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Libertar Deus dos templos que o aprisionam. Marcelo Barros

Na cidade (a nova Jerusalém), não vi nenhum templo pois o seu templo é o próprio Senhor” (Apoc 21, 22- 23).

Nesse domingo, a arquidiocese de Olinda e Recife recorda os 50 anos do martírio do querido padre Antônio Henrique. A melhor forma de homenageá-lo não pode ser isolando-o no altar dos mártires. O mais importante é prosseguir a luta de Henrique por cidadania e liberdade para todos, contra quaisquer tipos de ditaduras, política, judiciária ou outra qualquer. É nos comprometer a fazer de nossa Igreja uma profecia viva de comunhão libertadora. 

No mundo inteiro, os templos são considerados obras de arte ou ao menos patrimônios culturais importantes para o povo que ali se reúne. Recentemente, ao ver o incêndio que quase destruiu a Catedral de Notre Dame em Paris, as pessoas, mesmo não cristãs, choravam de tristeza. De todos os continentes, as pessoas acorrem a países asiáticos para visitarem templos budistas que resistem aos séculos. No entanto, aquelas estátuas e imagens sagradas são representações fixas e imóveis do Divino, presente e atuante no mundo, nas comunidades e em cada pessoa.

O evangelho que o lecionário ecumênico nos propõe nesse 6º domingo da Páscoa (ano C) continua o discurso que, conforme o quarto evangelho, Jesus teria feito aos discípulos depois da ceia (Jo 14, 23- 29).

Em ocasião anterior, os parentes de Jesus tinham insistido com ele: “Se você quer ser conhecido, se apresente ao mundo, publicamente e não somente a um pequeno grupo” (Jo 7, 4). Agora, Judas (não o Iscariotes) que os outros evangelistas apresentam como sendo irmão de Jesus, portanto, do grupo dos parentes, faz a mesma interpelação: Por que se apresentar só a nós e não ao mundo?

Jesus responde com uma afirmação surpreendente que é o texto do evangelho de hoje. Ele que tinha sempre falado na relação comunitária,  insiste agora em uma intimidade pessoal e muito íntima: Se alguém me ama e guarda as minhas palavras, meu Pai o amará e nós viremos a ele, ou a ela e nessa pessoa faremos morada. De um lado, não se trata do mundo. Jesus propõe intimidade: morar dentro da pessoa. Enquanto outros evangelhos propunham como forma de discipulado, seguir Jesus, o quarto evangelho sempre insiste que devemos “permanecer nele”. Mas, agora, é antes de tudo ele que diz querer permanecer em nós. Só que essa proposta vai além do grupo dos discípulos. Qualquer pessoa que me ama e que observa na vida como regra aquilo que eu proponho… É para além de qualquer instituição ou grupo organizado. É outro critério diferente de quem pensa que para ser de Deus tem de pertencer a essa ou a aquela Igreja.

No primeiro testamento, Deus tinha prometido vir habitar nas pessoas (Jr 31, Is 7). Mas, os sacerdotes sempre tentaram aprisionar a Deus em templos de pedra. Como respeito à cultura religiosa do povo, Deus tinha aceito que no templo habitasse o seu nome, um sinal de sua presença, mas, como dizia o profeta Isaías: “O céu é o meu trono e a terra, apoio de meus pés. Que tipo de casa, então, vocês podem construir para mim? Que lugar me poderia servir de pousada? (Is 66, 1). Agora, Jesus vem revelar que o Pai e ele mesmo não aceitarão mais ficar confinados a templos de pedra. Virão habitar em qualquer pessoa que ame e nesse amor se mantenha fiel à proposta de Jesus.

De um lado, essas palavras soam como boa nova para tantas pessoas que, hoje, têm dificuldade de se ligar a estruturas religiosas e se sentem, às vezes, como “ovelhas sem pastor”. Ninguém fica fora desse chamado à intimidade divina. Não somente, Deus fez sua morada em Jesus, como agora Jesus revela que quer e que faz sua morada em cada um/uma de nós, desde que nos abramos ao amor. Se somos pessoas movidas pelo amor e para o amor solidário, somos templos do Espírito Santo (1 Cor 3, 16).

Essa morada divina que o Espírito instala em nós, morada do Pai e de Jesus, nos tira da nossa solidão estrutural, nos aquieta de nossas angústias mais profundas (e a fé deve tocar mesmo nesse âmbito quase inabordável de nossas vidas), penetra em nós como presença invisível do Espírito e chega até a alcançar as regiões mais sombrias e pouco conhecidas do nosso ser, feridas profundas e antigas que precisam ser curadas. A morada divina em nós tem de atingir esse nível, se nós permitimos, claro…

Para que aquele grupo concreto que estava com Jesus na ceia e também para a comunidade cristã que lembrava essas palavras no final do século I, Jesus volta a se referir ao grupo. Promete a energia divina que o Pai lhes enviará em meu nome, o sopro divino de vida nova que os evangelhos traduzem por “Espírito Santo”. Como mãe ensina o filhinho a falar, a ruah divina (em hebraico é feminino), recordará tudo o que eu disse e ensinará tudo. O Espírito Divino não vem apenas aguçar nossa memória, mas vem aplicar a palavra certa para o contexto justo. Vem nos ajudar a interpretar corretamente o que Jesus disse e nos ensinará todas as coisas. Jesus aponta o que quer nos deixar de mais íntimo: a Paz, shalom da aliança, plenitude de comunhão entre nós, com a natureza e em Deus… O saudoso teólogo Raimon Panikkar chamava de realidade antropoteocósmica, ou seja, que une o ser humano, Deus e o cosmos em uma só comunhão de amor.

Infelizmente, muitas vezes nossas Igrejas parecem insistir em manter Deus e o próprio Jesus em estátuas e em cerimônias que se tornam como objetos nas mãos dos eclesiásticos e nem sempre respeitam a liberdade do Espírito Divino “ventania que sopra aonde quer” (Jo 3).

Nesse domingo, a arquidiocese de Olinda e Recife recorda os 50 anos do martírio do querido padre Antônio Henrique. A melhor forma de homenageá-lo não pode ser isolando-o no altar dos mártires. O mais importante é prosseguir a luta de Henrique por cidadania e liberdade para todos, contra quaisquer tipos de ditaduras, política, judiciária ou outra qualquer. É nos comprometer a fazer de nossa Igreja uma profecia viva de comunhão libertadora. Que seus ministros sigam as palavras de Jesus e do seu mártir Henrique e não caiam na sedução de uma religião fascinada pelo poder e pelo prestígio do mundo. Embora muitos eclesiásticos não levem muito a sério, a segunda leitura do lecionário, hoje, é tirada do livro do Apocalipse e ali diz claro: “Na cidade (a nova Jerusalém), não vi nenhum templo pois o seu templo é o próprio Senhor” (Apoc 21, 22- 23).

Marcelo Barros

Memória 

Muito ligado ao então Arcebispo e defensor dos Direitos Humanos, dom Helder Camara, de quem foi assessor, Antonio Henrique Pereira Neto, que além de padre era sociólogo e professor, tinha apenas 28 anos quando foi sequestrado e encontrado morto com sinais de tortura na Cidade Universitária do Recife.

Atribuído aos militares, como forma de reprimir as atividades de Dom Helder e de seus auxiliares, e visando frear as ações desenvolvidas pelo jovem católico, contrário aos métodos da ditadura, o inquérito do crime jamais foi finalizado pelo regime ditatorial, que queria tratar o homicídio como um episódio comum.

O caso passou 45 anos sem um esclarecimento oficial, o que só veio a acontecer em 2014, através de relatório da Comissão da Verdade de Pernambuco. Foi revelado, finalmente, que o assassinato do padre Henrique tratou-se de um crime político, praticado por agentes do governo militar, em razão das ideias e atividades do religioso.

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