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Dom Evaristo Spengler: “o Papa Francisco chama a Igreja da Amazônia a ser missionaria e em permanente conversão”. Luis Miguel Modino

“A Igreja do Brasil como um todo tem que crescer em espírito missionário”. “Uma Igreja missionária, uma Igreja em saída, uma Igreja aberta ao excluídos, aos mais pobres”.

 

Dom Evaristo Spengler é bispo da Prelazia do Marajó desde 2016, uma região marcada pela violência, situação já vivida na missão em Angola, onde passou dez anos após o fim da Guerra Civil, e na Baixada Fluminense, dominada pelo “crime organizado, tráfico de drogas e grupos de extermínio muito fortes”.

Na região do Marajó “os piratas atacam constantemente, seja as balsas e navios que passam, mas de modo especial a população ribeirinha”. Mas a violência também se faz presente na “exploração sexual e o tráfico de pessoas”, se dando situações arrepiantes, como “um pai que abusa de uma filha”. São situações que muitas vezes não são denunciadas “para não criar problemas familiares ou problemas entre vizinhos”, o que se agrava pelo fato do “Estado está muito pouco presente na região do Marajó”. Diante disso, “a Igreja faz um trabalho de conscientização junto a população”, promovendo um trabalho em rede.

Como bispo da Amazônia, dom Evaristo vê o Sínodo da Pan-Amazônia, que segundo ele era algo já falado pelo Papa desde 2016, quando encontrou com ele no curso de novos bispos, como um instrumento que pode ajudar a Igreja da Amazônia, “sufocada pelo excesso de trabalho e uma dificuldade de perceber o trabalho mais em conjunto, situações mais globais”, para “pensar a pastoral, a evangelização na Amazônia como um todo e não ficar focado apenas naquela realidade muito local”.

O Sínodo pode ser, segundo o bispo do Marajó, uma oportunidade para que “possam surgir novos ministérios para nossas comunidades”, que segundo ele, “não precisam ser imitados ou também utilizados em outras regiões, porque eles partem da realidade local”, o que vai ajudar numa maior presença eclesial, “especialmente nas comunidades ribeirinhas”.

Em sua opinião, “a Igreja do Brasil como um todo tem que crescer em espírito missionário”, pois diante da necessidade de missionários na Amazônia “falta a iniciativa dos padres quererem ir”. Desde aí, critica alguns padres “acomodados a uma vida um pouco mais fácil e não querem se lançar ao desafio da missão”, atitude contraria àquilo que o Papa Francisco e a CNBB quer, “uma Igreja missionaria, uma Igreja em saída, uma Igreja aberta ao excluídos, aos mais pobres”.

O senhor chegou na Amazônia, como bispo da Prelazia de Marajó, há pouco mais de um ano, vindo de uma realidade completamente diferente, como é a Baixada Fluminense. O que tem mudado em sua vida o fato de ir morar na Amazônia e assumir o ministério episcopal?

Na verdade teve duas experiências fortes de trabalho anterior, uma tinha sido em Angola, onde fiquei dez anos no final da Guerra Civil, na reconstrução do país, fiquei de 2001 a 2010 e a segunda experiência foi de fato na Baixada Fluminense, em Duque de Caxias, e as três realidades são marcadas pela violência.

A Baixada Fluminense talvez de uma forma um pouco diferente, com o crime organizado, tráfico de drogas e grupos de extermínio muito fortes, e aqui na região da Amazônia eu estou vendo uma Igreja com muita vida, com muita participação, seja de jovens, de adultos e uma Igreja que está despertando cada vez mais para essa situação social.

A nossa realidade do Marajó é uma realidade marcada pela violência dos rios e pela violência das cidades. Nos rios, o Tajapuru é o mais famoso deles nesse sentido, é um lugar onde os piratas atacam constantemente, seja as balsas e navios que passam, mas de modo especial a população ribeirinha, e nas cidades, cada vez mais, o povo tem medo de sair. Está havendo um inchamento das cidades, embora ainda não seja comparável às nossas capitais brasileiras.

Hoje o povo está começando buscar caminhos de enfrentamento, seja da violência, da exploração sexual, do tráfico de pessoas, que também é comum naquela região.

Seu predecessor, Dom Azcona, foi ameaçado muitas vezes por denunciar a exploração sexual de crianças e adolescentes. Como está essa realidade hoje na Ilha do Marajó?

Se esperava que com todas essas denúncias públicas começassem a diminuir os casos, mas pelo contrario, parece que cada vez mais aumentam e alguns querem dizer que é algo cultural da região. Na verdade, nós não podemos entender dessa forma. É algo aceito como normal, o que não é normal. Um pai que abusa de uma filha, um tio que abusa de uma sobrinha, um padrasto que abusa de uma enteada.

Parece que as pessoas ainda têm uma visão de que existe um dono e uma outra pessoa que é um objeto que é posse sua. Essa relação é difícil ser mudada em pouco tempo. Por isso, as situações crescem cada vez mais.

O papel da policia, das autoridades diante dessa situação, pelo que o senhor diz, parece que estão omissos diante dessa situação. O povo não denuncia, a policia e as autoridades não fazem muita coisa, o que está acontecendo?

Eu vejo dois aspectos, um que de fato a população não denuncia, isso para não criar problemas familiares ou problemas entre vizinhos, então se acoberta muito. Até mesmo uma esposa que sabe que o marido faz isso com uma filha, ela não denuncia a policia. E o segundo caso que gera isso, é que o Estado está muito pouco presente na região do Marajo.

Nós temos grandes distancias, e a maior parte da população mora ainda nas áreas ribeirinhas, onde a policia não tem acesso, porque a policia tem um carro que anda na cidade, mas não tem uma lancha que vai pelos rios. Para a população chegar até a cidade já é muito difícil, e quando chega para denunciar à policia, eles vão exigir pelo menos dois mil reais para ir até aquela situação, para pagar o aluguel de uma lancha e o combustível. A população não tem esse dinheiro. Então os casos ficam assim, abafados.

O que é que a Igreja está fazendo diante dessa realidade?

A Igreja ela faz um trabalho de conscientização junto a população, seja nas comunidades, nas escolas, nos vários fóruns que existem, mas também se articula junto com outros grupos, e  gente sabe que esse enfrentamento não pode ser de um grupo apenas, mas tem que ser de uma rede.

É lógico que tem que haver uma parceria com os policiais que estejam comprometidos, com o Ministério Público, com professores, com a área de saúde. A rede ela vai detectando onde está acontecendo esses casos e pode chegar a denunciar, normalmente em Belém, pois nas cidades locais é muito difícil de ser encaminhada uma situação dessas.

A Igreja da Amazônia está vivendo um momento de esperança a partir da convocação do Sínodo dos Bispos da Pan-Amazônia. Que desperta no senhor esta convocatória por parte do Papa Francisco?

O Papa Francisco é uma benção para a Igreja e desperta sempre de novo em nós a esperança e a cada dia nos aponta novos caminhos. A Igreja da Amazônia, ela vive uma busca de novos caminhos. E talvez pelas distancias, pelo excesso de trabalho, temos um padre sozinho em paróquias com cem comunidades, que visita a comunidade uma vez por ano, apenas.

Então essa Igreja se sentia sufocada pelo excesso de trabalho e uma dificuldade de perceber o trabalho mais em conjunto, situações mais globais. O Papa Francisco, ele vem buscar esse desejo de pensar a pastoral, a evangelização na Amazônia como um todo e não ficar focado apenas naquela realidade muito local, mas pensar também em situação globais.

Penso que é possível que a partir de toda essa reflexão, a partir desse Sínodo, possam surgir novos ministérios para as nossas comunidades, a partir dessa realidade local, e certamente vai despertar muito nossa Igreja para a realidade social, para o enfrentamento de todos esses grandes problemas que atingem diretamente nosso povo, que é o povo mais amado por Deus, o povo mais pobre.

Esses novos ministérios devem ser ministérios laicais, e a Igreja do Brasil está celebrando o Ano do Laicato. Como esse Ano do Laicato, esse Sínodo da Pan-Amazônia, pode ajudar a procurar esses novos ministérios, esses novos caminhos na Amazônia?

Toda essa reflexão que já parte agora com o Ano do Laicato e depois muito mais com o Sínodo da Amazônia, vai ajudar a despertar ministérios locais, que não precisam ser imitados ou também utilizados em outras regiões, porque eles partem da realidade local.

A Igreja sente uma ausência sua especialmente nas comunidades ribeirinhas. Nós temos gente muito pouco preparada ainda, seja para conduzir as celebrações, para que a Palavra de Deus seja partilhada, e com certeza vai passar pelo processo de fundo de formação dos nossos leigos para que possam ser uma presença mais qualificada da Igreja no seu local de atuação.

Tanto Dom Claudio Hummes, como Dom Erwin Kräutler, desde seu labor na REPAM e na Comissão Episcopal para a Amazônia, está insistindo nessa presença da Igreja nas comunidades, em temas como a celebração da Eucaristia. Isso é uma coisa que não pode esperar mais?

Com certeza, porque em muitas regiões ainda se segue aquele sistema de desobriga, o padre que passa uma vez por ano, ele celebra a Eucaristia, atende as confissões, faz os batizados, os casamentos e o povo fica mais um ano sozinho.

Frente a isso, as Igrejas evangélicas, sobretudo as pentecostais, que estão espalhadas pelo Brasil todo, e também na Amazônia, estão tendo uma presença muito mais continua, através dos pastores e dos diferentes ministérios que têm em suas igrejas. Como isso está mexendo com o povo, com os católicos da Amazônia?

Sempre digo que o problema dos evangélicos não é um problema de que eles estão se alastrando, estão evangelizando, estão se instalando mais do que nós. Acho que é um problema de vacuo nosso, nós deixamos um vazio, e o nosso povo busca, ele busca a Palavra de Deus, busca a celebração, e quando se sente tão longe, tão distante que a Igreja, através de seus ministros ordenados, passa lá uma vez por ano, e eles ficam um ano sozinhos novamente.

Quando alguém propõe e vem até nós porque nós não temos uma presença continua, então é muito comum que vilas inteiras passem para uma Igreja pentecostal. O problema é nosso, nós deixamos esse vazio, nós não damos essa atenção aos nossos católicos.

A gente poderia afirmar, com pesar, que a Igreja católica, por diferentes circunstancias, as vezes por falta de pessoas para fazer esse trabalho missionário, está abandonando as comunidades do interior da Amazônia?

Eu penso que a Igreja do Brasil como um todo tem que crescer no espírito missionário. Conversando com bispos de outras regiões, do Sul e Sudeste, que até motivam seus padres a irem por um tempo na Amazônia prestar uma solidariedade, uma ajuda ao trabalho da evangelização, dizem nós disponibilizamos, mas falta a iniciativa dos padres quererem ir.

Então, que tipo de padres hoje nós estamos formando, que são ainda padres talvez em muitos lugares, em muitas circunstancias, acomodados a uma vida um pouco mais fácil e não querem se lançar ao desafio da missão, especialmente na região amazônica.

A região amazônica está crescendo também em vocações religiosas, missionarias e sacerdotais, mas  é um processo que vai demorar ainda algum tempo, talvez para o futuro nós tenhamos muitas vocações locais, mas as Igrejas estão ainda se organizando nesse momento.

Essa denúncia, constatação, que o senhor faz sobre os padres, não seria ir em contra desse espírito do Papa Francisco, que sempre está nos falando de Igreja missionaria, de Igreja em saída, de Igreja que tem uma consciência universal e não se centra só nas necessidades locais?

Tanto o Papa Francisco como a Igreja do Brasil, pelo menos a Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil, CNBB, sempre quis despertar, sempre incentivou, sempre motivou uma Igreja missionaria, uma Igreja em saída, uma Igreja aberta ao excluídos, aos mais pobres.

Agora, depende muito também dessa história pessoal de cada um e de cada um se lançar diante do novo. Às vezes o seguro, que está perto e acomoda, acaba dando certa garantia para minha vida que a missão, que é desafiadora, não dá.

O Papa Francisco tem sinais proféticos, como foi a celebração do dia dos pobres e de se sentar-se à mesa com 1500 pobres, o que tem sido um fato que tem impactado muito a sociedade mundial. Como trazer esses sinais proféticos para nossas Igrejas locais, para nossas comunidades?

O Papa Francisco, ele trabalha muito com gestos para que nós percebamos o espírito que está por trás. Quando o Papa Francisco senta à mesa, ele diz nós temos que ir ao encontro do pobre, tem que ir ao encontro do excluído, e não é apenas para um dia, mas para organizar nossa evangelização tendo o pobre como centro, porque o pobre é o centro do Evangelho, o pobre é o centro do Reino de Deus.

Jesus Cristo, ele dedicou a sua vida à causa dos pobres, e ele mesmo, no capítulo 4 de São Lucas diz “O Espírito do Senhor está sobre mim para evangelizar os pobres”. Então, o pobre é o centro do Evangelho, é o centro do Reino de Deus, o pobre é o centro da Igreja.

Isso põe de manifesto, que o Papa Francisco sempre nos incomoda, nos deixa inquietos, nos leva a nos questionarmos pessoalmente e também como Igreja. Esses questionamentos podem nos ajudar a crescer e a fazer realidade essa conversão pastoral que ele tanto espera, que ele tanto quer para a Igreja?

Com certeza. O Papa Francisco pede uma conversão que nós não podemos fazer a remendos. Alguns podem interpretar esse gesto do Papa Francisco apenas fazendo uma caridade pontual, buscando uma Igreja com uma solidariedade com o pobre, mas sem ir ao encontro para ficar com ele.

O Papa Francisco quer nos colocar em uma outra dinâmica, fazer com que toda a Igreja se converta, haja uma conversão pastoral e que o pobre seja o centro dessa evangelização.

Em janeiro, o Papa Francisco vai visitar Puerto Maldonado, que é uma diocese da Amazônia, o que significa essa visita para alguém que mora na Amazônia, para alguém que é bispo na Amazônia?

O Papa Francisco sempre demostrou um grande carinho pela Amazônia. O ano passado nós tivemos o curso dos novos bispos, e quando um dos bispos que estava conosco se apresentou como sendo da Amazônia, ele pegou na orelha com carinho do bispo  disse: não se esqueçam do Sínodo da Amazônia. Significa que ele já estava mandando recado, que queria que os bispos dos vários países que compõem aqui a grande Amazônia estiverem abertos a um Sínodo para uma grande reflexão e buscar uma nova forma de atuação.

Tudo o que o Papa Francisco faz em direção à Amazônia nos traz esperança e nos motiva a caminhar cada vez mais em comunhão com ele e buscar aqui atualizar uma Igreja que seja de fato missionaria e em permanente conversão.

Será que o Papa Francisco precisa puxar ainda mais a orelha da Igreja e dos bispos da Amazônia para que se impliquem no Sínodo?

Eu acho que os bispos estão entendendo já muito bem o que o Papa Francisco deseja e acho que todos estão agora buscando essa comunhão de trazer novas soluções, porque sozinhos nós não teremos soluções globais das quais a nossa Igreja necessita.

 

Por Luis Miguel Modino

Fotos Luis Miguel Modino e arquivos web

1 Comment

  • Ir. Carolina

    Excelente essa matéria. Parabéns pelo ótimo trabalho, de nos ajudar a enxergar a necessidade dos mais pobres, da Amazônia, dos preferidos de Deus.

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