O cristianismo nasceu da experiência de fé de Jesus de Nazaré e, principalmente, da experiência que em torno dele e em relação com ele seus discípulos e discípulas fizeram do anúncio-testemunho da boa notícia do Reino de Deus. Esta experiência mudou a vida dos seguidores do Profeta da Galiléia e impulsionou uma caminhada de fé cuja tradição já se tornou bi-milenar. Nessa trajetória histórica, a fé cristã configurou-se de muitas maneiras, com ricas e variadas formas de concretizar a vida cristã.
Em cada nova situação histórica – em cada cultura ou grupo de pessoas que se abre ao anúncio-testemunho do Evangelho do Reino – o cristianismo é transmitido, construído, vivido e enriquecido. A caminhada dos discípulos e discípulas, na busca de fidelidade ao Deus de Jesus, gestou a grande tradição cristã.
A evangelização acontece no concreto da vida. Por um lado, a fé cristã, qual fermento, transforma por dentro a cultura e a vida das pessoas, por outro, ela também, de certa forma, é transformada a cada nova experiência cultural. São as condições históricas da inculturação e da inreligionação. Aos poucos foram surgindo memórias (anámnesis) da pessoa de Jesus, testemunhos, conversões, profetas, ritos sacramentais, celebrações, orações, festas, costumes, símbolos etc. para expressar a riqueza da experiência cristã. Nessa rica trajetória histórica, em certos momentos, a vida cristã acentuou traços da vida histórica de Jesus (alguns ensinamentos, gestos, ações…), em outros, o que sobressaiu foram aspectos de sua experiência com Deus (Deus é o Abbá querido, proximidade amorosa gratuita e libertadora, tem um projeto salfívico universal, ele nos envia o seu Espírito Santo para que tenhamos força e coragem para o seguimento de Jesus, para amar e servir…). Houve épocas em que os destaques foram para acontecimentos da caminhada de Jesus com seus discípulos e discípulas (o ensinamento do Reino, o envio em missão, a partilha de vida, a importância da contínua conversão ao Reino, o valor do testemunho, a eucaristia como lava-pés…). Mas também aconteceram concentrações e fixações em torno de determinados traços, aspectos ou acontecimentos da vida de Jesus (ora em seus “milagres”, ora em sua paixão e morte, ora em sua ressurreição…).
A concentração em um ponto do cristianismo leva ao esquecimento de outros, como também à perda da visão de conjunto da vida cristã. É muito importante rever sempre a nossa caminhada, voltar a beber nas fontes da vida cristã, recuperar dimensões importantes que foram sendo esquecidas ou deixadas em segundo plano. Aqui pretendemos ajudar na reflexão dos cristãos que buscam aprofundar eixos centrais ou o próprio sentido da vida cristã.
1. Cristianismo como religião proibitiva
Em certas configurações históricas do cristianismo percebemos um acentuado peso muito grande atribuido ao proibitivo. É o fenômeno da tentação moralista dentro da religião. Algo fundamental para nossa ação ética é a clareza de critérios para estabelecermos os limites do que seja certo ou errado, portanto, do que devemos ou não fazer. Mas, para a nossa ação ser ética não basta que seja uma ação julgada correta. A ética exige contínua reflexão, autonomia e responsabilidade no exercício da liberdade. Nesse sentido, uma linguagem simplesmente proibitiva é ineficaz e pode, inclusive, favorecer a experiência da imaturidade moral, quando a pessoa não consegue assumir a sua liberdade com responsabilidade e discernir, dentre as diversas possibilidades, a melhor a ser feita. Para que seja uma experiência de maturidade e crescimento humano, é preciso que haja, na ação humana, consciência, reflexão, liberdade de escolha e responsabilidade moral seja no estabelecer limites para nossas ações, seja no discernimento que nos leva a tomar posições.
A religião cristã tem a pretensão de ser uma experiência humana que seja totalizante, que dê sentido ao mais profundo e à totalidade de nossa vida, ou seja, configurar de maneira nova o nosso viver e conviver. Para que isso aconteça, ela abre perspectivas, horizontes novos, possibilidades de um jeito novo de ser, de viver e conviver. É claro que, ao apontar uma direção, ao mesmo tempo, ela oferece critérios para a decisão pessoal de estabelecer certos limites para nossa vida.
A partir de uma leitura com enfoque exclusivamente proibitivo, os 10 mandamentos, originalmente elaborados para garantir a vida digna para todos e uma convivência pacífica e fraterno-sororal, foram sendo compreendidos apenas como normas proibitivas dadas por Deus:
1º – NÃO adore a outros deuses e NÃO tenha ídolos em sua vida;
2º – NÃO pronuncie o nome de Deus em vão;
3º – NÃO viole a lei do sábado;
4º – NÃO desrespeite seu pai e sua mãe;
5º – NÃO mate o teu próximo;
6º – NÃO cometa adultério;
7º – NÃO roube;
8º – NÃO levante falso testemunho contra teu próximo;
9º – NÃO cobice as coisas alheias;
10º – NÃO cobice a mulher (o marido) do (a) próximo (a).
A nosso ver, o acento exclusivo no proibitivo leva a uma visão infantil da vida cristã. Não educa para a liberdade-responsabilidade. É como se a religião fosse a fonte exclusiva de toda vida moral. Quando uma decisão qualquer não estivesse contemplada na lista dos 10 mandamentos o cristão ficaria perdido ou, simplesmente, não se sentiria no dever de agir impulsionado pelo e para o amor.
Com todos os avanços na compreensão da consciência e da liberdade-responsabilidade humanas, ainda encontramos muitos cristãos que não amadureceram em sua autonomia (liberdade com responsabilidade) diante de Deus. Não experimentaram a liberdade dos filhos e filhas de Deus. Ao contrário, têm medo de Deus – imaginam um Deus terrível, castigador, cruel. Não é esse o Deus de Jesus, que experimentamos na parábola do Pai Misericordioso – um Deus que é Luz e que ilumina nossos passos, um Deus que é Amor e que, como Pai, só sabe amar.
Se prestarmos mais atenção à pessoa de Jesus, perceberemos que ele cultivou grande intimidade com o Abbá querido. Essa experiência lhe proporcionou grande liberdade diante de tudo, do Templo, da lei e das tradições judaicas, dos costumes morais. E o cristianismo nasceu dessa experiência nova que Jesus fez de Deus e de Seu Reino de amor. Nesse sentido, Paulo, nas cartas aos gálatas e aos romanos, fala da experiência da liberdade cristã. O cristão é, sobretudo, aquele que foi libertado para a práxis do amor e da justiça.
2. Cristianismo como religião prospectiva
A autêntica experiência cristã de Deus nos liberta para a práxis do amor e da justiça. Não tem sentido uma vida cristã focada no aspecto negativo e/ ou proibitivo. O cristianismo é uma proposta, um verdadeiro projeto de vida nova. Jesus Cristo é o homem novo, fala-nos Paulo, o novo Adão. Aquele que abriu-nos um caminho de salvação. Aquele que nos enviou o Espírito Santo para que sejamos livres para amar e colocar, com autonomia, a nossa vida a serviço da vida. O cristão é aquele que orienta a sua vida para o amor e para a justiça.
Nessa perspectiva, com ênfase numa proposta de vida nova, os 10 mandamentos adquirem outro sentido bem mais libertador. Mais do que normas, eles despertam para um sentido maior, suscitam, enquanto interpelação, a cultivarmos uma orientação fundamental em toda nossa vida e convivência:
1º – Ame a Deus com todo coração, amando-O em cada ser vivente. Deus habita a interioridade de cada ser fazendo com que a vida seja algo sagrado, valorizado, cuidado e protegido;
2º – Respeite a Deus, colocando-O no centro de sua vida e assumindo como próprio o projeto salvífico do Reino do amor e da justiça;
3º – Procure a vida plena, valorizando tempo de gratuidade para Deus (tempo de louvor), para o outro (solidariedade, cuidado) e para você (tempo de prazer);
4º – Respeite a família, ela é sacramento do amor de Deus por nós, valorizando tempo para o cultivo da intimidade e da alegria de conviver com seus familiares (filhos, pais, irmãos etc.). De modo especial, cuide de seus pais na velhice e reverencie cada pessoa idosa;
5º – Cuide de cada ser vivo, defendendo a dignidade da vida e amando teu (tua) próximo (a) como irmão (irmã);
6º – Seja inteiro em suas relações, valorizando o corpo humano e a sexualidade como dom de Deus para a participação na transmissão da vida e para a nossa realização afetiva no amor;
7º – Defenda uma vida digna para todos (justiça inclusiva e restaurativa, igualdade, comunhão) e respeite o que é dos outros. Eles (elas) são teus (tuas) irmãos (irmãs);8º – Cultive o hábito de falar sempre a verdade e defender a dignidade de cada pessoa;
9º – Cultive o equilíbrio e a liberdade diante de teus desejos e a alegria com o sucesso dos (das) teus (tuas) irmãos (irmãs);
10º – Respeite e valorize a família dos (das) teus (tuas) irmãos (irmãs).
É nesse espírito de orientação da vida para o amor que entendemos melhor o sentido dos mandamentos. Daí a atitude de Jesus sintetizá-los em dois – amar a Deus com todo teu coração e ao próximo como a ti mesmo – ou simplesmente em um – amai-vos uns aos outros como eu vos amei. Que a vida cristã seja compreendida como um PROJETO DE VIDA NOVA e que ela ilumine todos os aspectos de sua vida, para uma convivência nova, libertada e orientada para a práxis da justiça e do amor.
Edward Neves Monteiro de Barros Guimarães
Edward Neves Monteiro de Barros Guimarães é mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), é professor de Cultura Religiosa do Departamento de Ciências da Religião da PUC Minas, onde atua como secretário executivo do Observatório da Evangelização e faz o doutorado em Ciências da Religião
Fonte: Observatório da Evangelização.
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