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Setembro Mês da Bíblia: CRITÉRIOS E MÉTODO DA LEITURA POPULAR DA BÍBLIA

A Bíblia é como o coração: fora do corpo da comunidade e da vida do povo, morre e faz morrer!

DEZ CARACTERÍSTICAS DA LEITURA POPULAR

  1. A Bíblia é reconhecida e acolhida pelo povo como Palavra de Deus.Esta fé já existia antes da chegada do que se convencionou chamar leitura popular. É nesta raiz antiga que se enxerta todo o nosso trabalho com a Bíblia junto do povo. Sem esta fé, todo o método teria de ser diferente. “Não es tu que sustentas a raiz, mas a raiz sustenta a ti” (Rm 11,18).
  2. Ao ler a Bíblia, o povo das Comunidades traz consigo a sua própria história e tem nos olhos os problemas que vem da realidade dura da sua vida. A Bíblia aparece como um espelho, “sím-bolo” (Hb 9,9; 11,19), daquilo que ele mesmo vive. Estabelece-se uma ligação profunda entre Bíblia e vida que, às vezes, pode dar a impressão de um concordismosuperficial. Na realidade, é uma leitura de fé muito semelhante à que faziam as primeiras comunidades (cf. At 1,16-20; 2,29-35; 4,24-31) e os Santos Padres.
  3. A partir desta ligação entre Bíblia e vida, os pobres fazem a descoberta, a maior de todas:“Se Deus esteve com aquele povo no passado, então Ele está também conosco nesta luta que fazemos para nos libertar. Ele escuta também o nosso clamor!” (cf. Ex 2,24;3,7). Nasce assim, imperceptivelmente, uma nova experiência de Deus e da vida que se torna o critério mais determinante da leitura popular e que menos aparece nas suas explicitações e interpretações. Pois o olhar não se enxerga a si mesmo.
  4. Antes deste contato mais vivido com a Palavra de Deus, a Bíblia ficava longe. Era o livro dos “padres”, do clero. Mas agora ela chegou perto! O que era misterioso e inacessível, começou a fazer parte da vida quotidiana dos pobres. E junto com a sua Palavra, o próprio Deus chegou perto! “Vocês que antes estavam longe foram trazidos para perto!” (Ef 2,13) Difícil para um de nós avaliar a experiência de novidade e de gratuidade que isto representa para os pobres.
  5. Assim, aos poucos, foi surgindo uma nova maneira de se olhar a Bíblia e a sua interpretação. Ela já não é vista como um livro estranho que pertence ao clero, mas sim como o nossolivro, “escrito para nós que tocamos o fim dos tempos” (1Cor 10,11). Às vezes, ela chega a ser o primeiro instrumento de uma análise mais crítica da realidade. Por exemplo, a respeito de uma empresa opressora do povo, o pessoal da comunidade dizia: “É o Golias que temos que enfrentar!”
  6. Pouco a pouco, cresce a descoberta de que a Palavra de Deus não está só na Bíblia, mas também na vida, e de que o objetivo principal da leitura da Bíblia não é interpretar a Bíblia, mas sim interpretar a vida com a ajuda da Bíblia. A Bíblia ajuda a descobrir que a Palavra de Deus, antes de ser lida na Bíblia, já existia na vida. As comunidades descobrem que a sua caminhada é bíblica. “Na verdade, o Senhor está neste lugar, e eu não o sabia” (Gn 28,16)!
  7. A Bíblia entra na vida do povo não pela porta da imposição autoritária, mas sim pela porta da experiência pessoal e comunitária. Ela se faz presente não como um livro que impõe uma doutrina de cima para baixo, mas como uma Boa Nova que revela a presença libertadora de Deus na vida e na luta do povo. Os que participam dos grupos bíblicos, eles mesmos se encarregam de divulgar esta Boa Notíciae atraem outras pessoas para participar. “Vinde ver um homem que me contou toda a minha vida!” (Jo 4,29).
  8. Para que se produza esta ligação profunda entre Bíblia e vida, é importante: a) Ter nos olhos as perguntas reais que vêm da realidade, e não perguntas artificiais que nada têm a ver com a vida do povo. Aqui aparece como é importante o intérprete ter convivência e experiência pastoral inserida no meio do povo. b) Descobrir que se pisa o mesmo chão, ontem e hoje. Aqui aparece a importância do uso da ciência e do bom senso, tanto na análise crítica da realidade de hoje como no estudo do texto e do seu contexto social. c) Ter uma visão global da Bíblia que envolva os próprios leitores e leitoras, e que esteja ligada com a situação concreta das suas vidas hoje.
  9. A interpretação que o povo faz da Bíblia é uma atividade envolvente que compreende não só a contribuição intelectual do exegeta, mas também todo o processo de participação da Comunidade: trabalho e estudo de grupo, leitura pessoal e comunitária, teatro, celebrações, orações, recreios, “enfim, tudo que é verdadeiro, nobre, justo, puro, amável, honroso, virtuoso ou que de qualquer maneira merece louvor” (Fl 4,8). Aqui aparecem a riqueza da criatividade popular e a amplidão das intuições que vão nascendo.
  10. Para uma boa interpretação, é muito importante o ambiente de fé e de fraternidade, através de cantos, orações e celebrações. Sem este contextodo Espírito, não se chega a descobrir o sentido que o textotem para nós hoje. Pois o sentido da Bíblia não é só uma idéia ou uma mensagem que se capta com a razão e se objetiva através de raciocínios; é também um sentir, um conforto que é sentido com o coração, “para que, pela perseverança e pela consolação que nos proporcionam as Escrituras, tenhamos esperança” (Rm 15,4).

Convém não esquecer que tudo isto, de que estamos falando, se refere apenas às Comunidades Eclesiais de Base, que são uma pequena minoria. A grande maioria tem outro jeito de olhar a Bíblia, menos libertador e mais fundamentalista.

 

NOVIDADE E ALCANCE DA INTERPRETAÇÃO POPULAR

Dentro da interpretação que os pobres fazem da Bíblia existe uma novidade de grande alcance para a vida das Igrejas. Novidade antiga que vem de longe e que retoma alguns valores básicos da Tradição comum! Seguem aqui sete pontos que procuram sinalizar o itinerário:

  1. objetivoda interpretação já não é buscar informações sobre o passado, mas sim clarear o presente com a luz da presença do Deus-conosco, Deus Libertador; é interpretar a vida com a ajuda da Bíblia. Redescobre-se na prática a nova visão da Revelação, descrita e definida pela DEI VERBUM.
  2. sujeitoda interpretação já não é o exegeta. Interpretar é uma atividade comunitária em que todos participam, inclusive o exegeta que nela exerce um papel especial. Por isso, é importante ter nos olhos não só a fé da comunidade, mas também fazer parte efetiva de uma comunidade viva e buscar o sentido comumaceito por esta comunidade. Esta pertença efetiva exerce uma influência crítica sobre a função da exegese científica que, assim, se coloca mais a serviço.
  3. lugar socialde onde se faz a interpretação é a partir dos pobres, dos excluídos e dos marginalizados. Isto modifica o olhar. Muitas vezes, por falta de uma consciência social mais crítica, o intérprete é vítima de preconceitos ideológicos e, sem se dar conta, usa a Bíblia para legitimar o sistema de opressão que desumaniza.
  4. A leitura que relaciona a Bíblia com a vida é ecumênica e libertadora. Leitura ecumênica não quer dizer que católicos e protestantes discutem as suas divergências para chegar a uma conclusão comum. Isto pode ser uma conseqüência. O mais ecumênico que temos é a vida que Deus nos deu. Aqui na América Latina, a vida de grande parte da população corre perigo, pois já não é vida. Leitura ecumênica é interpretar a Bíblia em defesa da vida e não em defesa das nossas instituições e confissões. Ora, na atual situação em que vive o povo da América Latina, uma leitura em defesa da vida, necessariamente deve ser libertadora. Por isso mesmo, ela é conflitiva. Tornou-se sinal de contradição.
  5. Aqui aparece a diferença com a exegese européia. O problema maior entre nós não é a fé que corre perigo por causa da secularização. Mas é a vida que corre o sério perigode ser eliminada e desumanizada. E o que é pior, a própria Bíblia corre perigo de ser usada para legitimar esta situação em nome de Deus. Como no tempo dos reis de Judá e de Israel, usa-se a Tradição para legitimar os ídolos. A interpretação popular descobre, revela e denuncia esta manipulação.
  6. método e a dinâmica, usados pelos pobres nas suas reuniões, são muito simples. Eles não costumam usar uma linguagem discursiva, feita de argumentos e raciocínios. Preferem contar fatos e usar comparações. É uma linguagem que funciona por associação de idéias e cuja preocupação primeira não é fazer saber,mas sim fazer descobrir.
  7. Aparecem com maior clareza função e os limites da Bíblia.Os limites são estes: a Bíblia não é fim em si mesma, mas está a serviço da interpretação da vida; sozinha ela não funciona e não consegue abrir os olhos, pois o que abre os olhos é a partilha do pão, o gesto comunitário. A Bíblia deve ser interpretada dentro de um processo mais amplo, que leva em conta a comunidade e a realidade. A Bíblia é como o coração: fora do corpo da comunidade e da vida do povo morre e faz morrer!

Frei Carlos Mesters

Francisco Orofino

 Fonte: http://www.catedralsaojose.org.br/catedral2011/reflexao/2090-criterios-e-metodo-da-leitura-popular-da-biblia.html15

Imagem Atelie

 

Material publicado no Jornal A Caminho Edição 04- Agosto 2017.

Acesse http://www.cebsdobrasil.com.br/2017/08/27/a-caminho-4a-edicao-londrina-coracao-pulsante-do-14o-intereclesialbh/

1 Comment

  • Waldir José Bohn Gass

    Muito bom. Muito diferente da tal leitura orante. E, como diz Francisco, Deus não é o que resolve todos os nossos problemas, mas é presença que é luz e força para vivermos cada momento da nossa vida, por mais adverso que seja, com amor e fidelidade. Valeu, equipe das CEBs. Louvo a Deus por esses DONS como Orofino e Mesters. Realmente, Deus está sempre revelando a sua profunda e ilimitada misericórdia.

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