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ESPECIAL CANUDOS – População mantém hábitos centenários e enfrenta novos desafios

O presente é uma semente,/ que no futuro vai germinar./ Mas foi retirada do passado,/ como plantar e cultivar./ Mostrando a forma certa,/ como uma fruta ela pode dar.

Tentaram destruir essa semente,/ que no Belo Monte germinou./ A cinza virou adubo e a semente de novo brotou,/ resgatando e valorizando a história/ de resistência, humildade e amor.

Somos jovens canudenses,/ temos orgulho em dizer./ Pois queremos contar e multiplicar/ nossas riquezas com você./ Partilhar laços de amizade/ é o que queremos promover.

Os versos acima são de um cordel recitado por Laeú José dos Santos, vaqueiro e agricultor do município de Canudos, na Bahia, na mais recente apresentação do filme “O Mar de Antônio Peregrino”. A película conta a história da lendária localidade, seu povo e do líder popular Antônio Conselheiro. Mais do que isso, o cordel de Laeú mostra que Canudos vive, real e concreto, guardando hábitos centenários e enfrentando novos desafios.

A exposição do filme ocorreu uma semana atrás em Feira de Santana (BA), durante o Encontro de Comunicação Popular organizado pelo “Jornal Voz das Comunidades”, que teve participação das CEBs e cujo resumo pode ser acessado neste link.

Mendel e jovens canudenses na sede do Movimento das Comunidades Populares (MCP), em Feira de Santana

A película veio acompanhada de um teatro sobre a história de Canudos, músicas, comidas típicas como o mungunzá, produtos artesanais, cds e dvs com músicas marcadas pela zabumba, pífano e a sanfona, além de depoimentos de descendentes de conselheiristas. É um projeto de cinema itinerante. Corresponde a uma das fontes de renda de jovens que moram no município e que, a partir do passado, tentam resistir às incertezas de ir para cidades maiores, quando não para metrópoles do Sudeste.

O filme foi dirigido pelos cineastas Mendel Hardeman e Susanne Dick e é resultado de um trabalho de sete anos. Apaixonado pela história de Canudos (contada por Euclides da Cunha em “Os Sertões”), que leu aos 12 anos, quando morava no Paraná, o holandês iniciou as filmagens em 2007 ao visitar o lugar com a esposa. Por alguns anos rodaram a Europa apresentando a película, até concluírem que o povo da cidade é que deveria se beneficiar com o material. “Isso ocorreu um tempo atrás, quando fui mostrar o filme à população e vi que crianças que fizeram parte das filmagens haviam se tornado jovens e estavam indo para fora em busca de trabalho”, comentou Mendel. Confira detalhes aqui. 

 

Fruto teimoso

Canudos possui cerca de 16 mil habitantes, metade na área urbana e metade na zona rural. É um fruto teimoso, plantado no século XVII, numa aldeia próxima de uma fazenda de nome Canudos e às margens do rio Vaza-Barris. De 1893 a 1897, rebatizado de Belo Monte, viveu o sonho de uma terra autogovernada, baseada nas próprias riquezas e vida comunitária, com milhares de camponeses e indígenas, negras e negros antes escravizados. Por isso Conselheiro despertou a ira da República e dos coronéis, sendo derrubado com o povoado, apesar da brava resistência.

 

“Esse filme é um estímulo à esperança, de um povo que cai e se levanta”, disse irmã Marcela

 

Teimoso, o fruto voltaria a ressurgir em 1910, a partir de antigas moradoras e moradores. Continuaria até 1969, quando o lugar foi “engolido“ por um açude há décadas planejado pelo governo. Em 1985, um lugarejo de nome Cocorobó, próximo da área inundada, se tornou município, passando a se chamar de Canudos. De meados ao final dos anos 90, a região viveu fortes secas e fez com que as ruínas sob o açude fossem vistas, cumprindo a profecia de Conselheiro, de que o sertão viraria mar e o mar viraria sertão.

Parte dessa história foi presenciada pela irmã Marcela Seewer. Ela integra o Movimento das Comunidades Populares (MCP) e trabalha com terapias alternativas no bairro de Campo Limpo, em Feira de Santana. A irmã participou em 1999 de uma romaria em memória aos 100 anos de Canudos, e na ocasião presenciou a diminuição do volume das águas da barragem. Algumas dessas imagens fazem parte do filme.

Após o filme canudenses fazem diálogo com o público

“Fiquei emocionada ao ver que estive ali. Na época, fizemos discussões em círculos bíblicos no Campo Limpo sobre o centenário e depois fomos pra romaria”, disse. “Quero trazer esse filme de novo para Feira de Santana, porque é um estímulo à esperança, de um povo que cai e se levanta. Vamos passar também para os jovens e as crianças… mostrar a elas que a riqueza somos nós, que devemos seguir em frente”, completou.

A primeira turnê nacional do filme propriamente dita será em breve em São Paulo e no Paraná, no sistema de “quem chama, banca a ida”. Os pedidos podem ser feitos pelo site do projeto. Pensa-se na edição de livros de cordéis de gente do povoado, assim como numa publicação sobre a história do lugar.

Professor de História da rede estadual em Feira de Santana, Erisval Souza assina embaixo a ideia da turnê. “Esse material é um grande livro de História, e bem melhor do que a maioria dos que se vê nas escolas, que contam tudo por cima, que mostram Conselheiro como fanático religioso e coisas do tipo”, falou. E emendou: “O que mais me chamou a atenção no filme é a fé desse povo, que acredita que peixe cai do céu, mandado por Deus, e que resiste à seca, à inundação, a tudo”.

 

A riqueza de Canudos

Parte da população de Canudos reivindica a importância de seu passado e da figura do Conselheiro, apesar das controvérsias. Há quem critique a importância do “beato” e quem diga que ele não só ensinou, mas também aprendeu muito com o povo que já morava no local. Teria assimilado e amplificado a vida comunitária e a economia de subsistência. Princípios representados por hábitos e costumes vistos até hoje em parte da cidade.

Olha o mungunzá, aí, gente!

Entre elas a criação de bode, ovelha e gado soltos na caatinga. Essa prática recebe o nome de “fundo de pasto”, pois os animais ficam espalhados nas partes de trás das pequenas propriedades. Cada animal recebe uma marca na orelha, com o sinal da família proprietária. Quando algum deles é encontrado perdido ou machucado, quem o achou cuida, faz os curativos e o entrega para a dona ou dono. Assim também ocorre com os bois bravos, pegos de forma coletiva pelos vaqueiros.

O coletivismo também se expressa nos mutirões para reformar igrejas ou erguer casas. Sobras de colheitas são repartidas com vizinhas e vizinhos. Valoriza-se a medicina natural e ainda há algumas rezadeiras na região. As crianças também são educadas “soltas”, e uma mãe fica de olho nas “crias” da outra.

Canudos possui uma Associação de Fundo de Pasto há 16 anos, que toma decisões em coletivo e busca ampliar as fontes de ganho da população. Entre as vitórias da entidade estão a conquista de uma biblioteca comunitária, água potável e melhorias quanto à energia elétrica, o que se conseguiu após pressionar a Câmara de Vereadores. A população organizada investe na produção de cerveja caseira à base de umbu e artesanato com materiais recicláveis.

Esses elementos se somam à apresentação do filme e compõem o que se chama de turismo de vivência. É mais uma forma de resistir às ameaças causadas pela instalação de eólicas e da extração de minério.

A primeira turnê do filme será em São Paulo e Paraná, no sistema de “quem chama, banca a ida”. Os pedidos podem ser feitos pelo site do projeto. Pensa-se na edição de livros de cordéis de moradoras e moradores do povoado, assim como numa publicação sobre a história do lugar.

Gibran Lachowski, da Assessoria de Comunicação das CEBs Regional Oeste 2 (Mato Grosso)

5 Comments

  • Luzimar Chaves

    Nunca li nada tão verdadeiro… É a história viva de um povo que resiste e tem esperança. E é feliz na sua simplicidade, na sua forma de vida. Parabens Gilbran.

  • Maria José Soares Oliveira

    Sempre fui curiosa a respeito da história de Canudos e fico imaginando como seria bom se as pessoas pensassem mais no coletivo. Viva Antônio Conselheiro!

    • Ana Paula Carnahiba

      Olá, Alexandre. Ficamos felizes com sua leitura e contato pedindo informações. Vc pode consegui-las no site http://www.canudos.org, que é o site do projeto do cine itinerante. E também pode contatar o diretor e a diretora do filme, Mendel Hardeman e Susanne Dick, pelos nomes dele e dela no facebook.

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