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COVID-19: O TEMPO URGE E AMANHÃ PODE SER TARDE E TODOS PODEMOS PERECER

Por ANTONIO SALUSTIANO FILHO*

Há uma gama de intelectuais e pensadores em diversos ramos da ciência e da religiosidade analisando e pensando sobre a pandemia do Coronavírus e sobre o pós-pandemia. É muito comum ver na mídia e redes sociais um certo ar de alívio ao se constar que a Covid-19 está sendo debelada, como se o fim da pandemia fosse a salvação da humanidade. Mas não é.

Longe de mim – um simples advogado da periferia de uma cidade interiorana onde, atuo como ativista dos movimentos sociais e trabalho para ganhar o pão nosso de cada dia – ser um profeta do agouro. Sou um idealista com os pés no chão.  E por pisar no chão tenho um certo pessimismo com relação ao pós-pandemia.

Tenho esperança, mas acredito que se não há esperança em mutirão não vamos muito longe; seremos, cada um em nossa individualidade, um Dom Quixote lutando contra os moinhos de vento[1]. Ou nos unamos todos, numa epopeia em favor da Terra e da vida, ou pereceremos todos sob o mesmo mal que, nós mesmos provocamos em nossa aventura humana degradante. Há mais ameaça debaixo do que Sol do que a pandemia do Covid-19.

Sobre o Coranavírus, dizem os estudiosos que, pela primeira vez na história da humanidade, um vírus atacou o planeta inteiro, levando milhões de seres humanos à morte. Sua rápida propagação se deu e continua em virtude de vivermos num mundo globalizado onde as pessoas não têm barreiras e nem dificuldades para se deslocarem no globo terrestre.

Leonardo Boff, em reflexão recente sobre a Covid-19, diz que, para além da pandemia do Coranavírus, “varias ameaças pairam sobre o sistema-vida e o sistema-Terra: o holocausto nuclear; as catástrofes climáticas e ecológicas com o aquecimento global e a escassez de água potável e outras degradações ambientais; a catástrofe econômico-social sistêmica com a radicalização do neoliberalismo que produz a extrema acumulação de riqueza à custa de uma pobreza espantosa; catástrofe moral com a falta generalizada  de sensibilidade para com as grandes maiorias sofredoras; a catástrofe política com acessão mundial da direita e a corrosão das democracias; e ultimamente o ataque furioso da Terra contra a Humanidade pelo Covid-19” (BOFF, 2020).

Fazendo eco dessas coisas que já foram ditas sobre este momento pandêmico que vivemos, ouso dizer que a pandemia de Covid-19 é apenas um aperitivo para a tragicidade que se avizinha (o quê?). Como se não bastasse a referida pandemia, vivemos outros males maiores e, do jeito que caminha a humanidade, não vamos consertar esses males.

Somos nós os causadores desses males! Como já dito acima, além da crise climática com o aquecimento global, estamos sob ameaça de uma eventual guerra nuclear. Desta última pouco se fala, mas ela nunca deixou de ser ensaiada nos gabinetes e fábricas dos agentes bélicos das nações poderosas. Essas crises (climáticas e nucleares) tendem a se agravarem por conta de outra crise vivenciada, a crise da democracia.

Noam Chomsky dizia lá atrás, no início da pandemia, que “(…) há um horror muito maior se aproximando. Estamos correndo para a beira de um desastre, muito pior do que tudo que já aconteceu na história da humanidade. (…)” (CHOMSKY, 2018). Falava o grande pensador que, sob a batuta dos EUA na era Trump (e com Biden não será muito diferente) e das demais potências econômicas globais, essas duas ameaças que pairam no mundo são insolúveis por conta da deterioração da democracia. 

Dizia ainda Chomsky que a pandemia, apesar da tragédia e consequências terríveis, poderia ser debelada e humanidade recuperada; porém, as ameaças nucleares e o aquecimento global, se não enfrentados há tempo (e o tempo urge e isso era para ontem) não haverá recuperação. A deterioração da democracia impede que a governança global promova o enfrentamento com devido rigor e cuidado sobre os males do mundo. A democracia em funcionamento, como ferramenta de controle de nossos destinos, é única esperança que temos para superar as crises. Porém, nossos destinos estão nas mãos de sociopatas que, sob o manto de uma falsa democracia (o neoliberalismo extremado), nos governam.

A sensação que tenho é que estou ouvindo a letra do verso de uma canção que marcou muito minha juventude: “Meu amor, olha só hoje o sol não pareceu, é o fim da aventura humana na terra, fugiremos nós dois na arca de Noé, no final da odisseia terrestre.” Penso que desta vez, “não vamos ter uma Arca de Noé para nos salvar”[2].

Retomando o tema da pandemia, cito Leonardo Boff, para quem as expectativas de notáveis cientistas, estudiosos do assunto, são alarmantes. Estima-se que o novo coronavírus vai matar mais gente que a peste negra e a gripa espanhola. Será a devastação natural do planeta em resposta à devastação cultural (ação humana) promovido pelo ser humano no planeta. Dizem, tais cientistas, que a terra perdeu seu equilíbrio e está, com esse vírus, buscando um novo equilíbrio. Esse vírus pode ser armagedom entre a terra e o ser humano, com a morte de mais de 2 bilhões de pessoas.

O surgimento do novo coranavírus, como tantos outros (Dengue, Zika, Chikungunya, Ebola, Sars, etc.) tem uma relação de causa e efeito com nossas ações insustentáveis para com o Planeta. Adotamos, com o sistema capitalista (e com socialismo não foi diferente), um modelo de desenvolvimento que explora, à exaustão, o ser humano (a força de trabalho) e os recursos naturais da Mãe Terra. Sob a égide do sistema capitalista, acreditamos que os recursos naturais são ilimitados e renováveis, por isso vamos continuar explorando-os; perpetuando essa tragédia anunciada e que se processa de forma extremada no momento atual e, sabe lá Deus quanto tempo isso vai durar. Nossa mentalidade está sedimentada na crença de que o modelo econômico que rege a sociedade atual é o único a promover a felicidade humana, por isso ajudamos a mantê-lo.    

Por isso, apesar de certo pessimismo, apego-me a ideia de que temos urgência: primeiro, a erradicação ou controle da pandemia; depois, forjar uma nova concepção de mundo, pois, ou mudamos o nosso comportamento e relação à natureza, ou perecemos todos. Portanto, temos que reinventar o humano para salvar o Planeta.

Há aqueles que defendem que talvez não tenhamos mais tempo hábil para desenvolver uma economia ecologicamente sustentável. O capitalismo já impera por mais de quatro séculos. É esse modelo econômico quem dita as regras da economia, que tem como um de seus sustentáculos a exploração da força de trabalho humano e a degração da natureza, desta extraíndo seus recursos naturais até a exaustão e devolvendo-lhe a poluição sob todos os aspectos. Os arautos desse sistema acreditam que ele deve se prolongar porque a natureza ainda pode continuar sendo explorada por mais de um século.

E entre os que defendem a ideia de que talvez não tenhamos mais tanto tempo para recuperar o que destruímos está James Lovelock, um dos mais renomados cientistas do clima, que diz que o tempo urge: “É como se tivéssemos acendido uma lareira e, de repente, pegasse fogo na mobília da casa e tivéssemos pouco tempo para apagar as chamas antes que a casa toda se incendiasse. O aquecimento global é como um incêndio, está se acelerando, e quase não resta mais tempo para reação” (LOVELOCK, 2006).

A propósito dos defensores do modelo econômico  atual, Lovelock nos alerta que:  “O erro que compartilham é a crença de que mais desenvolvimento é possível e a Terra continuará mais ou menos como agora pelo menos durante a primeira metade deste século. Duzentos anos atrás, quando a mudança era lenta ou nem sequer existia, talvez tivéssemos tempo para estabelecer o desenvolvimento sustentável, ou mesmo continuar por algum tempo deixando as coisas como estavam, mas agora é tarde: o dano já foi cometido. Esperar que o desenvolvimento sustentável ou a confiança em deixar que as coisas como estão sejam políticas viáveis é como esperar que uma vítima de câncer no pulmão seja curado parando de fumar. Ambas as medidas negam a existência da doença da Terra, a febre acarretada por uma praga humana. Apesar de suas diferenças, elas advêm de crenças religiosas e humanistas que acham que a Terra existe para ser explorada em prol da humanidade.” (LOVELOCK, 2006). Enquanto durar essa mentalidade não teremos salvação. A Terra está doente e exala pelos seus poros a febre do novo coranavírus.

A Terra, no pensamento de James Lovelock, é um superorganismo vivo, portanto, tudo o que lhe fazemos de mal faz com que ela sofra. Assim, a Covid-19 é uma reposta de autodefesa da Mãe-Terra ferida que nos contra-ataca, começando o processo de dizimação do pior do vírus existente sobre sua superfície, o ser humano (BOFF, 2020).

Confesso que, como muitos, estou dividido entre a razão e a esperança. A razão me faz pensar que esse momento em que a humanidade vive sob a égide da pandemia é uma oportunidade que vai potencializar aquilo que somos. Se somos bons (não nos esquecemos que quem é bom é Deus, como disse Jesus de Nazaré (Mc 10,18), vamos ficar melhores ainda pois vamos tirar uma lição positiva para vida dessa pandemia. Se somos ruins vamos sair piores do que somos porque, parafraseando aquela canção de Chico Buarque, “o que não tem governo, o que não tem vergonha e o que não tem juízo, nem nunca terá”, ouso dizer que o que não tem conserto, desconsertado está.

A esperança leva-me a pensar na reinvenção de um novo paradigma de convivência entre os seres humanos e destes com a Terra no pós-pandemia. Isso demanda “uma radical conversão ecológica”, no dizer do Papa Francisco (Laudato Si, nº 5). Essa, sem sombra de dúvida será nossa tarefa, agora, no pós-pandemia.   

Bibliografia utilizada:

BOFF, Leonardo,  Covid-19: a Mãe Terra contra-ataca a Humanidade, Petrópolis, RJ: Vozes, 2020, pp. 162.

CERVANTES Saavedra, Miguel de. Don Quijote de la Mancha. São Paulo:  Real Academia Espanhola, 2004

CHOMSKY, Noam. Internacionalismo ou extinção: reflexões sobre grandes ameaças à existência humana? Tradução de Renato Marques, São Paulo-SP: Planeta, 2020.

LOVELOCK, James. A Vingança de Gaia. Tradução Ivo Korytowski. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2006, pp. 16

PAPA FRANCISCO, ‘Laudato Si’: Sobre o cuidado da Casa Comum, São Paulo-SP: Paulus e Edições Loyola, 2015, 142.  

 

  *ANTONIO SALUSTIANO FILHO, Advogado, ambientalista, membro das CEBs e dos movimentos sociais.


[1] Referência ao personagem de Miguel de Cervantes em sua obra clássica “Dom Quixote de La Mancha”.

[2] BOFF, Leonardo. In https://www.redebrasilatual.com.br/revistas/2011/01/leonardo-boff-201cdesta-vez-nao-ha-arca-de-noe201d/<acesso em 30.10.2021.

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