Shadow

As pestes, as maldições e os castigos estão aí: falta alguém que escute a voz de Deus e faça a sua vontade

Por João Ferreira Santiago*

Está decretado e promulgado pelo inconsciente coletivo de nossa aldeia o princípio ético das milícias: primeiro que existem algumas pessoas que devem morrer. Pessoas idosas, hipertensas, diabéticas, pessoas com AIDS e com câncer; segundo que existem certas pessoas que merecem morrer. Pessoas negras, feministas, homoafetivas, “inválidas” por alguma mutilação no trabalho; terceiro que existem pessoas que precisam morrer. Militantes de esquerda, ativistas ambientais, militantes que defendem educação pública e de qualidade, principalmente na universidade. Por fim, existe um tipo de pessoas que é preciso dá um fim, e esse tipo é especialmente perigoso, tão perigoso que se divide em dois grupos, embora estejam em apenas um: um é formado por pessoas que pensam, o outro é formado por pessoas que pensam ao contrário das milícias que assaltaram com o consentimento da população, a nossa pobre república. E a razão é muito simples! As milícias representam com louvor, os interesses das elites brasileiras e os desejos da classe média. Com um item de fábrica importantíssimo: elas têm a “coragem” para executar. Este é o paradigma que nos governa hoje. Enquanto não tiver uma vacina, também não ocorrerão manifestações populares contra a maldição em forma de governo  e de hermenêutica jurídica que nos atinge a todos.

Uma das questões centrais nesta situação é que os dois lugares que melhor representam, tanto as elites, quanto a classe média, são o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional. Eles estão juntos e agem como lobos, em bandos. Não nos enganemos. Trarei apenas um exemplo desta representação para não me estender muito: a Lei supostamente feita pelo Congresso e velada pelo Supremo Tribunal Federal. Em dois casos ela causa náusea em qualquer estômago minimamente sadio e causa ojeriza a qualquer consciência que ainda seja capaz de sentir dor: a fiança e na prática nós sabemos que não existem crimes inafiançáveis em nosso país, apenas pessoas que não podem pagá-la; e a cela espacial para quem tem curso superior. Cada uma destas leis representa um joelho no pescoço de um negro ou de uma negra; de uma pessoa homossexual; de uma prostitua; de uma empregada doméstica; de um camelô; de um deserdado ou de uma deserdada da terra, para não esquecermos o mestre Paulo Freire. Poderíamos falar de um terceiro lugar que a cada dia representa um pouco mais as elites e a classe média: as Igrejas “cristãs” que pregam e vivem um “cristianismo” sem Cristo. Dá-me a impressão de que esses pobres com muito dinheiro, poder e prestígio, sentem-se bem com sensação de que compraram Deus! Imbecis e idiotas! Demônios que formam legiões de outros demônios que os têm como modelo.

Os poderes citados acima, incluindo as Igrejas que representam um “cristianismo” sem Cristo, talvez a religião que mais cresce neste momento; que pregam e vivem a teologia que matou João Batista, Jesus de Nazaré, Estêvão, Oscar Romero, Irmã Dorothy, Marielle Franco no Rio de Janeiro, George Floyd no Estado de Minnesota nos Estados Unidos, João Alberto em Porto Alegre, e tantos e tantas outros/as, só que o fazem em nome de Jesus. É aqui que se expressa a sua diabolicidade. É aqui que se gestam e se alimentam os golpes contra as políticas públicas; contra os Direitos Humanos; contra o Estado de Direito; contra a democracia; contra a vida, por fim. Como diz uma de nossas músicas populares, são ricos pobres. Ricos de dinheiro e pobres de amor. Se não podemos dizer que são todas as Igrejas, e não podemos mesmo, mas em todas elas tem lugar, às vezes privilegiado, para este “cristianismo” sem Cristo. O dito maldito e repetido sem pensar, hoje é um “mantra”, é um “salmo” em muitas Igrejas e na boca de muitas lideranças religiosas: “pagando bem, que mal tem?”. Os (in)fiéis repetem em coro. Destaca-se tristemente o silêncio, a omissão dos poderes e da sociedade civil. Têm cheiro de cumplicidade e de consentimento. É como se se dissesse: negro, pode; agitador, pode; comunista, pode; quem não obedece à polícia, à segurança, à ordem, pode, deve e precisa morrer. O Estado brasileiro diz isso e o silêncio mais ensurdecedor que existe, o silêncio da indiferença, confirma. Repito, são crimes permitidos, quando não incentivados e cometidos pelo Estado. Que ajuda a escondê-los e atualmente dá exílio aos executores. Dentro de alguns meses quem vai se lembrar desses Joãos ninguéns? Destas Marias de nada? Depende de nós.

Nós estamos abrindo a porta da terceira década do terceiro milênio da Era Comum, e o maior problema da humanidade continua sendo não saber discernir entre o que é essencial e o que é secundário. As coisas continuam valendo mais que as vidas; as normas, as leis feitas, interpretadas e aplicadas pelas elites, pouco importa se justas ou não, continuam acima da vida (Lc 6, 1; 1Sm 21, 1-0). Os desejos pessoais estão se sobrepondo aos direitos da coletividade. E quando os desejos são promovidos ao status de direitos, estes se tornam crimes. Tenho falado sobre, e proposto, como professor de teologia novas hermenêuticas. Faço ecoar aqui o grito do professor Celso Carias, “Gritar, profeticamente, contra a injustiça social é imprescindível, mas uma família de classe média que vê seu filho cair na dependência química também sofre. O dependente químico também é um pobre”. (CARIAS, 2016, p 103/104). Aqui estamos diante de uma nova hermenêutica, que ainda não chegou às Igrejas, que não chegou aos tribunais e tampouco à “segurança” pública, que, grosso modo, tratam todos como bandidos. Exceto os traficantes que têm muito dinheiro, pagam fiança e propina. A própria família de classe média que vive esta situação de pobreza, raramente tem esse discernimento.

Falta quem seja capaz de escutar a voz de Deus, que continua falando conosco, mas a nossa surdez agravou-se nestes anos, e ouse fazer a sua vontade. Acontece que tem muita gente oferecendo segurança e recompensa imediatas, coisas que o Deus de Moisés não oferece para ninguém. Assim como o Deus de Maria de Nazaré (Lc 1, 46-55),  “porque ele pôs os olhos sobre a sua humilde serva” (v 48) e ainda, “os famintos, ele cobriu de bens e os ricos, despediu-os de mãos vazias” (v 53), o Deus de Moisés não promete recompensas e nem oferece cargos importantes, mas age e sabe mexer aonde dói nos ricos: o bolso. “Se recusares deixá-lo partir, se teimares em retê-lo à força, a mão do Senhor se levantará contra os rebanhos que estão nos teus campos, contra os cavalos, os jumentos, os camelos, os bois e as ovelhas: será uma peste terrível!” (Ex 9, 2-3).

A primeira vontade que nos dá é de perguntar: o que os pobres animais têm a ver com isso? Nada! Mas, assim como podemos perceber hoje, o deus dinheiro é supremo no panteão das divindades sem templo e sem alma. A coalizão entre a imprensa – sem jornalistas; a política – sem o bem comum; o supremo – sem a constituição; e o cristianismo – sem Cristo, lavou o dinheiro sujo de sangue fruto da corrupção. Preciso trazer aqui para esta reflexão, o que interpreto do pensamento de um dos intelectuais e profetas que me inspiram como teólogo, como poeta e sobretudo como militante: o professor Agenor Brighenti. Ele sempre com simplicidade, profundidade e ousadia, faz desacomodar nossas mentes, tão acostumadas a repetir. Assim também Agenor Brighenti nos ensina a reformular perguntas e com isso nos mostra a importância de se ouvir o que se precisa ouvir e não o que se gosta de ouvir. Assim são os profetas. As pessoas estão um pouco assim: elas te chamam para falar, para escrever textos e até dizem que gostam de te ouvir e ler o que você escreve, mas você precisa dizer o que elas querem e gostam de ouvir. Você precisa escrever o que elas querem ler. Sem falar de política, sem criticar atitudes religiosas equivocadas. E ainda nos dizem: fale de amor! Que amor é esse? Assim não dá. Eu aprendi com o professor Brighenti e com outros profetas, inclusive de nosso tempo, mas também com profetas de outros tempos, a não fazer esse trabalho sujo. Agenor Brighenti me desacomoda quando diz ao falar da antimodernidade; da modernidade e da pós-modernidade. Em primeiro lugar porque ele vai buscar água em poços muito profundos e traz sempre água doce e fresca. Atenção! E não vende a água. Segundo porque a linguagem é sempre respeitosa e ele se comunica em alto nível com seus interlocutores.

 Numa perspectiva eclesial a antimodernidade aparece como quem quer ser uma ponte indestrutível que não permite ao ser humano apartar-se de sua história. Romper os elos de ligação com o seu Criador. E quer lembrar que esse elo é a terra. Se ignorarmos a terra estaremos ignorando o próprio Deus. A modernidade, por sua vez, aparece como algo que quer entorpecer o ser humano de autossuficiência e o empurra com a velocidade e com a indignidade das Fake News para um abismo. Seria o pós-verdade? O que é bom parece que está sempre no futuro. O único tempo que vale a nossa atenção. Já a pós-modernidade que parece ser a parusia dos dementes, é como um delinquente entorpecido de ressentimento negados e desencantamentos profundos e, acreditem, necessários. Aqui, as perguntas são: onde a gente estava? Que vazio impreenchível é esse? Por que demora tanto? A impaciência parece substituir em nós a inquietude, e a indiferença parece ocupar em nós o lugar da serenidade. O pior é que querem substituí-las. 

Chegando ao final deste texto, quero trazer presente o amigo e irmão Cesar Kuzma, que na sua tese doutoral pesquisou sobre o teólogo da esperança Jürgen Moltmann. Certamente uma obra recomendada e uma pesquisa relevante. Neste momento histórico paradoxalmente desesperançoso e profético, parece-nos importante despertar a nossa indignação cristã contra as injustiças, as diversas formas de intolerâncias e de violências e talvez a doença mais cruel: a indiferença. Ao fazer uma citação de Jürgen Moltmann, o professor Cesar Kuzma traz esta lição que nos serve como combustível propulsor de nossa letargia e nossa apatia. “Mas no momento em que nossa vontade de viver se reacende e em que determinadas experiências, que chamamos de experiências de Deus, despertam em nós a esperança de viver, começamos a nos revoltar contra a apatia dentro de nós e contra o arame farpado ao redor de nós”. KUZMA, 2014, p 91). Contra os joelhos que comprimem nossos pescoços, diríamos hoje.

Não chegou a hora de despertarmos a nossa esperança e vencermos a nossa apatia que aceita, praticamente sem resistência os desmandos de um desgoverno corrupto, corruptor e absolutamente necrófilo? Não nos esqueçamos do que cantamos: “Se calarem a voz dos profetas as pedras falarão”. Para os outros dois poderes constituídos e para o “cristianismo” sem Cristo, o governo ideal. E para nós? E para as CEBs? Cesar Kuzma nos lembra que a pergunta mais repetida frente aos campos de concentração nazista, era: “Como falar de Deus depois de Auschwitz?”. Aí, vem a esperança, a companheira inseparável da fé, na teologia de Jürgen Moltmann e ele muda a pergunta. “De que então é para falar depois de Auschwitz, se não de Deus?”. (KUZMA, 2014, p 86). Só espero que concordemos que lhes falei de fé, de esperança e de profecia.

João Ferreira Santiago é Coordenador do Curso de Teologia da Faculdade UNINA, onde é professor conteudista. É autor do Livro “Teologia Pastoral – A Arte do Seguimento e do Discipulado de Leigos e Leigas”. À venda com autor. E-mail: joao.ferreira@unina.edu.br | WhatsApp (41) 99865-7349

2 Comments

  • Alceu José Facco

    Valeu João está mais do que na hora de se ouvir novos clamores para despertar os profetas adormecidos e revelarmos o Jesus que Deus enviou, que no dia 25 continuara aguardando os verdadeiros admiradores e seguidores de seu projeto.

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