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A “Igreja em saída” de Bergoglio: adesões e resistências do clero brasileiro Oscar Beozzo

O Papa “quer uma Igreja em saída, que aceite sujar pés e mãos para socorrer os necessitados e que seja um hospital de campanha para os feridos nas vicissitudes da vida”.

O professor Oscar Beozzo elenca vários avanços de Francisco nesses cinco anos de pontificado. Entretanto, aponta como central a perspectiva da “Igreja em saída”. Ele destaca que o Papa “quer uma Igreja em saída, que aceite sujar pés e mãos para socorrer os necessitados e que seja um hospital de campanha para os feridos nas vicissitudes da vida”. E acrescenta, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line: “[esse Papa] recolocou o exercício da política como imprescindível, qualificando-a, na linha de Pio XII e Paulo VI: A política é uma das formas mais elevadas da caridade, do amor!”. Partindo desse ponto, Beozzo analisa a recepção desses cinco anos de Francisco na Igreja brasileira. Recorda que a passagem do Papa pela Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro revelou o espírito do novo sucessor do trono de Pedro. A simplicidade e a necessidade de estar entre o povo trouxeram uma adesão entusiasmada.

Porém, com o passar do tempo, percebeu-se que há fraturas nessa adesão. “O entusiasmo com Francisco foi menor entre parte do clero mais jovem e seminaristas instados a sair da zona de conforto dos seminários e sacristias e lançar-se na aventura missionária a serviço dos pobres e excluídos”, aponta. Como consequência, o clero se torna pouco hábil para fazer a “Igreja em saída” na prática. “Encontram-se, por formação e por prática pastoral, distantes, de certa forma, dos problemas econômicos, sociais e políticos e carentes de instrumentos de análise, para compreender as causas da atual crise”, completa. Para o professor, tal resistência se dá porque grande parte desse clero é advindo de nunciaturas de pontificados anteriores. “Os bispos são respeitosos em relação ao Papa, mas têm dificuldade em percorrer os novos caminhos, em retomar as inspirações maiores do Vaticano II”, aponta, indicando que a mudança é um processo em desenvolvimento.

José Oscar Beozzo é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo – USP, mestre em Sociologia da Religião e especialista em Comunicação Social pela Université Catholique de Louvain, na Bélgica. Ainda possui especialização em História do Brasil pela Faculdade Auxilium de Filosofia, Ciências e Letras, de São Paulo, e graduação em Ciências Políticas e Sociais pela Université Catholique de Louvain, em Teologia pela Pontificia Università Gregoriana, de Roma, e em Filosofia pelo Seminário Central do Ipiranga/Seminário Central de Aparecida. Atualmente coordena o Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular – CESEP.

Confira a entrevista.

Quais os avanços e os limites de Francisco nesses seus cinco anos de pontificado?

Entre os avanços, o principal foi colocar os pobres, os descartados pelo sistema, os que se encontram à margem, os estigmatizados, no centro de sua atuação pastoral. Seu gesto de ir à Ilha de Lampedusa aonde chegam os migrantes da África, e silenciosamente lançar flores no mar onde mais 20 mil migrantes morreram afogados, ou o de trazer famílias de refugiados da guerra na Síria para serem acolhidos no Vaticano falam muito de suas prioridades.

Insiste com as igrejas particulares para que reassumam, na linha do Vaticano II, seu protagonismo e responsabilidades nas questões mais candentes do mundo de hoje e da Igreja.

Acolher e não excluir

Coloca como obrigação da comunidade eclesial “acompanhar, discernir e integrar a fragilidade” e desafia a tratar as dificuldades e tropeços na vida dos casais e da família em chave pastoral, com ênfase na misericórdia e não em exclusões e condenações. Assim, quer uma Igreja em saída, que aceite sujar pés e mãos para socorrer os necessitados e que seja um hospital de campanha para os feridos nas vicissitudes da vida.

Construir pontes e não muros

As migrações explodiram em todo o mundo, por conta de guerras e conflitos políticos, por conta da crise econômica e desastres climáticos, como secas prolongadas, inundações, desertificação de extensas áreas. A reação aos refugiados e migrantes por parte dos governos tem oscilado entre acolhida mais ou menos restritiva e agressiva política de fechar fronteiras, construir barreiras e muros, expulsar os indocumentados. Em sua viagem ao México, em plena campanha eleitoral nos Estados Unidos e diante da proposta do então candidato Donald Trump de construir um muro na fronteira entre os dois países, o papa Francisco foi enfático: devemos construir pontes, e não erguer muros entre as nações e povos.

O diálogo e a paz a qualquer custo

O Papa também se empenhou para abrir portas para o diálogo. Convidou o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, o presidente de Israel, Shimon Peres, líderes religiosos judeus, muçulmanos e cristãos a se comprometerem com o diálogo e a reconciliação e a orarem juntos pela Paz nos Jardins do Vaticano. Ajudou a intermediar o diálogo entre Cuba e Estados Unidos, para que reatassem, depois de 60 anos, as relações diplomáticas, facilitassem as visitas para o reencontro entre familiares e que fossem suspensos os aspectos mais onerosos para a população no embargo comercial como o que pesava sobre os medicamentos, alimentos ou remessa de recursos às famílias. Deu importante contribuição para os acordos de paz entre o governo e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – FARC na Colômbia, pondo um ponto final a mais de seis décadas de guerra civil, com milhares de mortos e mais de sete milhões de pessoas deslocadas das zonas de conflito armado.

Além disso, vem se empenhando para que o impasse entre governo e oposição na Venezuela seja superado e que países deixem de intervir para agravar a situação e exacerbar os conflitos. Com paciência vem tentando um diálogo para superar a ruptura promovida pelo governo chinês após a revolução de 1949 e amenizar a difícil situação dos católicos no país.

Vaticano II, inspiração e compromisso

Retomou as grandes intuições do Vaticano da Igreja, como povo de Deus, o protagonismo dos leigos, a presença da Igreja no mundo, o diálogo ecumênico e inter-religioso, a centralidade da palavra de Deus, condenando uma igreja autorreferencial, centrada no clero e afastada das alegrias e esperanças, das tristezas e angústias dos homens e mulheres de hoje, sobretudo dos pobres.

O cuidado com a casa comum

Causou grande impacto dentro, mas talvez mais ainda fora da Igreja com sua encíclica Laudato Si, sobre o cuidado com a casa comum. Acolheu a contribuição de cientistas e universidades, o aporte de outras Igrejas cristãs, como o empenho do Patriarca Ecumênico Bartolomeu de Constantinopla, de um místico muçulmano sufi, de poetas e filósofos, mostrando o quanto a sobrevivência do planeta e da própria vida é um empenho que pode e deve unir toda a humanidade.

Terra, trabalho e teto e os movimentos sociais

Papa Francisco buscou estabelecer um diálogo com os Movimentos Sociais de todo o mundo, convidando-os para encontros e instando-os a buscar saídas para uma globalização que vem gerando exclusão e indiferença frente aos sofrimentos e angústias das maiorias. No primeiro encontro, em outubro de 2014, em Roma, ficaram célebres as três palavras evocadas, para definir os instrumentos necessários para garantir a vida e dignidade das pessoas: Terra, Trabalho e Teto. No segundo encontro, de 7 a 9 de julho de 2015, em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, foram publicados um manifesto, um decálogo e um compromisso. Francisco destacou dentre os frutos desse encontro: colocar a economia a serviço dos povos, construir a paz, a justiça e defender a Mãe Terra. Acrescentou: “falamos da necessidade de uma mudança para que a vida seja digna, uma mudança de estruturas; além disto, de como vocês, os movimentos populares, são semeadores desta mudança, promotores de um processo em que convergem milhares de pequenas e grandes ações concatenadas em modo criativo, como em uma poesia; por isto quis vos chamar “poetas sociais”; e temos também elencado algumas tarefas imprescindíveis para caminhar em direção a uma alternativa humana diante da globalização da indiferença.

No terceiro encontro, encerrado pelo Papa no Vaticano no dia 5 de novembro de 2016, quis aprofundar o intercâmbio entre os movimentos sociais e as Igrejas nacionais. Denunciou o “terrorismo” de um sistema econômico a serviço do lucro e acumulação de uns poucos e a ditadura econômica global que levanta muros entre classes sociais e países. Insistiu na construção de pontes e do amor e na busca de caminhos para enfrentar o drama dos migrantes, refugiados e deslocados. Recolocou o exercício da política como imprescindível, qualificando-a, na linha de Pio XII e Paulo VI: A política é uma das formas mais elevadas da caridade, do amor!

Em que medida podemos afirmar que a Igreja no Brasil compreende e adere ao ministério de Bergoglio?

Oscar Beozzo – Houve uma alegre acolhida da mensagem libertadora do papa Francisco, da sua proximidade com o povo, simplicidade de vida e atitudes, experimentadas logo no início do seu pontificado com a sua vinda para a Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro, em julho de 2013. A Evangelii Gaudium e a Laudato Si’ provocaram impacto favorável e fizeram renascer muitas esperanças. A Exortação Amoris Laetitia já suscitou mais controvérsia e reação aberta de setores conservadores.

O entusiasmo com Francisco foi menor entre parte do clero mais jovem e seminaristas instados a sair da zona de conforto dos seminários e sacristias e lançar-se na aventura missionária a serviço dos pobres e excluídos. Tem que se tomar em consideração o fato de que em 01/04/2018, dos 476 bispos do Brasil entre eméritos e em função, grosso modo, 50% foram nomeados por João Paulo II e 25% por Bento XVI. O restante se divide entre 41 eméritos que vêm do pontificado de João XXIII (2) e Paulo VI (39) e os 81 nomeados por Francisco. Ou seja, cerca de 16% do episcopado. Se tomarmos em conta, os bispos com responsabilidades pastorais, cerca de 25%, um quarto do episcopado foi nomeado pelo papa Francisco.

O perfil das nomeações de João Paulo II e de Bento XVI era distinto do pretendido hoje por Francisco no seu projeto de Igreja em saída. Os bispos são respeitosos em relação ao Papa, mas têm dificuldade em percorrer os novos caminhos, em retomar as inspirações maiores do Vaticano II, a herança das Conferências do episcopado latino-americano de Medellín a Aparecida e a tradição do empenho social e político da Igreja do Brasil em favor da causa dos pobres e excluídos. Estão mais voltados para a administração interna da Igreja. Sentem-se mais comprometidos com a formação do clero do que dos leigos e leigas, mais preocupados com a liturgia e os sacramentos, a moral e os bons costumes. Encontram-se, por formação e por prática pastoral, distantes, de certa forma, dos problemas econômicos, sociais e políticos e carentes de instrumentos de análise, para compreender as causas da atual crise. Ficam à mercê dos noticiários das redes de televisão e da opinião de jornais ou revistas. Acodem os pobres, como parte das obras de misericórdia e da caridade, sem se interrogar sobre as causas estruturais dessa situação e as maneiras para se buscar uma saída em aliança com os movimentos sociais. Têm dificuldade para compreender e lidar com as próprias pastorais sociais da Igreja, deixando por vezes de incentivá-las e chegando até a proibi-las em suas dioceses.

No Brasil, especialmente durante a ditadura militar, a Igreja teve um protagonismo nos enfrentamentos para assegurar direitos humanos. Hoje, diante dos desafios propostos pelo Papa para que saia de si mesma, como observa a atuação da Igreja diante de problemas como crise política, econômica e social, além de diversas formas de ataques a direitos essenciais?

O agravamento da situação social e política, com o desmonte das políticas públicas, o congelamento por 20 anos dos investimentos sociais, disparada do desemprego, a violação de territórios indígenas e o aumento de chacinas no campo e na cidade, a liquidação de direitos trabalhistas e uma proposta de reforma da previdência que mantém e amplia privilégios de magistrados, membros do ministério público, políticos e militares, ao mesmo tempo em que elimina direitos das maiorias e onera os mais vulneráveis, acendeu um sinal de alerta e despertou a Igreja católica e as outras Igrejas cristãs.

Multiplicaram-se os pronunciamentos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB: sobre a PEC 287/16; sobre a Reforma da Previdência (23/03/17); em defesa dos direitos indígenas e do Conselho Indigenista Missionário – CIMI (22/06/17); aos trabalhadores/as do Brasil (27/04/17); sobre o grave momento nacional (03/05/17). Bispos da Arquidiocese de Belo Horizonte MG (20/03/17) e da Província eclesiástica de Natal, RN (05/04/17) pronunciaram-se no mesmo sentido. A Comissão Brasileira de Justiça e Paz, o Conselho Nacional de Leigos, a Conferência dos Religiosos do Brasil, a Pastoral Operária Nacional, as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs do estado de São Paulo, a Ordem franciscana e os dominicanos, Centros, como o Centro de Estudos Bíblicos – CEBI, Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular – CESEEP, Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade de Petrópolis – CAALL, a Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de Brasília somaram-se às denúncias e protestos.

No campo ecumênico, o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil – CONIC expressou seu apoio à greve geral de 28 de abril de 2017 contra a reforma trabalhista e da previdência social. Entre as Igrejas evangélicas houve fortes pronunciamentos da direção geral da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil – IECLB e das mulheres luteranas nos 500 anos da Reforma; dos Presidentes e Representantes das Igrejas Evangélicas históricas do Brasil (IELB, IPU, IECLB, RENAS, IPB, IMB) em 23/03/17; da Câmara Episcopal da Igreja Episcopal Anglicana (05/04/17).

A grande mídia praticamente ignorou todos esses pronunciamentos, e as Igrejas, por outro lado, perderam nesses últimos anos sua capacidade de mobilização social e muitos dos laços com os movimentos operários, sindicais e populares. Em todo caso, pela primeira vez, todas as centrais sindicais endereçaram um público agradecimento à CNBB pelo apoio da entidade e de mais de uma centena de bispos à greve geral de repúdio às reformas trabalhista e previdenciária.

Qual a sua leitura sobre as viagens de Francisco, especialmente a países da América Latina, como Chile e Peru mais recentemente? O que o difere de outros pontífices?

As viagens à América Latina começaram no ano de sua eleição. Veio em 2013, esteve no Brasil para a Jornada Mundial da Juventude (22 a 29 de julho). Em 2015, foi ao Equador, Bolívia e Paraguai (5 a 13 de julho) e depois a Cuba (19 a 22 de setembro), de onde prosseguiu viagem aos Estados Unidos (22 a 27 de setembro). Em 2016, viajou ao México (12 a 18 de fevereiro) e, no caminho, parou em La Habana para encontrar-se com o Patriarca Kiril da Igreja Ortodoxa Russa, quando assinaram declaração conjunta sobre o propósito das duas Igrejas de superarem as divisões seculares, trabalharem pela unidade e aprofundarem a cooperação mútua. Foi quando destacou: “O nosso olhar volta-se para as pessoas que se encontram em situações de grande dificuldade, em condições de extrema necessidade e pobreza, enquanto crescem as riquezas materiais da humanidade. Não podemos ficar indiferentes à sorte de milhões de migrantes e refugiados que batem à porta dos países ricos. O consumo desenfreado, como se vê em alguns países mais desenvolvidos, está gradualmente esgotando os recursos do nosso planeta. A crescente desigualdade na distribuição dos bens da Terra aumenta o sentimento de injustiça perante o sistema de relações internacionais que se estabeleceu”. Em 2017, viajou à Colômbia (6 a 11 de setembro). Em 2018, foi ao Chile e ao Peru (15 a 22 de janeiro de 2018). Visitou, ao todo, nove países.

Pela novidade e pela imediata empatia que estabeleceu com as multidões que o acolheram, certamente a viagem ao Brasil foi marcante e projetou uma imagem positiva do Papa para o país, para a América Latina e o mundo. Soube cativar os jovens, parou para orar junto com um pastor pentecostal e sua comunidade que estavam acolhendo os peregrinos numa favela, entrou imprevistamente numa casa para visitar uma família; estabeleceu um diálogo de alto nível com intelectuais e lideranças de outras igrejas cristãs e religiões.

As visitas a Cuba e a Colômbia foram recebidas como signo do seu firme compromisso com a justiça, a reconciliação e a paz. Mais conflituosa foi sua visita ao Chile. Numa Igreja e sociedade divididas pelo escândalo do Pe. Fernando Karadima , sua defesa do bispo Juan Barros , do grupo União Sacerdotal do citado Karadima, acusado de encobrir abusos sexuais, provocou desconforto, muita controvérsia e empanou outros aspectos da visita.

No Peru, ao contrário, seu encontro com representantes dos povos indígenas no dia 19 de janeiro em Puerto Maldonado foi de grande empatia mútua e de compromissos mútuos para o presente e o futuro: “a Igreja não é alheia aos vossos problemas e à vossa vida, não quer ser estranha ao vosso modo de viver e de vos organizardes. Precisamos que os povos indígenas plasmem culturalmente as Igrejas locais amazônicas. E, a propósito, encheu-me de alegria ouvir um dos textos da Laudato Si’ ser lido por um diácono permanente da vossa cultura. Ajudai os vossos bispos, ajudai os vossos missionários e as vossas missionárias a fazerem-se um só convosco e assim, dialogando com todos, podeis plasmar uma Igreja com rosto amazônico e uma Igreja com rosto indígena. Com este espírito, convoquei um Sínodo para a Amazônia no ano de 2019.”

Fonte: IHU On-Line

Entrevista de  João Vitor Santos

Contribuição de Magda Melo CEBs MG

Foto Julio Henrique Oliveira

 

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