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Dom Hélder Câmara e Dom Paulo Evaristo Arns: oposição à Ditadura Militar, no Brasil, em defesa dos Direitos Humanos

 Nada de verdadeiramente humano é alheio ao coração da Igreja, porque a Igreja assume as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens e mulheres de nosso tempo, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, como alegrias e esperanças, tristezas e angústias das discípulas e discípulos de Cristo (GS, nº 1)

Introdução

A Igreja, por força dos princípios evangélicos, não raro, intervém na história da humanidade em situações de risco e violência contra a vida, na defesa dos Direitos Humanos, base fundamental da dignidade de todo homem e de toda mulher.

No Brasil, durante o período da Ditadura Militar, a Igreja assumiu o papel proeminente de defensora dos direitos humanos, violentados, frequentemente, pelas autoridades civis e militares, através de prisão, tortura e morte de pessoas consideradas ameaças para o Regime.

Alguns membros do episcopado brasileiro, conscientes de seu ministério pastoral, agiram coerentemente com a missão da Igreja, na defesa dos Direitos Humanos. Por isso, o presente texto tem como objetivo mostrar as ações de Dom Hélder Câmara e de Paulo Evaristo Arns, contra os abusos e violações sofridos pelos presos políticos durante Ditadura Militar.


A Igreja defensora dos Direitos Humanos

A Igreja é uma das grandes defensoras dos direitos humanos, pelo fato de ser teologicamente uma instituição com caráter divino e humano. Os bispos latinos americanos afirmam esta atitude eclesial, de forma solidária, na Conferência de Puebla: “Compartilhamos com nosso povo de outras angústias que brotam da falta de respeito à sua dignidade de ser humano, imagem e semelhança do Criador e a seus direitos inalienáveis de filhos de Deus” (PUEBLA, 2009, nº 40).

A Sagrada Escritura inicia a sua narrativa falando da dignidade do ser humano, criado por Deus como senhor da natureza (Gn 1,26). Com base nesse princípio fundante, os profetas no Antigo Testamento, falavam de um direito que é devido ao pobre, tipificados na viúva, no órfão e no estrangeiro, as grandes classes marginalizadas daquele tempo.

A cristologia bíblica mostra que a Encarnação do Verbo eleva a dignidade do ser humano ao infinito, ao armar sua tenda entre nós (Jo 1,14). É Jesus Cristo, pois, quem revela ao homem o próprio homem (Gaudium et Spes, 22), afirmação categórica do Concílio Vaticano II. E na conclusão do mesmo, “o Papa Paulo VI recordava que no rosto de todo homem, sobretudo se se tornou transparente pelas lágrimas ou pelas dores, podemos e devemos descobrir o rosto de Cristo (cf. Mt 25, 40), o Filho do Homem ” (Ecclesia in America, 12).
Ao longo da história cristã de inserção e promoção do humano, a voz da Igreja se fez ouvir quando a pessoa não vinha sendo respeitada em sua dignidade. Para a consciência ética da Igreja, a dignidade humana é um valor inigualável. “E todo valor comporta duas dimensões básicas: uma atitude de fascinação em face do outro e uma irradiação objetiva presente nas pessoas que origina tal fascinação” (BOFF, p. 128, 2004). A Igreja tem consciência que, “o primeiro fundamento está na dignidade da pessoa humana” (Ibidem, p. 127).

Desde a formação do cristianismo primitivo, há reivindicação dos direitos humanos, exigidos pela Igreja na defesa das minorias sociais e étnicas, como por exemplo, a pregação dos padres dos primeiros séculos, como Ambrósio, Agostinho, Basílio, Atanásio, João Crisóstomo, entre outros, orientada pelo Evangelho (referencial teórico e prático), que clama pelo direito do pobre e do indigente. E na época da colonização das Américas, a defesa intransigente dos direitos dos indígenas, através da pregação de Bartolomeu de Las Casas, Antônio de Montesinos.

O papado do período da modernidade, dá continuidade na defesa dos direitos humanos: o Papa Gregório XVI (1831-1846) condenou a escravidão dos negros e com a Bula In Supremo Apostolatus (1839) contribuiu para o fim do comércio e do tráfico dos africanos; o Papa Pio XI (1922-1939) que se colocou contra os totalitarismos de direita e de esquerda, por meio das encíclicas Non abbiamo bisogno (contra o fascismo italiano), Mit brenender sorge (contra o nazismo alemão) e Divini Redemptoris (contra o comunismo soviético); Pio XII (1939-1958), foi um profeta incansável da dignidade da pessoa. Ele foi o primeiro papa a elaborar e promulgar uma lista de direitos humanos, através de sua mensagem radiofônica de Natal, no ano de 1942 (n. 35-37).

A mensagem do Papa Pio XII sobre esses direitos foi retomada por seu sucessor, João XXIII (1958-1963), na encíclica Pacem in Terris, no aniversário de 15 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, demonstrando uma avaliação positiva deste documento.

Nesse mesmo horizonte, não é de estranhar que o Papa olhasse com grande esperança para a Organização das Nações Unidas (ONU), constituída em 26 de junho de 1945, e manifestasse particular apreço pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, considerando-a um passo importante no caminho para a organização jurídica e política da comunidade mundial (FRANZEN, 2006, p. 50)

O Concílio Vaticano II (1961-1965) foi um paradigma importante no processo de compromisso da Igreja com a promoção e defesa dos Direitos Humanos. Ela reforça a sua fidelidade aos Direitos Humanos na Constituição Pastoral Gaudium et Spes:
nada de verdadeiramente humano é alheio ao coração da Igreja, porque a Igreja assume as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens e mulheres de nosso tempo, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, como alegrias e esperanças, tristezas e angústias das discípulas e discípulos de Cristo (GS, nº 1)

Na visão epistemológica do Concílio, os Direitos Humanos encarnam na dignidade inerente a todo o humano. Dessa dignidade surgem os direitos universais e invioláveis, superiores a qualquer lei humana. Para o Vaticano II, o acesso aos Direitos Humanos possibilita às pessoas terem uma vida digna de ser humano:

Simultaneamente, aumenta a consciência da eminente dignidade da pessoa humana, por ser superior a todas as coisas e os seus direitos e deveres serem universais e invioláveis. É necessário, portanto, tornar acessíveis ao homem todas as coisas de que necessita para levar uma vida verdadeiramente humana: alimento, vestuário, casa, direito de escolher livremente o estado de vida e de constituir família, direito à educação, ao trabalho, à boa fama, ao respeito, à conveniente informação, direito de agir segundo as normas da própria consciência, direito à proteção da sua vida e à justa liberdade mesmo em matéria religiosa (Ibidem, nº 26)

Orientado pelo Concílio Vaticano II, o Papa Paulo VI, no discurso à ONU em 1965, fez esta afirmação categórica para legitimar a defesa da Igreja aos Direitos Humanos: “a Igreja perita em humanidade”.
No discurso papal de São João Paulo II, feito à Assembleia das Nações Unidas, no dia 21 de outubro de 1979, é enfatizado e reafirmado a importância da Declaração Universal dos Direitos Humanos para a Igreja:

O Magistério da Igreja não deixou de apreciar positivamente a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pelas Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948, que João Paulo II definiu como “uma pedra miliária no caminho do progresso moral da humanidade (João Paulo II, Discurso à Assembleia das Nações Unidas (21 de outubro de 1979, 7: L’Ossevervatore Romano, 7 de outubro de 1979)

A Conferência de Puebla (27/01 a 13/02/1979) pretende ser fonte de inspiração para a caminhada da Igreja no Continente Latino-americano. Ela vê a necessidade de criar no povo latino-americano, uma consciência ética na defesa dos Direitos Humanos, com um sentido evangélico crítico face à realidade, a partir do espírito comunitário e comprometido com a dimensão social. Como fundamento dessa proposta, Puebla retoma o discurso profético de João Paulo II, sobre a materialização integral dos Direitos Humanos:

A Igreja assume a defesa dos direitos humanos e se solidariza com os que lutam por eles. A esse propósito nos apraz recordar, aqui, por seu especial valor, dentro da ampla doutrina sobre a matéria, o discurso de S.S. João Paulo II ao Corpo Diplomático, de 20 de outubro de 1978: “A Santa Sé atua nesta esfera sabendo que a liberdade, o respeito à vida e à dignidade das pessoas – que jamais são instrumento – a igualdade de tratamento, a consciência profissional no trabalho e a procura solidária do bem comum, o espírito de reconciliação, a abertura aos valores espirituais, são exigências fundamentais da vida harmoniosa em sociedade, do progresso dos cidadãos e de sua civilização” (PUEBLA, 2009, nº 146).
A Igreja ao longo da história, em diferentes contextos, culturais, políticos e sociais, responde a sua missão cristã de promover a dignidade de todos os povos, a partir da defesa daquilo que é mais sagrado: os Direitos Humanos.

A trajetória de dois bispos defensores dos Direitos Humanos

A Igreja teve um papel crucial durante o período de vigência do Regime Militar (1964-1985), que simbolizou um dos momentos mais dramáticos da história do Brasil, no que se refere ao desrespeito e à violência contra os mais elementares direitos da pessoa.

Depois de as classes dominantes, representadas pela burguesia e pelas camadas médias, assumirem o poder por meio de um golpe de Estado, os militares consolidaram um regime político ditatorial que reprimiu violentamente os movimentos trabalhistas e os grupos de oposição.

A sociedade brasileira foi submetida ao terror de um Estado autoritário, que usava a tortura, largamente empregada pelos órgãos policiais, contra os cidadãos comuns para extrair confissões de suspeitos. Essa prática cruel e desumana tornou-se uma política paradigmática de Estado a orientar a repressão contra os envolvidos em quaisquer atividades políticas de oposição ao regime.
Alegando agir em defesa de princípios “ocidentais, cristãos e democráticos”, as forças da repressão político-militar-policial, a que o golpe de 1964 deu carta-branca, outra coisa não fizeram do que cobrir de indignidade o nome do Brasil. A institucionalização da tortura, a transformação do sadismo em virtude profissional, o abastardamento da justiça e o primado da força bruta na luta contra o “comunismo internacional” atrasaram, e muito, o pouco que vínhamos apresentando em termos de progresso social longe dos últimos quatro séculos de nossa história” (SILVEIRA, p. 1)

Foi nesta conjuntura de extrema violência e desrespeito contra os cidadãos, que surgem dois atores sociais protagonistas na defesa dos Direitos Humanos, principalmente, dos presos políticos e na luta contra a Ditadura Militar, os bispos Dom Hélder Câmara e Dom Paulo Evaristo Arns, considerados inimigos do Estado. Com a atuação desses dois bispos, os mais conhecidos pela história do país, a Igreja Católica assumiu um papel de destaque na luta contra a repressão e a tortura, transformando-se na mais importante instituição de oposição à Ditadura Militar.

A Igreja Católica se tornou a principal voz de denúncia (…) deste regime, especialmente após a prisão, tortura desaparecimento e morte de inúmeras pessoas, particularmente padres, bispos, seminaristas, leigos, freiras e religiosos, como o próprio Frei Betto (RODRIGUES, 2015, p. 8)

Era um período de efervescência da Teologia da Libertação, dos movimentos sociais, eclesiais e estudantis, das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). A Igreja Católica, inspirada na Teologia da Libertação, estava preocupada e comprometida com as causas sociais, através do movimento eclesial, formado por religiosos (bispos, padres, freis e freiras) e leigos politizados. A luta pela superação do regime militar marcou um momento forte dentro do país. Foi nesse contexto que Dom Hélder e Dom e Dom Paulo se destacaram na defesa dos Direitos Humanos.

A Igreja já na Conferência de Medellin (1968), manifestava a sua preocupação com o povo, que foi submetido aos regimes ditatoriais do Continente Latino Americano, por isso ela denuncia o poder opressor do regime militar:
Poder exercido injustamente por certos setores dominantes: como uma consequência normal das atitudes mencionadas, alguns membros dos setores dominantes recorrem, por vezes, ao uso da força para reprimir drasticamente toda tentativa de reação. Será muito fácil para eles encontrar aparentes justificativas ideológicas (anticomunismo) ou práticas (conservação da ordem) para coonestar este procedimento (MEDELLÍN, 2004, p. 61).

Com a repressão e o cerceamento das liberdades, na sociedade e dentro da igreja católica, surgiram manifestações de repúdio à ditadura, com o envolvimento do clero com militantes resistentes ao regime, e com a própria proteção do clero aos perseguidos e torturados. A Ditadura Militar não poupou religiosos, líderes ou mesmo representantes da Igreja, como Afirmou Dom Paulo Evaristo Arns:

A repressão militar escolheu justamente as pessoas mais democráticas e ativas de nossa sociedade civil e religiosa. No momento em que tomei posse como arcebispo da Arquidiocese de São Paulo, encontravam-se presos uns quinzes religiosos e nenhum deles mereceu a condenação que atingiu os confrades dominicanos de maneira tão injusta e pesada (ARNS, 2000, p. 15).
O renomado teólogo da libertação, João Batista Libânio, em umas de suas falas sobre a importância da Conferência de Puebla, faz questão de situá-la dentro do contexto de repressão militar no Continente Latino Americano e aproveita o momento de argumentação para enfatizar a oposição da Igreja às torturas da Ditadura Militar no Brasil:

Ainda pesava sobre o Continente, nos idos de Puebla, forte repressão por parte dos regimes militares (…). No Brasil, a Igreja Católica teve certamente papel decisivo na abertura política e no fim do regime de arbítrio. Ela constituía uma das forças de oposição à tortura, ao AI-5, às incursões dos órgãos de repressão, às medidas discricionárias do Estado autoritário. Sofreu perseguição por causa de tal ousadia profética, mas, ao mesmo tempo, adquiriu credibilidade diante das forças democráticas em reagrupamento (LIBÂNIO, 2008).
Através de uma ordem cronológica eclesiástica, é neste contexto de protagonismo da Igreja, que se pode destacar, primeiramente, as contribuições de Dom Hélder Câmara na defesa dos Direitos Humanos, através de sua atuação pastoral politizada, como oposição à Ditadura Militar. Depois na mesma linha pastoral e política de Dom Hélder, a atuação de Dom Paulo Evaristo Arns, também na defesa dos direitos e na luta contra o regime militar.

Dom Helder Pessoa Câmara

Nascido em Fortaleza, em sete de fevereiro de 1909, foi ordenado presbítero em 15 de agosto de 1931, bispo auxiliar do Rio de Janeiro, em 20 de abril de 1952 e nomeado arcebispo de Olinda-Recife. Em 12 de março de 1964, “logo depois do golpe de estado de abril de 1964, numa situação tensa” (SOUZA, 1981, p. 419).
Segundo José Comblin, “para os militares, Pernambuco era o centro da subversão comunista: ali estava Miguel Arrais, Francisco Julião e Paulo Freire. Por isso, a repressão foi violenta” (COMBLIN, 2009, p. 226). O mesmo dá testemunho do bispo defensor dos indefesos: “D. Hélder foi uma personalidade múltipla. Foi um profeta, mas também um místico e um poeta. Era um homem totalmente apaixonado pela sua missão, e inteiramente aberto aos outros de qualquer religião e cultura” (Ibidem, p. 224).

Pode-se também, documentar outro testemunho de Marcos de Castro na mesma linha de Comblin: “Fui descobrindo aos poucos um D. Hélder, humano malicioso, político hábil, ouvindo e seguindo tudo, sem perder uma vírgula dos debates, através das pesadas pálpebras e olhos sinceros” (SOUZA, 1981, p. 419). Segundo Marcos, Dom Hélder teve um reconhecimento especial da parte de São João Paulo II: “E durante a visita do Papa ficou patente o carinho do povo e de João Paulo II, que o abraçou dizendo: “D. Hélder, irmão dos pobres e meu irmão” (Ibidem, p. 424).

Dom Hélder, como pastor comprometido com os fragilizados economicamente, em seu ofício de bispo auxiliar do Rio de Janeiro, promoveu a Cruzada de São Sebastião, para a construção de casa para famílias pobres e criou o Banco da Providência, para a manutenção da caridade. Essa iniciativa foi “fruto de uma enorme sensibilidade para com o pobre concreto, correndo o risco do assistencialismo, comum nos horizontes pastorais daquele tempo” (Ibidem).

Dom Hélder foi um dos bispos articuladores do Concílio Vaticano II. Foi o primeiro secretário da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB – 1952) e contribuiu para a criação da Conferência Episcopal Latino Americana (CELAM- 1955).

No Brasil, Dom Hélder atuava contra a hegemonia e quebrava os paradigmas alinhados com a ordem do país que legitimava as relações de poder. A atitude profética de Dom Hélder traduzida na defesa dos perseguidos, oprimidos e torturados, foi a causa da irritação dos militares contra os bispos dos pobres.

Segundo Comblin: “Dom Hélder começou a sentir que devia ser o porta-voz desses excluídos da nação” (COMBLIN, 2009, p. 225). Mas, para o mesmo autor, “pouco a pouco, ele descobriu que tinha uma tarefa de profeta que o obrigava a denunciar as arbitrariedades, as torturas, as prisões e as matanças cometidas pelo regime” (Ibidem, p. 226).

A denúncia que Dom Hélder fez em Paris, do Regime na violação dos Direitos humanos, foi um meio de externar as injustiças que aconteciam no Brasil, mas isso lhe custou ódio e perseguição do sistema autoritário.

A posição de Dom em favor dos perseguidos, em favor da justiça, enfim, irritava os generais que sucediam na presidência e todo poder castrense que se erguia em torno deles, fazendo do país um enorme quartel. Essa irritação transformou-se em ódio em maio de 1970, quando Dom Hélder, piedosamente, em benefício da verdade (e a busca da Verdade era a sua vida), denunciou em Paris a existência da tortura no Brasil, a essa altura generalizada, desde a imposição do Ato-Institucional número 5 (AI-5), de dezembro de 1968 (CASTRO, 2002, p. 11-12)

Tradicionalmente, a denúncia profética tem um preço alto, e muitos já pagaram com o seu próprio sangue, como os mártires. A atitude profética de Dom Hélder, em Paris, lhe custou a perda de título mundial e cargos institucionais dentro da Igreja Católica. O bispo, mesmo indicado quatro vezes ao Nobel da Paz, entre os anos de 1970 e 1973, não pôde alcançar o reconhecimento, graças à atuação do governo brasileiro, através de difamação e perseguição política. Mas Dom Hélder tinha consciência dos efeitos que essa denúncia causaria nos militares, e com coragem e compromisso com a justiça, ele não se calou em relação às barbáries que estavam acontecendo no Brasil: “O que fiz foi defender a justiça. Se combato as injustiças quando são cometidas em qualquer parte do mundo, por que haveria de calar quando essas injustiças e arbitrariedades se passam dentro do meu país?” (Ibidem, p. 181-182).
José Comblin, umas das testemunhas mais próximas de Dom Hélder, faz memória desses fatos:

O ponto culminante da sua ação profética foi o discurso pronunciado em Paris, em 1970, para denunciar as torturas que haviam no Brasil. Essa denúncia lhe valeu uma perseguição sistemática que duraria até o fim do regime militar. Uma imensa campanha de difamação foi organizada e penetrou na administração da Cúria romana. D. Hélder não recebeu o prêmio Nobel da Paz por intervenção direto do governo brasileiro, e não foi feito cardeal. Foi o profeta rejeitado pelas altas autoridades, mas identificado com as esperanças do povo” (COMBLIN, 2009, p. 227).

A missão do profeta é desmascarar o sistema, como um método de desnaturalizá-lo. E Dom Hélder fez isso diante de milhares de pessoas, como um bom patriota:
Foi evidentemente um bem imenso, um bem patriótico que Dom Hélder fez ao país, rasgando as cortinas do cinismo e da mentira diante da multidão que se comprimia no Palácio dos Esportes, naquela noite: 10 mil pessoas entraram, outras 10 mil ficaram de fora, segundo os jornais franceses. Era o turno do general Médici no comando do Brasil, o período mais sanguinário dos 21 anos de ditadura (Ibidem)

Dom Hélder passou a ser mais amado pelo povo e odiado pelo militares. Esses últimos o rotularam como: “Arcebispozinho comunista” (CASTRO, 2002, p. 50). Com isso, o regime tentou impor silêncio ao bispo considerado comunista, como um meio de invisibilizá-lo, mas isso só fazia aumentar a sua popularidade, principalmente no meio dos pobres oprimidos e sua voz se expandia de forma universal.

Ao proibir a palavra de Dom Hélder dentro do Brasil, o governo militar, ou aquilo que depois do golpe o noticiário político convencionou chamar de “o sistema”, abriu-lhe as portas do mundo, certamente uma reação natural e bastante previsível (Ibidem, p. 48).

A mídia, contudo, como um instrumento de dominação ideológica, que está a serviço das classes dominantes, não tem o compromisso de gerar o conhecimento, mas criar e socializar fatos ligados aos seus interesses. Historicamente, a mídia brasileira foi aliada do Regime e inimiga de Dom Hélder, e um de seus trabalhos, era censurar o bispo, até mesmo dentro de sua própria diocese:
Os meios de comunicação do Brasil, pelos anos da censura e da repressão, baniram sua imagem e seu nome. Prescrição por decreto, único argumento arbítrio. Foi censurado em sua própria rádio diocesana. O nome Hélder Câmara só aparecia nas colunas esportivas, com seu homônimo campeão de xadrez. Mas sempre esteve presente entre o povo simples e na opinião pública mundial, onde foi se tornando quase um mito (SOUZA, 1981, p. 424)
Mesmo com o trabalho dos militares e da mídia, depois do Concílio Vaticano II, Dom Hélder, com sua atuação incansável, pastoral e politicamente, em prol dos Direitos Humanos, tornou-se bastante conhecido de forma global.

Através de suas atitudes proféticas encarnou-se aos olhos do mundo, a resistência aos regimes políticos autoritários e arbitrários da América Latina.

No dia 27 de maio de 1969, o jovem Padre Henrique, de 28 anos, que trabalhava com a juventude da diocese, foi assassinado de forma brutal, com estrangulamento e tiro na cabeça. Diante do túmulo do padre, Dom Hélder faz essa declaração: “Afinal de contas, eles morrem no lugar da gente. São torturados e morrem no lugar da gente” (CASTRO, 2002, p. 151).

Há certas classes consideradas mais perigosas. Lidar com camponeses, lidar com trabalhadores, lidar com jovens é sempre mais perigoso. São terrenos muito explosivos.
Segundo depoimentos que são sérios, há pessoas da polícia altamente implicadas no assassinato do Padre Henrique. Então, enquanto o processo estiver entregue à polícia, nada se apurará (Ibidem, p. 152).

Dom Hélder, por intermédio da não violência ativa, pregou a necessidade de promover mudanças com propostas concretas, para transformar as estruturas e possibilitar uma vida humana mais digna para todos, construindo uma nova sociedade, justa e mais humana. Ele mesmo dizia que não queira pagar a violência com violência, mas só queria mudança das estruturas dominantes:
O que queremos é a mudança disso. E uma das preocupações que devemos ter é não cair num revanchismo. Importa é que haja supressão do estado de força, é que acabe o estado de exceção. Que impere não o direito da força, mas a força do direito (CASTRO, Ibidem, p. 153).

Dom Hélder foi antes de tudo um místico. Sua espiritualidade era toda a sua personalidade, construída como o ser defensor dos pobres, antes de ser o promotor da justiça e dos direitos humanos contra toda opressão. Nas Comunidades de Base (CBEs), “o profeta descobriu o seu lugar histórico: no meio dos pobres, dos perseguidos, dos suspeitos vigiados pelos órgãos de segurança” (COMBLIN, 2009, p. 227). Ele utilizava a religião como um instrumento de resistência e encorajamento para enfrentar os abusos da Ditadura Militar:

Nas áreas onde viviam e trabalhavam os amigos que estavam presos e sendo torturados, Dom Hélder organizou vigílias que ficaram famosas.
Dessas vigílias, então, nós saímos encorajados. É claro que havia medo, porque, afirmo do fundo do coração, nenhum de nós pode dizer como vai reagir diante da tortura (CASTRO, 2002, p. 154).

Dois missionários americanos eram ligados aos trabalhos pastorais e sociais da arquidiocese, Padre Lourenço e o protestante Tomás Capuano. Os dois missionários americanos, por serem pessoas próximas de Dom Hélder, também passaram pela terrível experiência de violência aplicada pelos militares. Dom Hélder relata o testemunho de tortura, que Lourenço e Capuano passaram presos na Delegacia de Roubos e Furtos:
Como se apanha nas delegacias!

Lourenço e Tomás contaram tudo que se passou com eles. Quando chegaram, receberam o “batismo”. Uns homens fortes, cuja presença entre tantos presos subnutridos ninguém sabe explicar bem, começaram a lhes das seguidas rasteiras, deixando os dois estendidos no chão cada novo golpe. Mal eles se levantavam, nova e violenta rasteira – e assim foi durante um boa meia hora para cada um, até completar-se o batismo, em meio às mais debochadas gargalhadas.

Era só o começo. À noite, um outro detento – ou pelo menos aparentemente um detento – levantou-se e, voz cheia e imperativa, dirigiu-se à comunidade da cela: – Bem, é bom que esses novatos saibam qual é a regra aqui da casa. Aqui não há mulher. Então, cada homem pega o seu homem. E ai de quem se meter a besta! Eu tenho aqui uma lista de castigo. O primeiro deles é comer toda a obra da gente, de manhã” (Ibidem, p. 173-174).

Após o relato de tortura dos missionários, Padre Lourenço e o protestante Tomás Capuano, a arquidiocese de Olinda e Recife divulgou uma nota oficial sobre o assunto, condenando a violência que os dois missionários sofreram na prisão.
A atuação e o pensamento humanitários de Dom Helder Câmara, foram tão divulgados mundo afora, que são reconhecidos também pelas autoridades eclesiásticas e políticas. Ele deixou um legado de coragem, de proximidade, de ajuda aos pobres e de defesa dos injustiçados, que lhe fez ser declarado Patrono Brasileiro dos Direitos Humanos pela Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados. O órgão técnico aprovou, por unanimidade, o Projeto de Lei 7230/14, no dia 27 de dezembro de 2017.

Dom Paulo Evaristo Arns

Dom Paulo Evaristo Arns (1921-2016) foi um frade franciscano, que se tornou arcebispo de São Paulo, na década de 1970, período da Ditadura Militar, e depois se tornou cardeal brasileiro. Ele é outro símbolo na defesa dos Direitos Humanos, e considerado inimigo da Ditadura Militar.

Nasceu em Forquilhinha, Santa Catarina, no dia 14 de setembro de 1921. Era irmão da fundadora da Pastoral da Criança, Zilda Arns, que foi morta em 2010, no terremoto ocorrido em Porto Príncipe, capital do Haiti, onde realizava trabalhos humanitários. Foi ordenado padre em 30 de novembro de 1945, em Petrópolis, Rio de Janeiro onde, por dez anos, exerceu o ministério pastoral dando assistência à população carente de Petrópolis.
Em 1970, o Papa Paulo VI o nomeou Arcebispo Metropolitano de São Paulo. No ano seguinte, Dom Paulo criou a Comissão Brasileira Justiça e Paz, da diocese de São Paulo, para denunciar os abusos do Regime Militar. Nessa época, peregrinava de quartel em quartel, usando sua influência para libertar dezenas de presos políticos. E em 1973, Dom Paulo foi promovido a cardeal pelo Papa Paulo VI.
Dom Paulo Evaristo, como bispo atento aos pobres, vendeu o Palácio Episcopal Pio XII. Com o dinheiro da venda da mansão, Dom Paulo conseguiu erguer mais de 1200 centros nas periferias, onde incentivou a constituição de mais 2000 comunidades eclesiásticas de base (CEBs), que se articulavam no combate à desigualdade e à miséria.

Dom Paulo, como outros bispos, foi influenciado por Dom Hélder Câmara, na luta por justiça, na defesa dos Direitos Humanos e na denúncia contra as violações da dignidade das pessoas, causadas pela Ditadura Militar. Afirma Comblin: “Abriu os olhos dos seus colegas bispos (…), e a forte personalidade de D. Paulo Evaristo Arns, arcebispo de São Paulo, com quem mantinha uma amizade privilegiada” (COMBLIN, 2009, p. 226).

Dom Paulo, a exemplo de Dom Hélder, não tinha medo de enfrentar os militares. Isso pode ser percebido nas palavras do Padre Júlio Lancellotti, quando ele fala das visitas dos bispos aos presos:

À época em que foi bispo auxiliar de São Paulo, dom Paulo foi ao presídio de Tiradentes, onde estavam vários presos políticos. Quando chegou lá, o general perguntou quem ele era, ele se apresentou como bispo auxiliar, e o general respondeu que o bispo auxiliar não poderia entrar no presídio. Depois de um tempo, dom Paulo voltou ao presídio e o general insistiu que, como bispo auxiliar, ele não poderia entrar lá, então ele respondeu que acabava de ser nomeado arcebispo de São Paulo. Estou contando isso para mostrar que a vida de dom Paulo foi marcada por essa coragem em relação ao outro, em defesa do outro (LANCELLOTTI, 2016)
A atuação de Dom Paulo contra a repressão da ditadura ganhou destaque já em 1969, quando passou a defender seminaristas dominicanos presos por ajudarem militantes opositores, como foi relatado nesse texto:
A repressão militar escolheu justamente as pessoas mais democráticas e ativas de nossa sociedade civil e religiosa. No momento em que tomei posse como arcebispo da Arquidiocese de São Paulo, encontravam-se presos uns quinzes religiosos e nenhum deles mereceu a condenação que atingiu os confrades dominicanos de maneira tão injusta e pesada (ARNS, 2000, p. 15).
Em março de 1973, Dom Paulo presidiu a “Celebração da Esperança”, em memória de Alexandre Vannucchi Leme, estudante universitário morto pela ditadura, como ato religioso e político, em sinal de protesto contra a morte do jovem:

A missa foi celebrada na Catedral da Sé por D. Paulo Evaristo Arns, cardeal-arcebispo de São Paulo, em 30 de março de 1973. O ato religioso foi marcado para começar às 18h30min, mas por volta das 16 horas o centro de São Paulo estava tomado por veículos policiais e tropas de choque. Pelo menos 3 mil pessoas conseguiram passar pelas barreiras e chegar à igreja. A Cidade Universitária da USP foi bloqueada pela polícia e foram presos dezenas de estudantes que tentavam ir à missa (COMISSÃO DA VERDADE – SP).
Em outubro de 1975, celebrou, na Catedral da Sé, o histórico culto ecumênico em honra de Vladimir Herzog, jornalista que foi preso ilegalmente, torturado e morto pelo Regime Militar que o via como inimigo político.

Na quarta-feira, 19 de julho, aconteceu algo ainda mais simbólico, algo que produziu um marco histórico ao ligar dois momentos-limite do Brasil: uma missa na Catedral da Sé, em São Paulo. O homem que encarnava essa ponte era Audálio Dantas. Em 31 de outubro de 1975, ele era presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo e um dos articuladores do culto ecumênico que assinalava o sétimo dia da morte de Vladimir Herzog, assassinado pela ditadura civil-militar. O culto foi celebrado pelo arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns, pelo rabino Henry Sobel e pelo pastor presbiteriano Jaime Wright. Foi o maior ato de repúdio ao regime de opressão, ao reunir oito mil pessoas diante da catedral. É conhecido como “o dia em que a ditadura começou a cair” (BRUM, 2017).

Dom Paulo Evaristo Arns foi um dos mentores do projeto Brasil: Nunca Mais, desenvolvido em parceria de algumas lideranças religiosas e sociais, como o Rabino Henry Sobel, o Pastor presbiteriano Jaime Wright e equipe. O trabalho foi realizado clandestinamente, entre 1979 e 1985, durante o período final da ditadura militar no Brasil. Esse trabalho gerou uma importante documentação em forma de livro, sobre a história do Brasil, de violação dos direitos humanos. Relata o Padre Júlio Lancellotti sobre esse trabalho de Dom Paulo:
Inclusive foi ele quem levou a documentação dos desaparecidos políticos à Argentina para o Papa João Paulo II, porque ele estava à frente do grupo de defesa dos direitos humanos do Cone Sul. Ele também esteve na origem do Projeto Brasil: Nunca Mais, junto com o pastor presbiteriano Jaime Wright, e foi ele quem chamou os rabinos para fazer um momento de oração pelo Vladimir Herzog, na ocasião da sua morte, naquele dia em que a catedral estava cercada pelo exército. Além disso, era ele quem telefonava para o Golbery do Couto e Silva com a lista dos presos na mão, dizendo que gostaria de saber onde eles estavam (LANCELLOTTI, 2016).

Nessa obra, considerada um testamento de registro de horrores cometidos pelos militares, Dom Paulo, ao introduzi-la para os leitores, relata a sua experiência com familiares de presos e com os próprios presos:

Durante os tempos da mais intensa busca dos assim chamados “subversivos”, atendia eu na Cúria Metropolitana, semanalmente, a mais de vinte, senão cinquenta pessoas. Todas em busca de paradeiro de seus parentes
Um dia, ao abrir a porta do gabinete, vieram ao meu encontro duas senhoras, uma jovem e outra de idade avançada.

A primeira, ao assentar-se em minha frente, colocou de imediato um anel sobre a mesa, dizendo: “É a aliança de meu marido, desaparecido há dez dias. Encontrei-a, esta manhã, na soleira da porta. Sr. Padre, que significa essa devolução? É sinal de que está morto ou é um aviso de que eu continue a procurá-lo?
Até hoje, nem ela nem eu tivemos resposta a essa interrogação dilacerante (CASTRO, 2002, p. 11)

Dom Paulo era também procurado por mães dos filhos mortos e desaparecidos na ditadura militar no Brasil. “Como Arcebispo de São Paulo, por 28 anos, soube dizer uma palavra evangélica, pastoral, política e adequada para o momento histórico do Brasil. Isso é o homem no lugar essencial” (ALTEMEYER, 2016). Ele era uma personalidade religiosa-política, que fazia a mediação entre o regime autoritário e as famílias dos presos. Diz o bispo:

A senhora mais idosa me fez a pergunta que já vinha repetindo há meses: “O senhor tem alguma notícia do paradeiro do meu filho?” Logo após o sequestro, ela vinha todas as semanas. Depois reaparecia de mês em mês. Sua figura se parecia sempre mais com a de todos as mães de desaparecidos. Durante mais de cinco anos, acompanhei a busca de seu filho, através da Comissão Justiça e Paz e mesmo do Chefe da Casa Civil da Presidência da República. O corpo da mãe parecia diminuir, de minha visita. Um dia também ela desapareceu. Mas seu olhar suplicante de mãe jamais se apagou de minha retina (CASTRO, 2002, p. 11-12)

Como alternativa na defesa dos Direitos Humanos ameaçados e violentados pela Ditadura Militar, em 1972, Dom Paulo criou a Comissão Justiça e Paz, em São Paulo. Um Organismo da Igreja Católica comprometido com o serviço do desenvolvimento humano integral à luz do Evangelho e na tradição dos ensinamentos sociais da Igreja. Um de seus objetivos é desenvolver reflexões acerca de estruturas e acontecimentos que contrariem aspirações e propósitos de justiça, ética e paz ou concorram para a degradação da pessoa humana, denunciando-os publicamente.

Dom Paulo através da Comissão, tinha acesso ao inquérito de tortura, ou ameaça de tortura, no entanto, chega ser um absurdo as ações violentas do regime contra aqueles que eram presos:
O engenheiro, antes de prestar o depoimento à Comissão Justiça e Paz, relata o seu drama.
Nada tinha a temer, quando foi preso. Como, no entanto, ouvira que a tortura era aplicada a quem não confessasse, ao menos, alguma coisa, foi preparando a mente para contar minuciosamente tudo que pudesse, de qualquer forma, ser interpretado como sendo contrário ao regime.

Após tomarem seus dados pessoais, fizeram-no assentar-se, de imediato, na cadeira do dragão e, a partir desse momento, conta-me ele: “Tudo se embaralhou” (BRASIL NUNCA MAIS, 1985, p. 12)
O regime autoritário com os seus métodos violentos de tortura psicológica e física, desumanizava os militares que assumiam o papel de algozes dos presos, como comenta Dom Paulo:
Quem uma vez pratica a ação, transforma-se diante do efeito da desmoralização infligida. Quem repete a tortura quatro ou mais vezes se bestializa, sente prazer físico e psíquico tamanho que é capaz de torturar até as pessoas mais delicadas da própria família! (Ibidem, p.13)

Para a Igreja, toda pessoa tem o direito de ser respeitada e é também, sujeito de direitos. Por defender e concretizar esse ideal, durante o período de repressão, muitos cristãos evangélicos e católicos foram perseguidos, presos, torturados e até mortos pelo regime militar. Principalmente, o núcleo dos católicos progressistas começou a ser perseguido pelo regime militar, o que desencadeou da parte deles, um engajamento que os fez combater veementemente a ditadura.

Sobre a prisão de agentes de pastoral, inseridos na Ação Católica, movimento que tinha uma linha de esquerda, relata Dom Paulo:
Quando foram presos os líderes da Ação Católica Operária, em fins de janeiro de 1974, tive ocasião de passar quatro tardes inteiras, no interior do Deops, na esperança de avistar-me com eles. Eu havia sido chamado para tanto, de Curitiba, onde passava os dias com todos os irmãos, que confortavam a mãe e seus últimos dias de vida (Ibidem)
Para Dom Paulo, os injustiçados não tinham etnia, gênero, classe social, política ou econômica, contudo, além de defender pessoas desconhecidas para a sociedade como um todo, ele também defendeu uma personalidade reconhecida mundialmente, o ativista de direitos humanos, o argentino Adolfo Perez Esquivel, ganhador do Prêmio Nobel da Paz, em 1980. O próprio ativista relata a atuação do bispo em sua defesa, quando foi preso pelos militares com o objetivo de fazer com que ele denunciasse outros opositores ao regime no Brasil:

Em 1975, foi muito difícil, porque eles colocaram um capuz na minha cabeça, uma gravação de gritos de pessoas sendo torturadas e levantavam um pouco o capuz somente para que eu pudesse identificar latino-americanos que eles perseguiam.
Eu disse que não conhecia ninguém. Eram três interrogadores – um muito duro que dizia que iam me matar, que iam me torturar, outro que dizia que era conveniente que eu falasse e outro que queria se fazer de meu amigo, que estava ali para me ajudar. O cardeal me salvou duas vezes. Dom Paulo, certamente, falou com autoridades do Brasil para que eu fosse liberado. Mas não sei as gestões exatas que ele fez. O que sei é que ele não perdeu tempo em organizar uma manifestação na porta da delegacia para me salvar. E me salvou (ESQUIVEL, 2014)

Dom Paulo era um pastor combativo na defesa dos Direitos Humanos, procurando amparar quem estava sendo oprimido, sofrendo e passando por dificuldades. Como bispo, ele tinha consciência sobre o papel e o lugar do cargo que exercia, e usava dessas prerrogativas para defender os injustiçados. Ele defendia a Igreja comprometida com o evangelho de Jesus, que é base para os direitos da dignidade humana.
Por isso, como reconhecimento por sua atuação humanitária, recebeu vários prêmios no Brasil e no exterior, como o Prêmio Nansen do Alto Comissariado da ONU para Refugiados (Acnur), o Prêmio Niwano da Paz (Japão), e o Prêmio Internacional Letelier-Moffitt de Direitos Humanos (EUA). E no dia 21 de julho de 2018, em São Paulo, a sua vida e trajetória, se tornaram tema de exposição do Centro Cultural dos Correios.

Considerações finais

A Igreja ao longo da história, em diferentes contextos, respondeu à sua missão de promover e defender os Direitos Humanos. Essa missão foi concretizada no Brasil, através da ação pastoral de Dom Hélder e Dom Paulo Evaristo Arns, na luta contra a Ditadura Militar, em defesa dos presos torturados pelo regime autoritário.
Dom Hélder e Dom Paulo agiram pastoral e politicamente, porque eram pastores que tinham uma visão integral do cristianismo, traduzida no amor aos sem voz: pobres, presos torturados e seus familiares desolados, injustiçados pelo regime militar.

Os dois bispos foram considerados inimigos da Ditadura Militar, mas ao mesmo tempo, eram amados e procurados pelas pessoas que eram desrespeitadas em seus direitos.
A atuação de Dom Hélder e Dom Paulo Evaristo Arns na defesa dos Direitos Humano, é um legado religioso e pastoral, registrado na história da Igreja e do Brasil, que se tornou um referencial global de luta em prol da dignidade do ser humano, principalmente do injustiçado.

Pe. José Cristiano Bento dos Santos

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

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BRUM,Eliane. E se a classe média de Pinheiros tivesse se omitido? A reação diante do assassinato do carroceiro risca um limite no país sem limites. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.br> Acesso: 20 de julho de 2018.
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RODRIGUES, Leandro Garcia. Cartas de Esperança em tempo de Ditadura: Frei Betto e Leonardo Boff escrevem à Alceu Amoroso Lima. Petrópolis: Rio de Janeiro: Vozes, 2015.
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