, para Jesus, ela era apenas e sempre uma pessoa humana, portanto, filha amada de Deus. Na Idade Média, o Mestre Eckhart, um dos mais importantes teólogos ocidentais, ensinava: “Deus não olha o mal. Não se interessa por nossos pecados”. Jesus quer outro modo de relação entre nós e Deus. Por isso, ele reage dizendo: “Está bem. Então, quem de vocês não tiver pecado, atire a primeira pedra”.

O que Jesus fez foi revelar a hipocrisia profunda que havia na atitude dos escribas e fariseus que condenavam a mulher. Aqueles homens sábios e religiosos foram até honestos. Saíram todos, um por um, como diz o evangelho: a começar pelo mais velho. Hoje, em dia, há religiosos que, em nome da lei de Deus, condenam as pessoas que eles julgam pelas aparências. E nem sempre têm a honestidade de “sair”, isso é, de mudar de postura, quando fica claro que eles não teriam moral para condenar ninguém.

Será que esse mundo de denúncias morais que desabam sobre o clero e a hierarquia tornarão toda a nossa Igreja (clero e leigos) mais humilde, mais misericordiosa com os que são considerados pecadores. Ou será que os doutores da lei continuarão a esconder suas fraquezas pessoais sob a máscara do poder e do poder divinizado em nome de Deus?

No caso contado nesse evangelho, Jesus se encontra sozinho, ele e a mulher. Ela confirma que ninguém a condenou. Jesus simplesmente lhe diz: Vai em paz e não peques mais.

Na época de Jesus, as mulheres eram vistas como fonte de impureza e ocasião de pecado e sedução. O próprio João Batista, o profeta que foi mestre de Jesus, foi morto por mando de uma mulher Herodíades e pelo pedido de sua filha Salomé. Os grupos judaicos quando construíam as sinagogas faziam uma grade e as mulheres assistiam o culto no sábado por trás das grades. Jesus é diferente. Vivia rodeado de mulheres. Maria Madalena. As irmãs Marta e Maria de Betânia, várias discípulas que o acompanharam desde a Galileia até Jerusalém, sem falar nas mulheres doentes e até prostitutas de aldeia que se aproximavam dele. Nenhum outro profeta daquele tempo era assim. Jesus olha as mulheres com olhos diferentes. Ele as trata com ternura. Defende sua dignidade. Até as acolhe como discípulas. O quarto evangelho fala pouco das mulheres. Mas, nas poucas vezes que as mulheres aparecem como protagonistas, são sempre sinais e profecias da ternura divina. As cenas mais afetuosas do evangelho são aquelas nas quais aparece uma mulher.

Quem nos ensinará hoje a olhar a mulher como Jesus olhou?

Temos que sonhar com uma Igreja mais justa e mais igualitária em relação à mulher. Não se trata apenas de abrir os ministérios para as mulheres e sim de voltar ao evangelho e acabar com o sistema de duas classes na Igreja, os ordenados e os/as não ordenados/as.

Só retomando a igualdade do discipulado de Jesus e a autonomia das comunidades para celebrar a ceia e os sinais do amor divino que superaremos a marginalização estrutural da mulher na Igreja. E só assim, a Igreja sendo exemplo de novo modo de ser no mundo conseguiremos lutar contra a violência doméstica e tantas situações nas quais a mulher é vítima.

Essa cena do Evangelho me lembra um fato acontecido na vida de Dom Helder Camara, já ancião e arcebispo emérito de Olinda e Recife. Um dia, uma mulher bate à porta do Dom. Ele a acolheu e ela lhe falou:
– Dom Helder, eu sou prostituta, mas amo muito a Deus. Toda sexta-feira santa, por amor a Jesus, nosso Senhor, eu vou à penitenciária de Itamaracá e me ofereço ao prisioneiro mais só e abandonado que não tenha ninguém que lhe faça companhia. Há vários anos, faço isso. Mas, nesses dias, uma amiga, prostituta como eu, me disse que, ao fazer isso, eu ofendo a Nosso Senhor. Ele está muito magoado comigo. O que o senhor, Dom Helder, pensa disso? Jesus está com raiva de mim?
O santo arcebispo lhe responde:
– Não minha filha. Nunca Jesus fica magoado com você.
Ela enxuga as lágrimas e lhe faz ainda uma pergunta:
– Então, o que o senhor acha que eu devo fazer?
Dom Helder lhe responde:
– Siga a sua consciência e fique em paz.

Marcelo Barros.

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