O martírio de uma religiosa que dedicou a vida à causa indígena, aos mais pobres e aos excluídos completa 40 anos nesta segunda-feira, 28 de abril. Morta de forma cruel por seu trabalho de ajuda ao próximo, a Irmã Cleusa Carolina Rody Coelho protagonizou uma trajetória marcada pela entrega ao ser humano. E até hoje seu nome é reverenciado pelos índios da região de Lábrea, no Amazonas, onde foi assassinada em 1985, às margens do Rio Paciá.
Cleusa nasceu em uma família humilde em 1933, no dia 12 de novembro. Era filha de um ferroviário e de uma dona de casa. Viveu os primeiros anos no bairro Baiminas com seus seis irmãos. Sua inteligência acima da média era notória no curso de magistério no Liceu Muniz Freire, onde foi premiada com a medalha de ouro por ter sido a melhor estudante daquele colégio. Aprendeu a falar inglês, espanhol, alemão, o que contribuiu para ajudar muitas pessoas que chegavam doentes ao Espírito Santo, pois era voluntária em hospitais e fazia a tradução, no caso de estrangeiros.
Mesmo podendo optar pela carreira na sala de aula, decidiu abraçar a vida religiosa, em 1953, quando fez seus primeiros votos, na comunidade de Ilha das Flores, Rio de Janeiro. Um ano depois, aos 21 anos de idade, foi designada para a reabertura da Casa da Missão Lábrea, onde foi fundado o Educandário Santa Rita, destinado às crianças carentes da cidade, onde trabalhou como professora primária. Mais tarde, irmã Cleusa decidiu não vestir mais o hábito religioso, usando apenas roupas simples recebidas como doação, ato motivado pelo desejo de diminuir diferenças e distâncias entre ela e as pessoas que atendia. No ano de 1958, de volta ao ES, em Colatina, emitiu votos perpétuos de pobreza, obediência e castidade.
Irmã Cleusa Carolina abraçou a sua vocação como educadora e, no período que passou em Vitória, que se estendeu até 1973, dirigiu o Colégio Agostiniano e obteve Licenciatura Plena em Letras Anglogermânicas, na UFES, dedicando-se, também, à formação de lideranças para criar Comunidades Eclesiais de Base. Foi nessa época que irmã Cleusa Carolina voltou a adotar o nome de batismo.
O trabalho missionário estendeu-se dos centros educacionais para presídios, lares de pessoas doentes e leprosário. Em Manaus, a freira ia para as praças ao encontro dos meninos de ruas, levando para a sua casa alguns deles que corriam perigo de vida, passando assim a ser mal vista pela polícia, acusada de ser conivente com a desordem e protetora de infratores e marginais. O compromisso para com a justiça pode ser observado no trecho de uma carta enviada à outra freira, irmã Lourdes, em maio de 1978, que diz: “Temos que construir fraternidade, é necessário, mas a justiça tem que estar na base de toda a convivência humana.”
O engajamento com a causa indígena se tornou mais forte em 1982. Foi a época em que a Prelazia de Lábrea resolveu se assumir como Pastoral Indigenista. A partir daí, a irmã foi representante desse grupo no Conselho Missionário Indígena (CIMI) do Regional Norte I. Essa participação ativa na causa indigenista fez com que a freira se tornasse querida entre os índios, mas, por outro lado, incomodou aqueles que os perseguiam.
Numa região de conflito entre proprietários de terra e entre as próprias tribos indígenas, Cleusa encontrou a morte quando justamente tentava apaziguar os ânimos após um duplo assassinato, de mãe e filho. Sua execução às margens do Rio Paciá, em dia 28 de abril de 1985 aconteceu após a morte da família de um índio amigo da irmã. A freira foi até a aldeia para que não acontecesse uma vingança. No caminho de volta, encontrou um índio, que seria o autor das outras mortes. Vendo o homem, disse ao canoeiro que a acompanhava: “Caia na água, meu filho, que você tem filhos para criar!”. Ele obedeceu imediatamente. Ouviram-se vozes, disparos e, minutos mais tarde, silêncio. A partir dali, o corpo dela foi encontrado dias depois. “Fraturas múltiplas de costelas, traumatismo craniano, fratura da coluna vertebral e amputação traumática do membro superior direito em 1/3 médio do antebraço, presença de corpos estranhos metálicos (chumbo) na parede torácica anterior e na região lombar. Por isso, a análise conclui: a causa da morte, provavelmente, foi por traumatismo craniano, fratura da coluna vertebral e feridas torácicas produzidas por arma de fogo”, diz trecho do livro Cleusa Carolina Rody Coelho – Sangue Derramado, de Rosalina Menegheti.
O corpo foi submetido a exumação em 1991. Seus ossos encontram-se na capela de Nossa Senhora de Fátima, em Lábrea. Os ossos de seu braço direito, cortado no crime, estão na Catedral de Vitória.
Passados 40 anos desde o martírio, a Igreja Católica aguarda a canonização de Irmã Cleusa. O processo de beatificação teve início em 2 de junho de 1991, na Catedral Metropolitana de Vitória, e tramita na Congregação para a Causa dos Santos, no Vaticano, em Roma.
Homenagem
Em 25 de outubro de 2019, durante o Sínodo para Amazônia, a irmã foi na Igreja de Santa Maria, que fica em frente ao Vaticano, na Praça de São Pedro, em Roma. O papa Francisco não participou da celebração, mas, uma semana antes, recebeu, pelo Bispo Dom Joaquim para que irmã Cleusa se torne mártir.
Durante a Romaria da Diocese de Cachoeiro de Itapemirim à Festa da Penha, realizada no último sábado, 26 de abril, houve um momento especial de recordação do Martírio da Irmã Cleusa, logo no início da celebração. “Mataram o corpo de Cleusa, mas ela continua viva no coração dos povos originários, em nossa querida missão em Lábrea, na Prelazia, que está completando cem anos, no povo de Deus de Vitória, de Cachoeiro, de Colatina, de tantos lugares onde Cleusa passou. O testemunho de Irmã Cleusa nos fortaleça em nossa missão”, exortou a comentarista.
Mártir
O processo de beatificação da Irmã Cleusa foi iniciado no dia 2 de junho de 1991, na Catedral Metropolitana de Vitória. No processo influencia o clamor popular, que a reconhece como “mártir da causa indígena”. Há também as manifestações de júbilo, pedidos de favores e estampas, marchas e caminhadas em cada aniversário de sua morte, em especial em Vitória, Lábrea e outros lugares.
Lembrança
A irmã Josefina Casagrande, que colabora no processo de beatificação da capixaba, estava em Lábrea na ocasião. “Conheci quando eu era jovem, quando me enviaram para Lábrea pela segunda vez, fui feliz porque iria morar com ela… Mas foram poucos dias, porque logo ela foi assassinada. Mas não entrei em desespero. Algo dentro de mim dizia que aquela morte daria frutos. A morte dela fortaleceu a esperança do povo. A área indígena foi reconhecida e demarcada. Os povos indígenas se organizam para lutar por seus direitos. O testemunho dela fortalece a fé de muitas pessoas. A partir do testemunho dela, há mais união entre os povos indígenas e ribeirinhos da região de Lábrea. Admiro a coragem, a decisão dela, a consciência da missão que ela tinha, de defender a vida, tão ameaçada! Era uma pessoa de Deus. Ela tinha um foco: o reino de Deus. E para tornar esse reino presente, ela lutava pelos direitos das pessoas, porque onde há injustiças, desrespeito para com as criaturas, o reino não está.”