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O desafio das CEBs é alimentar uma “espiritualidade terrenal”. Entrevista especial com Pedro Ribeiro de Oliveira

“Nessa concepção, o espiritual se opõe ao material, assim como o celestial se opõe ao terrenal. A ‘Teologia das realidades terrestres’ que inspirou o Concílio Vaticano II, porém, alargou o conceito, trazendo uma concepção de espiritualidade como energia mobilizadora da ação humana”, destaca Oliveira.

Vivemos em tempos pós-modernos, mas quando o assunto é , nos inscrevemos num tempo pré-moderno. Para o doutor em Sociologia Pedro Ribeiro de Oliveira, isso faz com que, ainda hoje, se pense em Deus como algo que não se mistura com política, numa fé que está mais pela ascensão celestial pós-morte do que por uma vida melhor no plano terreno. “Nessa concepção, o espiritual se opõe ao material, assim como o celestial se opõe ao terrenal. A ‘Teologia das realidades terrestres’ que inspirou o Concílio Vaticano II, porém, alargou o conceito, trazendo uma concepção de espiritualidade como energia mobilizadora da ação humana”, destaca Oliveira. Dos dias 23 a 27 de janeiro, em Londrina, no Paraná, ele participou do 14º Intereclesial das Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, onde percebeu ainda haver essa dissociação. “Que muitos setores da Igreja Católica não tenham assimilado a renovação teológica e pastoral iniciada pelo bom papa João XXIII, não é novidade. Mas surpreende ouvir de um membro de CEB, cuja identidade tem a marca do compromisso com libertação dos oprimidos, a oposição entre Deus e política”, analisa.

É por isso que Oliveira, na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, em que analisa o encontro de Londrina, destaca este como um dos desafios atuais das CEBs: “alimentar esse tipo de espiritualidade terrenal”. “O exemplo da Madre Teresa de Calcutá, com sua espiritualidade do cuidado pelos miseráveis e moribundos, e a espiritualidade familiar incentivada pelos Movimentos de casais, são um bom exemplo dessa espiritualidade terrenal”, exemplifica. E ressalta: “não é fácil, porque pode-se perceber a regressão de muitos setores da Igreja Católica a concepções pré-modernas institucionalizadas pelo Concílio de Trento, no século XVI, e reforçadas pela ‘pequena Tradição dos Pios’’’.

O outro grande desafio, para o professor, é relacionado com a própria identidade das CEBs, que se coloca de forma solidária com os sofrimentos dos pobres, dos povos originários, das mulheres, dos negros e de outros grupos sociais excluídos. “Nessa perspectiva, os desafios das CEBs são os desafios desses grupos. Entendendo que o golpe jurídico-parlamentar de 2016 não foi apenas uma troca de governo, mas o instrumento de desmonte das conquistas da Constituição de 1988 e de implementação do projeto neoliberal”, avalia.

Tais desafios, segundo Oliveira, também estão alinhados com as provocações do papa Francisco, que, aliás, foi muito citado no encontro, “não apenas como ‘enfeite’ da reflexão, e sim como seu fio condutor”. Para o professor, um dos caminhos a ser seguido pela Igreja é o combate ao clericalismo, sempre apontado por Francisco. “Os seminários formam celebrantes do culto, pregadores de autoajuda e comunicadores de mídia, não presbíteros capazes de alimentar a espiritualidade de leigos e leigas que levam a sério a recomendação do Papa de ser uma Igreja em saída”, dispara. E acrescenta: “tenho saudades daquela geração de padres formados em escolas de filosofia e teologia junto com leigos e leigas, morando em pequenas comunidades de bairro, e se sustentando por seu trabalho… É de presbíteros assim que a Igreja precisa para colocar em prática o projeto de Francisco”.


Pedro de Oliveira na Unisinos, em 2012 (Foto: Acervo IHU)

Pedro Ribeiro de Oliveira é doutor em Sociologia, professor aposentado dos PPGs em Ciências da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF e da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas. É membro do ISER- Assessoria e da Coordenação Nacional do Movimento Fé e Política.

Confira a entrevista.

  •   O que foi o 14º Intereclesial de CEBs, realizado nos dias 23 a 27 de janeiro, em Londrina, no Paraná? O senhor participa como assessor dos Intereclesiais desde o início. A partir do 14º Intereclesial, quais são as principais mudanças que percebe nesta caminhada de várias décadas?

Pedro Ribeiro de Oliveira – Não há como resumir toda a complexidade de um encontro que, durante quatro dias, reuniu representantes de Comunidades Eclesiais de Base – CEBs de todo o Brasil, mais de 60 bispos, representantes de várias nações originárias, membros de outras Igrejas cristãs e quase 50 assessores e assessoras, num total de mais de 3.300 participantes. Isso sem contar o grande número de pessoas envolvidas nas equipes de apoio e serviço. Lembro esse dado quantitativo para falar sobre o caráter intereclesial desses encontros.

D. Luís Fernandes, bispo de Vitória, no Espírito Santo, onde se realizou o 1º Encontro, deu um sentido bem preciso à palavra intereclesial para definir seu caráter: uma reunião de igrejas particulares (dioceses) representadas por seu bispo, animadores ou animadoras de comunidades, e agentes de pastoral, visando confrontar sua experiência de Igreja moldada pelo Concílio Ecumênico Vaticano II a partir das bases populares. Daí o rico conceito de caminhada: cada igreja local (diocese, paróquia ou CEB) tem autonomia de ação em seu território, mas ao entrar em comunhão com outras igrejas locais tomam todas o mesmo rumo. Apesar de suas diferenças, elas se reconhecem como participantes da mesma caminhada e sabem distinguir-se de igrejas particulares que não têm a mesma prática. Ou seja, o encontro intereclesial foi pensado como encontro de igrejas locais que se reconhecem na mesma caminhada de luta contra as opressões sociais.

Os quatro primeiros Intereclesiais tiveram essa característica de encontro de igrejas de caminhada, mas penso que desde o 5º Encontro, em Canindé, no Ceará, essa característica foi-se esvaindo. Deixaram de reunir apenas as Igrejas da caminhada e se tornaram encontros dos Regionais da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB como se todas as dioceses fossem participantes da mesma caminhada (o que estava e está muito longe de ser realidade). Mudou-se o caráter dos encontros intereclesiais, mas não seu nome. Eles passaram a ser uma espécie de Encontros do Povo de Deus promovidos pela Igreja Católica. Daí sua abertura (raramente bem-sucedida) ao ecumenismo e ao macroecumenismo. Daí também sua temática sempre voltada para fora, para as questões sociais, deixando de lado os problemas decorrentes de seu “novo jeito de ser Igreja” – como diz o Documento no. 25 da CNBB, de 1982.

  •  Quais foram, na sua avaliação, os pontos mais significativos do encontro?

Pedro Ribeiro de Oliveira – Permita-me focar apenas aquilo que mais me preocupa: a relação entre Fé e Política. A coincidência entre o julgamento de Lula pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região – TRF-4 e o início do Intereclesial não poderia passar em brancas nuvens, não só porque havia delegados e delegadas ao Intereclesial que pediam uma manifestação de apoio a Lula, mas também porque pairava a suspeita do viés político daquele tribunal. Assim, logo após a oração da manhã, Frei Betto falou sobre a importância da democracia ameaçada em nosso país e pediu ao plenário um minuto de silêncio. Sem que a Coordenação previsse, nem reação do plenário, foram colocadas duas faixas em defesa de Lula e uma bandeira do PT. No dia seguinte, o arcebispo de Londrina pediu que a bandeira e as faixas fossem retiradas. Foi muito aplaudido, mas ouvi também vozes de protesto.

Acontece que entre os banners expostos havia um, do Regional Oeste, onde aparecia um tucano. Alguém protestou no intervalo e o pintor foi pressionado a apagar o pássaro, que no caso nada tinha a ver com o partido que simboliza. Mais tarde, o pintor pediu a palavra e fez um veemente protesto contra a violação de sua liberdade de expressão. Nesse momento, ele disse: “este é um encontro religioso. Mais Deus e menos política!”, recebendo muitos aplausos.

Confesso que ainda não consegui encontrar uma explicação satisfatória para esse retrocesso na “Teologia das realidades terrestres”, como se dizia nos tempos do Concílio. Que muitos setores da Igreja Católica não tenham assimilado a renovação teológica e pastoral iniciada pelo bom papa João XXIII, não é novidade. Mas surpreende ouvir de um membro de CEB, cuja identidade tem a marca do compromisso com a libertação dos oprimidos, a oposição entre Deus e política. Mais ainda num encontro cujo lema era o texto bíblico “eu vi e ouvi os clamores do meu povo”, que diz em seguida “e desci para libertá-lo das mãos dos egípcios”. O que teria acontecido? Teria sido abandonada a leitura da Bíblia inserida na vida do povo? Estaria voltando a Teologia do catecismo do Concílio de Trento?

Apesar de sofrer ataques, pressões e até assassinato de seus membros, desde os anos 1970 a Igreja católica do Brasil – e, portanto, as CEBs – tem atuado em defesa dos Direitos Humanos. Mais: ela não se contenta em defender Direitos violados ou ameaçados, mas propõe políticas públicas que consolidem os Direitos de quem é mais desprotegido. Ao fazê-lo, estimula a participação política de seus membros – especialmente leigos e leigas – nos condutos próprios para a implementação de políticas públicas: os partidos. Ela ensina que a escolha do partido não é mera opção subjetiva, mas deve obedecer a critérios éticos, porque os partidos não são iguais nem em seu projeto nem em sua forma de agir. Esse ensinamento, porém, parece ser ignorado por quem contrapõe Evangelho e projetos políticos, como se o Evangelho não devesse ser encarnado em projetos políticos para tornar-se politicamente operante.

  •  Quais os maiores desafios das CEBs no contexto de crise política, econômica e social do país?

Pedro Ribeiro de Oliveira – Devemos ver os desafios das CEBs sob duas perspectivas. A primeira é aquela que identifica as CEBs com os sofrimentos dos pobres, dos povos originários, das mulheres, dos negros e de outros grupos sociais excluídos do banquete dos ricos. Nessa perspectiva, os desafios das CEBs são os desafios desses grupos. Entendendo que o golpe jurídico-parlamentar de 2016 não foi apenas uma troca de governo, mas o instrumento de desmonte das conquistas da Constituição de 1988 e de implementação do projeto neoliberal do programa “uma ponte para o futuro”, as CEBs – em sintonia com todos aqueles setores sociais excluídos do banquete dos ricos – precisam reverter esse projeto e estabelecer uma sociedade fundada na Paz, na Justiça e no respeito aos Direitos da Terra. Isso significa superar as tentações da conciliação reformista e elaborar projetos que atendam realmente aos anseios de quem hoje sofre opressão. Em outras palavras, trata-se de se preparar para uma luta de longo prazo, árdua e sofrida, mas cuja vitória é assegurada pela Fé na promessa do Reinado de Deus.

A segunda perspectiva é aquela que vem da própria Fé cristã. Trata-se de dar sentido a essas lutas por uma sociedade que antecipe o Reinado de Deus na História. Aqui situa-se a corrente espiritual na qual as CEBs se inserem: a espiritualidade político-libertadora. Fomos habituados a pensar a espiritualidade em moldes pré-modernos, isto é, como caminho para a felicidade eterna após a morte. Nessa concepção, o espiritual se opõe ao material, assim como o celestial se opõe ao terrenal. A “Teologia das realidades terrestres” que inspirou o Concílio Vaticano II, porém, alargou o conceito, trazendo uma concepção de espiritualidade como energia mobilizadora da ação humana.

O exemplo da Madre Teresa de Calcutá, com sua espiritualidade do cuidado pelos miseráveis e moribundos, e a espiritualidade familiar incentivada pelos Movimentos de casais, são um bom exemplo dessa espiritualidade terrenal. Nesse mesmo plano cresce hoje a espiritualidade político-libertadora que anima os e as militantes de CEBsem sua luta por “outro mundo possível”. Aqui vejo o desafio específico das CEBs: alimentar esse tipo de espiritualidade terrenal. Não é fácil, porque como eu disse antes, pode-se perceber a regressão de muitos setores da Igreja católica a concepções pré-modernas institucionalizadas pelo Concílio de Trento, no século XVI, e reforçadas pela “pequena Tradição dos Pios” de que falava o padre Libânio.

  •  Durante o 14º Intereclesial, assessores históricos das CEBs assinalaram que, em relação ao papa Francisco, “não há discordância pública, mas corpo mole”, e também “que a Igreja brasileira é tímida”. Esta avaliação também pode ser percebida no 14º Intereclesial? De que forma?

Pedro Ribeiro de Oliveira – Nunca vi um Papa ser tão citado num encontro intereclesial como desta vez. E não apenas como “enfeite” da reflexão, e sim como seu fio condutor. Mas respondo a sua pergunta, explicando que ela se refere à crítica que fiz aos bispos que parecem se dar por satisfeitos com os pronunciamentos oficiais da CNBB contra os projetos do governo Temer. Foi aí que citei a entrevista do padre [Oscar] Beozzo reproduzida pelo IHU, falando do “corpo mole”.

No intervalo, um bispo reclamou comigo dizendo que ele também faz pronunciamentos críticos. Perguntei então se esses pronunciamentos são levados até as celebrações dominicais e ele respondeu, meio sem jeito, que o clero que sai do seminário não é preparado para isso… Acho que aí está o “x” do problema, já apontado muitas vezes por Francisco: o clericalismo imperante na Igreja. Os seminários formam celebrantes do culto, pregadores de autoajuda e comunicadores de mídia, não presbíteros capazes de alimentar a espiritualidade de leigos e leigas que levam a sério a recomendação do Papa de ser uma Igreja em saída.

Além de tudo, os seminários fechados são viveiros do clericalismo… Há exceções – e muitas, felizmente! – mas tenho saudades daquela geração de padres formados em escolas de filosofia e teologia junto com leigos e leigas, morando em pequenas comunidades de bairro, e se sustentando por seu trabalho… É de presbíteros assim que a Igreja precisa para colocar em prática o projeto de Francisco – que é o projeto do Concílio Ecumênico Vaticano II.

por Por: João Vitor Santos | 09 Fevereiro 2018  em www.ihu.unisinos.br

 

1 Comment

  • Pe. Nadir Luiz Zanchet

    Muito sensatas e acertadas as afirmações e análises de Pedro de Oli
    veira, nesta entrevista.
    – Precisamos empenhar-nos com sério compromisso para a superação da mentalidade e postura clericalista – também entre os leigos – e na boa formação dos novos presbíteros.

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