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CRACOLANDIZAÇÃO DA METRÓPOLE

Por Pe. Alfredo J, Gonçalves, CS

Foto: Luciney Martins

Não seria tamanho esdrúxulo afirmar que, como efeito direto ou indireto da pandemia, a capital paulista vem se cracolandizando. Um rápido giro pelo centro velho e arredores basta para deixar essa impressão. É notório e bem visível o aumento da população em situação de rua, bem como o surgimento progressivo de minúsculas cabanas, onde indivíduos solitários, casais ou famílias inteiras passaram a habitar. Igualmente notórias são as filas que se vão formando durante o dia, tanto para a “quentinha” (marmita) quanto para a cesta básica, ambas distribuídas por igrejas, entidades, organizações não governamentais. Uma série de praças e calçadas se converteram em dormitórios improvisados e, não raro, em banheiros. Devido ao frio dos últimos dias, agentes da prefeitura passam recolhendo boa parte dessa população aos abrigos.

Semelhante cenário, porém, não passa de mero sintoma de um mal bem mais grave. Estimativas recentes mostram que o país conta hoje com cerca de 15 milhões de desempregados, enquanto outros 40 milhões se ocultam nos subterrâneos da economia informal. Também se contam aos milhões o número de pessoas que, desencantadas, simplesmente desistiram de procurar trabalho. Impossibilitados de arcar com os custos do aluguel, somados às contas de água, luz, gás e gasto símiles, famílias inteiras acabaram “optando” por morar nas ruas, ou de maneira mais realista, caindo nelas. O contágio do coronavírus e seus efeitos, por sua vez, tornou ainda mais precária as condições já vulneráveis de boa parte da população.

A Covid-19 veio acompanhada de outros “vírus” tão letais. Entre eles, não é difícil destacar os vírus do negacionismo, cujas ramificações são o escárnio, o deboche, o descaso, a indiferença e o desmonte das políticas públicas, com sacrifício do meio ambiente, dos povos indígenas e das comunidades quilombolas. Sem falar do retrocesso em relação à ciência e à pesquisa, ao estudo, à academia e às artes em geral. O vírus do desemprego, subemprego e trabalho informal, filho bastardo da concentração da riqueza, agrava a pobreza, a miséria e a fome, levando mais gente ao desalento e ao desabrigo. O vírus da violência, por sua vez, ganhou força com a quarentena e o isolamento social, abatendo-se especialmente sobre as mulheres e crianças, bem como sobre a população em situação de rua e as minorias vulneráveis. O vírus do preconceito, da xenofobia, da discriminação e do racismo torna ainda mais restritas as oportunidades para os estrangeiros e migrantes que, fugindo da guerra e da carência, batem às nossas portas em busca de refúgio. E segue incólume o vírus histórico e estrutural da desigualdade socioeconômica.

Foto: Luciney Martins

No geral, portas se fecham e muros se levantam. Direitos e dignidade humana são pisoteados implacavelmente. Cresce o consumo de álcool, drogas e outros entorpecentes, o que leva ao aumento do ódio, da divisão e das hostilidades de parte a parte. Na vizinhança de associações beneficentes, indivíduos, famílias e grupos seguem buscando a solidariedade pública. Pessoas cansadas e abatidas, de ombros encurvados e joelhos vergados, almas feridas ou marcadas por profundas cicatrizes, corações devastados e atormentados por tanta turbulência, rostos tristes e desfigurados, cabisbaixos e com olhares grudados no chão, as mãos estendidas!… Porém, como já dizia alguém, “o pão da caridade é o pão regado com as lágrimas da vergonha; só o pão conseguido com o suor do rosto é capaz de conferir verdadeira cidadania e paz”.

Como se não bastasse, em meio a tudo isso, grupos polarizados por ideias, cores, bandeiras e ideologias distintas se dividem e se agridem reciprocamente. Sem pudor, rasgam, esgarçam e conflagram o tecido social. Como uma voz no deserto, o clamor do Papa Francisco no sentido de ultrapassar a “globalização do individualismo e da indiferença”, em vista de uma “cultura da solidariedade” – essa voz quase única e profética, repetimos, tende a cair em “ouvidos de mercador”. Governos, celebridades e organismos internacionais parecem surdos ao clamor que brota do chão. Fica-nos o desafio: como recolher os monólogos isolados, transfigurando-nos em um diálogo pelo maior bem-estar de toda a humanidade?!

Pe. Alfredo J, Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – São Paulo, 4 de julho de 2021

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