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CEBs: ESPAÇO DE CURA E LIBERTAÇÃO

Por ANTONIO SALUSTIANO FILHO (TONHÃO)*

Naquele dia Adelaide foi à missa na Catedral. Tinha participado do grupo de oração de católicos neopentecostais. N’outra ocasião fora um culto evangélico. Também já havia participado de um ritual do Candomblé. Já havia visitado um Pai e uma Mãe de Santo. Buscava a todo custo a cura e libertação para seus males acumulados.

Em outra ocasião, desesperada com sua depressão e quase loucura, ainda sobre os efeitos dos psicotrópicos e calmantes e antidepressivos, ela foi à igreja da comunidade onde morava. Alienada pelos rituais de cura e libertação do grupo de oração que participava, não gostava nada do padre Januário, um religioso tido como comunista recém-chegado ao lugar.

Despejou suas lamúrias ao padre que a ouviu impacientemente, mas ouviu. Disse da sua busca em todos os credos pela cura já que a medicina mental não estava ajudando-a em nada.

– Deus não está nos templos e nem nas palavras ali lidas, rezadas e pregadas. Os templos não são nada sagrados.  São edifícios, na sua maioria, dirigidos por “homens” que se escondem dentro de suas vestimentas (batina, mantos e ternos) que os fazem “autoridades religiosas” perante aos fiéis pobres de espírito. Esses cúrias e pastores são hipócritas, pois, salvo raras exceções, vivem uma moral dupla, escondidos em suas “áureas sagradas” com perversões e mentiras. São os primeiros e principais responsáveis pelo banimento de Deus da vida dessa gente que acredita nesse tipo de religião que se prega por aí – disse-lhe padre Januário.

– Deus se manifesta na natureza que contemplamos fora de nós. Mas deveria também se manifestar dentro de cada ser humano. Fomos criados à sua imagem e semelhança. Porém, Ele foi escondido dentro de cada um de nós. E por estar ausente em nós, não O vemos naquilo que contemplamos externamente. A natureza é o espelho do que há dentro de nós. E se somos vazios de Deus travamos nossa guerra com Ele para exterminá-Lo, sendo a natureza o objeto simbólico pelo qual matamos Deus. A morte de Deus começa dentro de cada um de nós e se manifesta com a morte da natureza – continuou Januário.

– Um certo escritor russo, Dostoievschi, falou por um de seus personagens: Por mais que descreia de um sistema ordenado das coisas, não posso deixar de amar as pequenas folhas úmidas que aparecem na primavera e também o céu azul… Não é uma questão de intelecto ou de lógica. E uma questão de amar com todas as forças das nossas entranhas”.[1]  

– E disse isso porque entendia que a menor das folhas que brota na primavera tem a mesma importância do céu azul, sobre o qual vislumbramos, ao lhe observar, a obra de Deus. O céu azul nos remete a Deus. E nosso deslumbramento e encantamento diante do céu são promovidos por uma força interior, um desejo de preenchimento do vácuo que existe dentro de nós. A saudade de Deus é o desejo infinito de estar com Ele como no ato da criação, quando nosso coração pulsava com a pulsação do coração de Deus a nos acalentar no Jardim do Éden, ventre originário da criação – disse-lhe o padre com emoção. Silêncio.     

– Duas coisas – o padre retomou a conversa – contribuem para a desintegração do ser humano: uma, quando ele se afasta da sua terra natal e perde as raízes da cultura que sempre o orientou; a outra, quando se afasta do convívio de Deus na simplicidade do viver cotidiano misturado com a natureza. Quem vive nesse inferno de asfalto e cimento armado, na labuta enfadonha desse corre-corre pela sobrevivência, está condenado à desintegração humana porque não tem tempo para si mesmo e para o divino em si – referia-se à cidade.

– Já dizia o poeta: “para que serve o divino se ele só aparece em nossos devaneios noturnos e envolto em sombras silenciosas de nossas fantasias ficcionais? Por que não sentir conforto no sol, na fruta ácida e brilhante, nas asas verdes ou então em qualquer perfume das belezas da terra? São coisas para serem desejadas como o pensamento do céu! A divindade deve viver dentro dela mesma” (…)[2]. Deus está no gosto das coisas prazerosas que nos fazem felizes, nas paisagens multicores da natureza exuberante ou então no perfume das belezas naturais e no cheiro da terra fértil, promessa de vida! Essas coisas são para serem desejadas, assim como desejamos Deus quando Ele ainda não foi banido de nossas entranhas! – Assim falava Januário.

– Quando adoramos Deus em espírito e verdade é com a Mãe Natureza que estabelecemos nossa relação de amorosidade ao Espírito Criador. Veja o relato da criação nas primeiras páginas da Bíblia! Deus criou primeiro o universo, a natureza com tudo o que nela existe. O ser humano veio depois e não é o único elo que liga o mundo criado à Fonte Originária da Vida, o Criador. Todas as coisas criadas nos ligam a Deus. O Ser humano apareceu no último momento do processo de formação do universo e na história da vida. Isso é o que dizem as religiões e a ciência. O ser humano é a última invenção no processo criador e evolutivo – fez uma pausa, pensou e disse:

– No estudo do mito da criação, na narrativa bíblica, talvez tenhamos esquecidos de algo que é muito importante para entender a relação do homem com a natureza. O ser humano, ao ser criado foi gerado pelas mãos do Criador a partir do pó da Terra, ou seja, gestado no ventre do Universo. Daí sua ligação com a natureza e ao Deus-Criador. Todas as coisas que foram criadas, e isso é mais forte no ser humano, tem a marca do Criador e da Mãe Natureza, portanto, a criatura humana tem um forte laço de irmandade com os demais seres da natureza, nesta incluído o ser humano e o universo; logo, se perde esse vínculo com os demais elementos e seres do universo, processa-se em nós a experiência doída do nosso desligamento com Deus, daí o vazio do ser e da alma. Então o cérebro inventa doenças para que, na busca da cura, encontremos a nossa libertação: estar com Deus, como na aurora do mundo no ato da criação e no desejo mais profundo do ser – disse o Padre comunista.

Movida pelas emoções do momento, Adelaide decidiu ouvir Januário um pouco mais. As palavras do padre pareciam ter ressonância na alma. Gostava da ideia de estar diante de um religioso louco, profeta, ou coisa que o valha. Estranho ou não, o religioso, que não era o demônio vermelho pintado pelo grupo de oração que havia sido expulso do templo da comunidade, dizia coisas que ela gostava de ouvir.

– A lógica é – retomou a conversa Januário –, se matamos Deus, Ele passa a não existir. “Se Deus não existe então tudo é permido”[3], disse o personagem de Dostoievschi – repetiu o padre.  

– No sonho do personagem de Dostoievschi, “o diabo se refere ao homem-deus que aparecerá depois que ideia de Deus for destruída. (…). O diabo é uma parte do homem, a parte vulgar e grosseira. (…)[4] do ser humano que, matando Deus em si, dá lugar a esse demônio pessoal e coletivo que age no mundo destruindo todo e qualquer sentido do Deus verdadeiro – blasfemou o padre.

– As religiões deístas mandaram Deus para o céu, um lugar infinitamente distante e inacessível, para estragar tudo aquilo que na terra O representa. Assim podem destruir tudo, com a legitimidade da “fé”, em nome da riqueza de alguns. A humanidade, inconscientemente, ao mesmo tempo que hostiliza o diabo, adora-o e obedece-lhe destruindo a ideia de Deus, praticando a religião destituída do sagrado, ausente do profano – sentenciou Januário.

– Em virtude disso há uma sensação de culpa inconsciente em nós e daí buscamos Deus nos templos e nas práticas de uma religiosidade superficial, distante do verdadeiro sentido da presença do divino. Longe do sagrado há uma doença mental, uma espécie de esquizofrenia religiosa onde se apela aos gritos e delírios ao Deus distante e ausente. Não encontrando Deus, trava-se uma luta interna entre Deus quase morto e o Diabo em pleno vigor na ausência do sagrado. Essa luta se expande para o exterior com o intuito de matar, sob o auspício da crença que se vive, tudo o que representa deveria representar Deus – disse e silenciou-se por um instante. 

– Falar que as religiões têm culpa pela morte de Deus não é um exagero, uma blasfêmia, ou heresias? Dizem que as religiões têm a missão de religar a terra e o céu, o ser humano a Deus! – Perguntou Adelaide.

– Jesus de Nazaré, desqualificado pelo establishment, não concordava com o sistema religioso vigente em sua época. Foi herege e, por isso imputaram-no a pecha de pretencioso: de querer ser o rei dos judeus, embora Ele nunca tenha dito que queria ser rei. E, assim, fora condenado como herege pela religião oficial e como subversivo pelo poder político do seu tempo e morto com um impostor, renegado e desqualificado. Daí, não há mal algum em ser herege nessa sociedade que falseou a ideia de Deus. Somos hereges em relação à religião inventada, com seus dogmas e crenças petrificadas, destituída do verdadeiro sentido da religação do humano com o divino – falou com sabedoria, o padre.

– Vá entender e viver o que significa isso e você transformará seu tédio em motivação para lutar pela vida! Volte aqui quando quiser para iniciarmos um processo de cura e libertação com você – ordenou Januário.

Passou-se uns dias sem que Adelaide voltasse à igreja. Sua racionalidade doentia mandava que ela não mais procurasse o padre. Ficou por mais de uma semana nesse dilema de ir ou não ir. Porém, algo mais forte que a racionalidade alienada religiosamente a impulsionava a procurar o padre popularmente maldito. Então resolveu desobedecer a crença religiosa que nutria e foi em busca de Januário.  

Januário também a esperava. Quando se encontraram ele convidou Adelaide para ir a um lugar. Ela aceitou. Caminharam em silêncio até o lugar onde se encontrava um grupo de pessoas reunidas, uma Comunidade Eclesial de Base – CEB. O local era um barracão velho abandonado, que antes era um lugar de sujeira e lixo. Havia uns bancos improvisados com material reaproveitado onde se assentavam homens e mulheres, crianças, jovens, adultos e idosos. Ao se adentrarem naquele ambiente, aquela gente que ali estava, em gesto de respeito, levantou-se para recebê-los. À medida que o religioso, acompanhado por Adelaide, adentra ao centro do grupo, todos reverenciam o padre.

Durante a celebração, Adelaide, meio sem jeito, olhou em cada um daqueles rostos e percebeu que ali, não havia alguém se parecido a ela. Eram pessoas com aspectos de sofrimento. Gente pobre, com o rosto vincado pelas marcas do tempo e sinais de padecimento; gente querendo encontrar um sentido para a vida na prática de uma religião libertadora, sugerida pelo padre Januário. Gente se encontrando para celebrar a vida pelas periferias do nosso cotidiano, às margens do centro político e religioso.

Após a celebração, Januário e mais alguns da comunidade distribuíram alimentos, roupas e medicamentos aos necessitados. Todos eram moradores da favela da qual fazia parte a igreja do padre subversivo. 

– “Já que o mundo é desumano e implacável com as pessoas desprovidas de empoderamento. Isso aqui é um instrumento de libertação das vítimas da crueldade do sistema. E assim são todas as religiões que libertam o sofrimento da vida cansada e quase destruída pela opressão do sistema.  Sempre têm pessoas, profetas e outros alimentadores de esperança, no intuito de curar as dores do mundo fincadas nas entranhas dessa gente empobrecida. Isso é tão antigo quanto a existência da humanidade” – pensou Adelaide num lampejo de memória das coisas que aprendera nos tempos da Pastoral da Juventude.

Por um instante sua dor, seu estresse, angústia e depressão ficaram insignificantes diante do que via. Ali, com o “padre comunista”, estavam pessoas que Adelaide sabia estarem doentes. Algumas daquelas pessoas com as mesmas patologias que ela padecia, mas envolvidas com as dores dos outros e aliviadas dos traumas da solidão de quem padece da ausência de Deus em si. 

– Isto aqui não é uma igreja onde se rezam orações decoradas, louvam-se com cantos e gritos a um Deus distante – disse Januário –. Aqui é um lugar onde se reúnem os desesperados, os desgraçados que se apegam, como razão última da existência, na possibilidade de sair da desesperação. E essa possibilidade não está na sociedade que os fez assim e nem nas religiões que os ignoram. Caso contrário, não estariam aqui. A sociedade, endeusada por aqueles que a compõem e a mantêm, produziu essa gente que aqui está, e muitos dos que estão jogados por aí, como uma subespécie da raça humana, um restolho de gente, o lixo humano produzido pelo sistema capitalista; portanto, ela (a sociedade) não tem a solução para o subproduto humano resultado do processo de produção de miseráveis descartados por aí – disse o mais rebelde dos homens que ela já escutara em toda a vida.

– Não estou aqui – dizia o padre, numa alusão ao ambiente – para arrebanhar almas ao Deus que se pregam por aí. Nem mesmo Jesus de Nazaré, o Filho de Deus, veio ao mundo para salvar almas para seu Pai, como querem as religiões oficiais e oficiosas fundadas a partir da cultura do judeu-cristã. Se fosse para isso, Cristo poderia ter ficado lá de onde veio. Mas, ao contrário, Ele veio para dizer aos homens e mulheres de sua época e de todos os tempos que eles são capazes de criar possibilidades, inclusive de buscar a si mesmo e ser felizes num mundo avesso à proposta do Criador. Ele veio para libertar o ser humano da condição infeliz gestada pelo próprio homem no decorrer da história – ele pregou.

– Essa “gente do bem”, fervorosa em sua crença da religião que pratica – continuou o padre – estão nos templos de todos os tipos e gostos, cada qual perdido no universo de tantos males em nosso tempo, todos em busca de um milagre oferecido pelos charlatões da fé. São criaturas submetidas à metamorfose dessa dinâmica perversa da sociedade que as transformam em objetos úteis aos fins lucrativos da sociedade, onde só têm valor aqueles que são considerados úteis ao processo de produção e consumo de mercadorias, são também vítimas das religiões, ou práticas religiosas instrumentalizadas para legitimar esse processo. As igrejas, templos e casas de rituais religiosos estão cheias de religiosos imbecis, idiotas e estúpidos, objetos desprezíveis a serviço do progresso desigual e da destruição da espécie a que pertencem, são responsáveis pelos miseráveis que vemos! – esbravejou Januário, empolgado pelo seu entusiasmo profético.

– Jesus de Nazaré, quando ressuscitou e apareceu em primeira mão à Maria Madalena, recomendou que Ela fosse pregar aos discípulos, covardes e escondidos num ambiente de medo, que eles fossem à Galileia, lugar onde estava a escória humana do seu tempo; pois era lá, naquelas condições sócio, econômica, política e religiosa, que Ele queria ser encontrado para dar as últimas instruções para que seus seguidores fossem buscá-Lo e encontrá-Lo nos pequenos, pobres entregues ao relento, aos aprisionados por toda sorte de injustiças praticadas pelo sistema vigente. Aqui fazemos isso. Isso nos liberta de qualquer doença do corpo e da alma – finalizou Januário. 

* ANTONIO SALUSTIANO FILHO (TONHÃO), advogado, militante das CEBs e dos Movimentos Sociais, Regional Sul 1.


[1] DOSTOIEVSCKI, Fyodor. Irmãos Karamazov < https://pt.scribd.com/document/340744407/Os-Irmaos-Karamazov-Completo, acesso em 28.03.2021.

[2] do poema de Wallace Stevens citado por Thomas J. J. Altizer e Willian Hamilton na obra “A morte de Deus”, Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1967. p. 39.

[3] Citado por Thomas J. J. Altizer e Willian Hamilton na obra “A morte de Deus”, Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1967. p. 87.

[4] idem.

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