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Apostolicidade em uma Igreja sinodal. Marcelo Barros

A apostolicidade da Igreja seria fazer com que ela se pareça com Jesus em sua forma de ser, de crer e de agir.

Igreja Católica, a festa dos apóstolos Pedro e Paulo é das mais importantes, porque esses apóstolos são considerados padroeiros da Igreja de Roma. Conforme antiga tradição, ali estão os seus túmulos. No Catecismo, se ensina que a Igreja tem como características ser Una, Santa, Católica e Apostólica. Ela é apostólica porque vem dos apóstolos e é fiel ao que os apóstolos ensinaram.

O problema é que, no decorrer dos séculos, esse “vir dos apóstolos e ser fiel ao que eles ensinaram” foi compreendido de forma quase mecânica – um bispo validamente ordenado que ordena um novo bispo. Assim, teria se mantido e até hoje se mantém uma linha histórica que viria desde os apóstolos. Na realidade, como dizia o padre Comblin, se se fosse ver na Igreja Católica atual, os elementos de doutrina, liturgia e disciplina que realmente vem dos apóstolos, não se conseguiria chegar nem a 5% de tudo o que a Igreja crê e vive hoje. Ao retomar esse ponto, por favor, não compreendam que estou criticando a Igreja ou negando sua apostolicidade.

Acho normal e positivo a enculturação, isso é, defendo que a Igreja vá se adaptando e mudando através dos tempos e da inserção em cada cultura. O que estou propondo é outro critério de apostolicidade. Segundo o Novo Testamento, a Igreja seria apostólica se recebe dos apóstolos a mesma missão de ser testemunha da ressurreição de Jesus e de tornar esse mundo mais pascal. A apostolicidade da Igreja seria fazer com que ela se pareça com Jesus em sua forma de ser, de crer e de agir… Essa é a apostolicidade e não querer legitimar a sacralidade divinizada dos ministérios ordenados em nome da apostolicidade. Nossa missão é apostólica se retomamos às fontes da fé e somos testemunhas da ressurreição de Jesus e tornamos nossa Igreja sempre mais pascal.

Na carta aos efésios, o autor escreve que todos os fieis são como um edifício construído sobre a base (os fundamentos) dos apóstolos e profetas, tendo como pedra angular o próprio Cristo Jesus (Ef 2, 20). Se um corpo tem duas pernas – ou a Igreja tem esses dois pilares: o dos apóstolos e o dos profetas, há séculos a nossa Igreja anda com uma perna só (a dos apóstolos) já que a dos profetas sumiu ou foi sumida…

A Igreja tem duas dimensões que lhe são necessárias: a dimensão institucional (identificada pela apostolicidade) e a carismática (a profecia). Essas duas dimensões devem conviver e se completar uma a outra. O problema é que, em um mundo antigo, de cultura monárquica e hierárquica, as Igrejas cristãs se inseriram e se inculturaram. Identificaram apóstolos como autoridades e deram aos que se colocaram como seus sucessores, características dos sacerdotes das antigas religiões, coisa que o Cristianismo antigo tinha evitado até ao menos o final do século I.

No primeiro século, cada igreja local tinha seu jeito próprio de ser e de se organizar. Havia as Igrejas chamadas apostólicas, isso é, governadas por um apóstolo ou apóstola (Paulo conclui a carta aos romanos pedindo: “Saúdem Andrônico e Júnia, meus parentes e companheiros de prisão, (ele e ela) apóstolos notáveis”(Rm 16, 7). E havia comunidades como as joaninas que não eram apostólicas, não tinham nenhuma hierarquia estabelecida. O modelo de organização era congregacional ou, como se diz hoje, sinodal. Toda a Igreja é ministerial e não existe hierarquia acima da comunidade. Só depois do ano 100, a comunidade joanina precisou acrescentar o capítulo 21 ao seu evangelho. Ali, mesmo sem chamar os discípulos de apóstolos, a comunidade do quarto evangelho aceitou a missão especial de Pedro e tentou compreender essa missão institucional em relação com a função carismática e mais livre do discípulo amado (Jo 21, 15 – 23). Esse é o evangelho que, todos os anos, a Igreja propõe como leitura da Missa da tarde ou da Vigília dessa festa de São Pedro e São Paulo.

Já no evangelho do dia, (Mt 16, 13- 19) relemos a confissão de fé de Pedro. Só o evangelho de Mateus traz a palavra de Jesus: “Tu és Pedro”. Só Mateus escreve que Jesus respondeu à profissão de fé de Pedro, com a promessa: “Tu és Simão (em hebraico: “Aquele que escuta”), filho de Jonas. De agora em diante, te chamarás Cefas que quer dizer pedra”.

Conforme alguns exegetas, na época de Jesus, o povo tinha o costume de escavar as rochas para daí tirar pedras para construir casas. Era um tipo de pedra mais mole que, quem sabe, poderia nos recordar nossa pedra-sabão, usada por vários artistas para esculturas em pedra. Era um tipo especial de pedra, mas possível de ser quebrada e partida para dar lugar a abrigos. Os buracos formados nas rochas recebiam na língua aramaica o nome de kepha. As pessoas pobres e sem casa se abrigavam nestas cavernas e as usavam como sendo suas casas. Assim sendo, o nome Kepha pode ser traduzido por pedra ou por gruta escavada na rocha, isto é, gruta que servia de abrigo para os pobres sem-teto. Assim, a tradução mais literal dessa palavra atribuída a Jesus seria: “Tu és Pedro e sobre ti, como gruta que serve de abrigo aos empobrecidos quero construir minha comunidade ”(Frei Jacir Farias, Roteiros Homiléticos, in Vida Pastoral, julho-agosto 2011,p. 36).

Então, a função da Igreja seria ser refúgio que acolhe as pessoas sem teto e a missão dos seus ministros é garantir essa abertura aos mais desprotegidos. Na forma como vive o seu ministério, parece que o papa Francisco tem voltado a essa compreensão da palavra de Deus. Ele tem se consagrado à defesa radical dos migrantes e refugiados.

Jesus tinha dito que toda pessoa que escuta e pratica a Palavra (Simão quer dizer o ouvinte e obediente) é como quem constrói a sua casa sobre a rocha (Mt 7, 24). “No edifício da igreja, ninguém pode colocar outro fundamento que o Cristo Jesus, pedra angular” (1 Cor 3, 11).

Mateus é o único evangelista que usa a palavra ‘Igreja’ e no seu contexto significa a comunidade local. (No seu tempo, não havia ainda a instituição universal). Pedro é o apoio, pedra que deve dar solidez e segurança ao edifício. Pedro é símbolo do discípulo a quem o Senhor confia o encargo de “confirmar na fé aos seus irmãos” (Lc 22, 31- 32). Embora Jesus entrega a todos a missão de testemunhar o reino, conforme Mateus, Jesus entrega a Pedro as chaves do Reino. É um modo de falar próprio da linguagem apocalíptica e se baseia em Isaías 22.

Na concepção atual, dar a chave seria dar o poder. No Brasil, é usual que o prefeito de um município entregue a uma autoridade que o visita, a “chave” da cidade. Na cultura rabínica, chave significava o poder de interpretar a Torá. Então, Jesus entregar a Pedro as chaves do reino dos céus é o modo de dizer que Pedro é o verdadeiro escriba que tem o direito e o discernimento de interpretar tudo o que nas Escrituras diz respeito ao reino.

A Igreja Católica construiu toda uma teologia sobre o ministério de Pedro e seus sucessores, como sendo bispos de Roma. Sem dúvida, a Igreja de Roma ou qualquer outra tem todo o direito de se apoiar em uma tradição. Com os estudos exegéticos atuais, é difícil sustentar como histórico que Jesus tivesse querido fazer de Pedro chefe da Igreja Universal que não existia como conjunto de comunidades nem na época de Jesus nem no tempo em que os Evangelhos foram redigidos. Menos ainda que Jesus tivesse imaginado um sucessor de Pedro com esse “poder”. O padre Comblin afirma claramente: “Do texto de Mateus não se pode concluir que Pedro teria um sucessor. (…) Quando o Evangelho foi escrito, Pedro tinha morrido provavelmente um quarto de século antes e o Evangelho não fala ainda em qualquer sucessão” (J. Comblin em As linhas básicas do Evangelho segundo Mateus, in Estudos Bíblicos 26, p. 15).

Em 1995, na encíclica “Ut unum sint”, o papa João Paulo II pediu aos representantes de outras Igrejas que o ajudassem a aprofundar outras formas de exercer o ministério papal. Por ter feito isso, o papa recebeu muitas pressões vindas de cardeais e prelados da cúria romana. Assim mesmo, sobre esse assunto, foram organizados vários encontros e estudos que Igrejas irmãs como a Igreja Anglicana e a Federação Luterana enviaram ao papa, mas a Cúria Romana simplesmente deixou de lado essas contribuições que nunca foram valorizadas e menos ainda aproveitadas.

O desafio hoje é pensar a apostolicidade a partir de uma Igreja congregacional ou sinodal. Para isso, o segredo é restituir à figura do/a apóstolo/a, sua dimensão profética e carismática e não continuar com o mito de que o sinônimo de apostolicidade é hierarquia e menos ainda clericalismo.

Marcelo Barros.

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