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Insurreições silenciosas – Raúl Zibechi

“Os verdadeiros movimentos são aqueles que modificam o lugar das pessoas no mundo, quando se movimentam em coletivos e rasgam os tecidos da dominação.” Raúl Zibechi

“O mundo, nosso mundo, está mudando de maneira acelerada. Rejeitar essas mudanças, seria como anular a capacidade transformadora que está enterrando o capitalismo e levantando um mundo novo sobre seus escombros”, escreve o jornalista e analista político uruguaio Raúl Zibechi, em artigo publicado por La Jornada, 10-11-2017. A tradução é do Cepat.

Eis o artigo.

As grandes mudanças começam sempre por pequenos movimentos invisíveis para os analistas de cima e para os grandes meios de comunicação, como destaca um dos comunicados do zapatismo. Antes que milhares de pessoas ocupem as grandes avenidas, ocorrem processos subterrâneos, onde os oprimidos ensaiam os levantes que, depois, tornam visíveis nos eventos massivos que a academia denomina movimentos sociais.

Estas mudanças ocorrem na vida cotidiana, são produzidas por grupos de pessoas que têm relações diretas entre elas, não são fáceis de detectar e nunca sabemos se irão se tornar ações massivas. No entanto, apesar das dificuldades, é possível intuir que algo está mudando, caso agucemos os sentidos.

Algo disto parece estar ocorrendo em países da América Latina. Um companheiro brasileiro considerou, durante um encontro de geógrafos com movimentos sociais (Simpósio Internacional de Geografia Agrária – SINGA), que neste país estamos diante de uma insurreição silenciosa. A intuição se baseia em fatos reais. No seio de movimentos sociais e nos espaços mais pobres da sociedade, as mulheres e os jovens estão protagonizando mudanças, estão se deslocando do lugar designado pelo Estado e o mercado.

Os verdadeiros movimentos são aqueles que modificam o lugar das pessoas no mundo, quando se movimentam em coletivos e rasgam os tecidos da dominação. Neste ponto, deve se assinalar que não há uma relação direta ou mecânica causa-efeito, já que nas relações humanas os prognósticos não são possíveis pela complexidade que possuem e pela interação de uma multiplicidade de sujeitos.

Nos últimos anos, pude observar esta tendência de mudanças silenciosas no interior de vários movimentos. Entre os indígenas do sul da Colômbia, grupos de jovens nasa e misak ‘re-empreendem’ a luta pela terra que havia sido paralisada pelas direções, focadas na ampliação das relações com o Estado que lhes proporciona abundantes recursos. Algo similar parece estar ocorrendo no sul do Chile, onde uma nova geração mapuche enfrenta a repressão estatal com renovadas forças.

Entre os movimentos camponeses consolidados, onde existem poderosas estruturas de direção, mulheres e jovens estão empreendendo debates e propostas de novo tipo, que incluem a mobilização e organização das pessoas que se definem LGBT (Lésbicas, Gays, Transexuais e Bissexuais).

Observamos também um crescente ativismo no seio dos movimentos tradicionais de militantes negros que constroem quilombos e palenques, inclusive nas universidades, como pode se apreciar nas academias brasileiras e colombianas, onde abrem espaços próprios.

Durante a escolinha, explicaram-nos que metade dos zapatistas tem menos de 20 anos, algo que pudemos apreciar. A participação das mulheres jovens é notável. Aqueles que participam dos encontros de arte e ciência convocados pelo EZLN enfatizam esta realidade. Em outros movimentos aparece a organização de garotos e garotas com assembleias que excluem os mais velhos.

Que reflexões podemos realizar sobre esta insurreição silenciosa, que abarca toda a sociedade e de modo particular os movimentos anti-sistêmicos. Sem pretender esgotar um debate incipiente, proponho três considerações.

A primeira é que as insurgências em curso das mulheres, dos povos negros e indígenas e dos jovens de todos os setores populares estão impactando no interior dos movimentos. Por um lado, estão produzindo uma necessária mudança geracional, sem deslocar os fundadores. Por outro, esta mudança é acompanhada por modos de fazer e de se expressar que tendem a modificar a ação política para direções que, ao menos quem escreve estas linhas, não é capaz de definir com clareza.

A segunda é de caráter qualitativo, estreitamente relacionada com a anterior. A irrupção juvenil/feminina é portadora de perguntas e culturas elaboradas no interior dos movimentos, com suas próprias características. As mulheres de baixo, por exemplo, não embandeiram o discurso feminista clássico, nem o da igualdade, nem o da diferença, mas, sim, algo novo que não me atrevo a conceituar, ainda que existam aqueles que mencionam feminismos comunitários, negros, indígenas e populares.

O desejo dos jovens zapatistas em mostrar suas músicas e danças, é algo mais que uma questão artística, do mesmo modo que suas perguntas sobre a ciência. Em alguns casos, como o mapuche e o nasa, é possível observar mudanças que, de fora, podemos avaliar como uma radicalização que não está focada apenas nas formas de ação política, mas também na recuperação de tradições de luta que tinham sido quase abandonadas pelos mais velhos.

A terceira, e talvez a mais importante, é que a irrupção dos jovens e mulheres de baixo vai perfilando outra concepção de revolução, que se afasta da tradicional teoria da revolução de cunho leninista. Aqui, aparece outra questão: como se faz política em chave quilombo/palenque? Como é a política em chave mulher? Não me refiro à participação das mulheres e os jovens de baixo nas estruturas já existentes.

As respostas serão dadas pelos próprios povos, que estão abrindo caminhos novos, ainda que o analista de cima sempre tende a os ver com olhos e conceitos do passado. Trata-se de construir, mais que de ocupar as instituições existentes. Vão se criando mundos novos ou sociedades novas, caso se deseje nomear com os conceitos de antes: poderes próprios, justiça própria com base, muitas vezes, em tradições e em outras de sentido comum dos povos; saúde, educação e maneiras de ocupar o espaço baseadas em lógicas não capitalistas.

O mundo, nosso mundo, está mudando de maneira acelerada. Rejeitar essas mudanças, seria como anular a capacidade transformadora que está enterrando o capitalismo e levantando um mundo novo sobre seus escombros.

Publicado em 13/11/2017 – www.mercadosul.org

Fonte: IHU Unisinos

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