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Medalha de Cidadão Honorário ao Professor Luis de la Mora: 30 anos na Luta por Moradia Digna a Todas as Pessoas em Recife.

Deus tem um projeto para a sociedade e por esse projeto vale a pena se consagrar e até, se for preciso, dar a própria vida como Jesus fez.
É isso que Luis de la Mora está há tantos anos fazendo no Recife

Hoje, a Câmara Municipal do Recife deu a medalha de cidadão honorário da cidade ao professor Luis de la Mora, arquiteto e urbanista que há mais de 30 anos trabalha com os movimentos sociais para garantir o direito de moradia para todas as pessoas. Ele me pediu que fosse um dos oradores da cerimônia. Reparto com vocês as palavras que proferi nessa ocasião:

Queridos irmãos e irmãs,

“Nós somos um exército de sonhadores. Por isso somos invencíveis” .
Essa é uma afirmação dos zapatistas do sul do México, país que nos deu de presente o irmão Luis de la Mora, hoje reconhecido como cidadão honorário do Recife, ele que há tantos anos trabalha para que todos os habitantes da nossa cidade possam ter reconhecidos os seus direitos de cidadãos e isso não apenas através de um título e sim pelo direito ao solo, a uma moradia digna e a ser tratados como sujeitos, protagonistas de sua história e pessoas de plena dignidade.

Nesse sentido, a Câmara de Vereadores que hoje entrega esse título realmente o faz em nome de uma população imensa, o povo dos empobrecidos que Luis de la Mora tem no coração e como sujeitos principais e companheiros de sua ação por um mundo novo e uma terra renovada.

Recife, como outras grandes cidades brasileiras tem ainda mais da metade de seus habitantes excluídos dos seus direitos plenos de cidadãos, porque são pessoas que habitam em moradias ilegais, irregulares, sem saneamento básico e que não têm endereço oficial.
“Nós somos um exército de sonhadores. Por isso somos invencíveis” . Dom Helder Camara, nosso mestre, gostava de afirmar: “Quando sonhamos sozinhos, é só um sonho. Quando sonhamos juntos é o começo de uma nova realidade”.
Anteontem recebi um convite que me honra muito. Uma comissão de cientistas sociais de todo mundo me convida para colocar meu nome junto ao deles em uma convocação que parte das bases e une pessoas de todos os continentes e de todas as categorias sociais em uma iniciativa que se chama “Ágora dos Habitantes da Terra”.

Esse espaço de democracia popular, direta e mundial ocorrerá em um processo que terá sua visibilidade em meados de dezembro em Barcelona. Ali, se reunirá por três dias a primeira Ágora. Ela pedirá à ONU que todos os habitantes da Terra que aceitem ser cidadãos do mundo e não apenas de uma nacionalidade restrita, possam receber uma carteira de identidade de habitante da Terra. No entanto, lutaremos para que a própria carteira de identidade do país caracterize cada pessoa de tal modo que ser cidadão dessa cidade é sentir-se cidadão de toda terra. Assim, lutaremos para que todo ser humano seja considerado um irmão ou irmã a ser cuidado e, nessa humanidade reconciliada, ninguém seja visto como estrangeiro.

Nessa Ágora dos Habitantes da Terra, irei como latino-americano, descendente de uma avó povo fulniô e principalmente como discípulo de Jesus de Nazaré, mestre que moveu Luis de la Mora em sua missão de urbanista e de construtor de uma humanidade nova em nossa cidade. Ali, terei a alegria de relembrar as propostas dos irmãos e irmãs indígenas do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). No dia 1 de janeiro de 1994, esses índios assumiram o controle do Estado de Chiapas no Sudoeste do México. Reivindicavam a reapropriação do território de 39 municípios pertencentes a seus ancestrais Maias. Essas terras tinham sido roubadas por latifundiários que tomaram a terra e fizeram os índios de escravos. Sem violência, mas com tenacidade, os zapatistas foram ocupando pacificamente mas corajosamente esse território e organizaram o território em municipalidades autônomas. São cinco caracoles (os índios chamam de caracoles as conchas usadas para convocar a comunidade).

Assim, eles se organizaram para resolver por si mesmos e sem depender do governo os problemas das comunidades. Cuidaram das reservas naturais para protegê-las. Estabeleceram sistemas autônomos de educação, saúde, produção agrícola e justiça inspirados nos valores coletivos e nas tradições indígenas. Para governar as comunidades, as assembleias comunitárias do povo elegem por três anos homens e mulheres indígenas. Esses são eleitos para exercer seus mandatos sem receber nenhum salário especial. Vivem do trabalho que já tinham antes e devem administrar obedecendo. Se não obedecerem ao povo, podem ser substituídos a qualquer momento. É um tipo de sociedade na qual o nós prevalece sobre o eu e o espírito comunitário permeia a vida social.

Por trilharem esse caminho, eles têm pagado um preço caríssimo. Desde que começaram já se somam em centenas as pessoas assassinadas e desaparecidas. Mas, cada vez mais, no México e em todo o mundo, esses índios têm conquistado o apoio e o coração de toda a humanidade.

Talvez a mensagem profética mais importante que os zapatistas nos deixam para todo o mundo é uma outra visão de Política, na qual a política não é apenas a luta pela conquista do poder.
Antes deles, o mártir Dom Oscar Romero pedia que resgatássemos a dignidade da Política. A Política exercida como serviço ao bem comum e a partir de uma mística de amor à humanidade.

Se é dessa Política que falamos, temos de convir que não existe propriamente política em uma sucessão de rei ou rainha na qual automaticamente o filho ou filha herda o trono do pai. Do mesmo modo, quando o império prepara e patrocina golpes de Estado em nosso continente, se trata de uma estratégia de conquista. Mas, não há propriamente política em um golpe de Estado, que seja golpe militar armado ou golpe parlamentar, na estratégia da chamada “guerra de baixa intensidade”, hoje usada pelo império na América Latina.

Há Política quando há ação comunitária e social e em benefício de todos. Há Política quando há Mística de Justiça e de Libertação.
Além do conteúdo claramente espiritual e religioso, o mundo percebeu um movimento social e político quando, na Índia, do século V antes de nossa era, o príncipe Sidarta Guatama se torna Buda, o iluminado. O seu gesto de renunciar à condição de príncipe para se unir aos mais pobres da terra teve um sentido religioso, mas também um conteúdo social e político claro. Também no século VII da nossa era, na Arábia, o profeta Maomé se sentiu chamado por Deus para reunir as tribos árabes que viviam em guerra umas com as outras. Em nome de Deus, ele fez das tribos um só povo, consciente da sua dignidade humana e de que toda pessoa humana é chamada a viver a misericórdia. Isso foi uma ação de caráter religioso porque foi feito pelo Islã, mas se constituiu como uma importante ação política.

Por mais que a tradição cristã pareça ter esquecido isso, há uma dimensão de Política Libertadora na ação de Jesus Cristo nos evangelhos. Conforme os testemunhos evangélicos, Jesus testemunhou ao mundo que Deus tem um projeto para a sociedade e por esse projeto vale a pena se consagrar e até, se for preciso, dar a própria vida como Jesus fez.
É isso que Luis de la Mora está há tantos anos fazendo no Recife e nos estimulando a como cidadãos do Recife fazermos todos nós em nossa cidade: tornar a cidade uma cidade de todos e todas. É isso que explica a espiritualidade militante e libertadora das pastorais sociais. É o jeito de viver a fé de todas as pessoas e comunidades que não compreendem a fé como sentimento individual. Ou como a compra de uma espécie de apólice de quem quer assegurar um apartamento no céu para depois da morte.

Diferentemente disso, a fé é testemunho de que se existe Deus, ele é Amor e só pode querer o bem de todos. Ele nos criou livres e não admite que alguém torne escravo ou trate como criatura sub-humana um filho ou filha do seu amor.

Essa tem sido a ação social e política de Luis de la Mora, de tantos companheiros e companheiras que aqui Luis representa. É bom lembrar aqui o testemunho da nossa companheira e militante do Movimento de Trabalhadores Cristãos, Margareth Albuquerque. Ela nos deixou no início dessa semana, mas a sua herança profética acende uma luz no túnel escuro. Nesse momento difícil que atravessamos no Brasil, a ação de Luis de la Mora e dos movimentos sociais pela moradia torna verdade as palavras do profeta Pedro Tierra:
“Organizar a esperança,
Conduzir a tempestade,
romper os muros da noite,
criar sem pedir licença
um mundo de liberdade”.

Marcelo Barros

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