Shadow

A banda podre do Governo e da Câmara Federal

Pe. Jean Marie Van Damme (Pe. João Maria – assessor das CEBs NE V).

Além da lastimável figura que o Brasil apresentou na Cúpula do G-20 e na COP-26 – destacando, no entanto, a fala pertinente de Txai Surui, indígena de Rondônia – a votação da PEC 23 foi um dos fatos marcantes desta semana. Mais uma vez, a Câmara Federal mostrou seu caráter antipopular e corporativista. Em vez de fiscalizar o Poder Executivo, que é o seu papel, entrou no seu jogo obscuro. O Congresso Nacional é majoritariamente composto por homens (85%, embora as mulheres são mais de 50% da população brasileira), brancos (75%, uma representação indígena apenas – Joenia Wapichama da Rede-RR; a população preta e parda de 55,9% no Brasil ocupa apenas 24,4%[1]), casados e com uma idade média de 49 anos, os jovens com menos de 30 também são super sub-representados[2]. Mais de 80% dos integrantes da Câmara Federal completaram o curso superior, percentual maior desde pelo menos 1998. Cerca de 200 deputados são profissionais liberais – advogados, médicos, engenheiros, jornalistas, administradores, contadores, etc., 150 são empresários (agropecuaristas, comerciantes, donos de escritórios de advocacia, e.o.) e 160 assalariados ou exercendo atividades diversas (professores, agricultores, servidores públicos, bancários, militares e policiais, até pastores e religiosos e outros mais)[3].

Neste momento em que a Câmara, comandada por Artur Lira vota a PEC 23 – chamada Emenda do calote – é importante saber o perfil dos nossos não-representantes. A PEC foi apresentada no dia 10 de agosto de 2021 pelo Poder Executivo. Por tratar de recursos e orçamento, a iniciativa necessariamente é do Executivo. A primeira votação – de duas exigidas por tratar-se de mais uma modificação da Constituição – ocorreu na quinta-feira, quase na madrugada da sexta. É possível saber como votou cada um dos deputados no Portal Câmara Legislativa[4], prática que deveríamos fazer mais vezes, pois não só o direito, mas o dever de saber e de fiscalizar os eleitos. É muito importante a eleitora e o eleitor saber quais posições os nossos representantes adotam, o que decidem, como decidem. Quanto ao Estado onde resido, o Maranhão, 12 dos 18 deputados votaram a favor, 4 contra e 2 não estavam presentes. A PEC precisava de 308 votos, recebeu apenas 4 a mais do mínimo necessário para sua aprovação.

A Emenda expressa de forma clara o lado podre deste governo e seus lacaios no Poder Legislativo. Em primeiro lugar, porque, como já foi dito, dá um calote a pessoas, empresas e instituições públicas que não irão receber pagamento de dívidas reconhecidas pelo Poder Judiciário e que o Governo lhes deve. Lembrando que o Judiciário, na sua lentidão tradicional, demora até 30 anos para julgar estes processos. Quando inscritos entre os precatórios, não há mais nenhuma possibilidade de recurso para não pagar. Ou seja: além de a Câmara desobedecer a uma ordem judicial, os credores ficam a ver navios e não sabem quando poderão receber o dinheiro que o governo federal lhes deve. A consequência dessa atitude pode ser desastrosa para a economia do país. Além de tirar recursos da economia, bilhões de reais que poderiam ser injetados nela, qual a empresa, qual o país que ainda vai querer investir num país em que o governo declaradamente se nega a pagar suas dívidas, mesmo após um legal processo judicial? Os deputados que apoiaram a PEC, na sua visão, ajudaram ou prejudicaram o País que representam?

Mas há outra razão que torna a votação na Câmara ainda mais criminosa. O governo continua mentindo sobre a necessidade desta alteração constitucional. Alega que os recursos, liberados com esta verdadeira pedalada, se destinam a socorrer as famílias mais pobres por meio do seu novo Bolsa Família. Mentira deslavada. Com a sua popularidade em baixa, o Governo precisa mentir e iludir as pessoas mais desavisadas. Poderia tranquilamente colocar no Orçamento de 2022 recursos para continuar o Programa instituído pelo Governo Lula pela Lei 10.836/2004. O atual presidente quer riscar da memória histórica qualquer referência aos feitos dos governos do PT. Quer recontar até a história do golpe militar de 1964 e retomar a perseguição a imaginários inimigos comunistas. Em lugar de uma Política de Estado, como foi o Programa Bolsa Família, que passou por diversos governos durante 17 anos, cria agora um programa de governo que tem data para acabar: depois das eleições do próximo ano. E haja tempo para depois, com um possível desejável retorno de um governo popular, recriar um programa social destinado a sustentar as camadas mais pobres e vulneráveis da nossa sociedade.

Mas são também outros motivos torpes e imorais que mobilizaram os votos favoráveis da maioria dos deputados a essa PEC. Uma parte dos recursos será utilizada para emendas parlamentares, mas listadas num novo instrumento chamada de emendas do relator. São feitas pelo deputado ou senador que, naquele determinado ano, foi escolhido para produzir o parecer final sobre o Orçamento[5]. Especialistas em contas públicas alegam que este tipo de emenda não é transparente. Não se sabe qual deputado será beneficiado nem para onde os recursos serão destinados. A regra para emendas parlamentares estabelece que seja apontada a entidade beneficiária do dinheiro[6]. Mas esse dinheiro vira moeda de troca e será alocado em momentos de votações importantes para comprar os votos dos parlamentares. Isso é prática contumaz e vergonhosa do famigerado Centrão. Na véspera da votação dessa PEC, o Governo liberou 1,2 bilhão de reais para garantir a maioria de 308 votos. Vale lembrar que durante este ano, as emendas do relator – constantes portanto do orçamento oculto – somam R$ 18,5 bilhões, mais da metade de todas as emendas previstas no orçamento[7]. Para conseguir atingir o quórum, o presidente da Câmara, Artur Lira, está sendo acusado até de violar as normas regimentais da Casa legislativa. “Os dispositivos que autorizam esse esquema fraudulento (§ 7º e 8º ao Art. 167 da CF/88) visam desviar os tributos que pagamos para esse esquema e não passaram pelo crivo da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara dos Deputados, pois foram acrescentados somente na Comissão Especial, redigidos de forma cifrada, ininteligíveis, sem a devida clareza, e sem uma explicação sequer no relatório que acompanha a proposta, tendo sido desrespeitosamente jogados no texto da PEC 23 sem justificação ou motivação alguma.” [8] Em BH, onde o esquema foi implantado e depois suspenso e investigado por uma CPI da Câmara Municipal, beneficiou o Banco Pontual. Sabe de quem? Ministro Paulo Guedes.

O que motiva os deputados a buscar e concorrer para estes recursos, são as eleições do próximo ano. Ter dinheiro disponível para beneficiar sua base eleitoral e desta forma garantir sua reeleição, torna-se uma perspectiva bem atraente! Sobretudo porque todos sabemos – embora a comprovação é cada vez mais difícil – que partes importantes deste dinheiro serão usadas para superfaturamento e voltarão para as campanhas eleitorais em Caixa Dois, ou ainda diretamente para o bolso dos deputados. Longe de combater a corrupção, como divulgou o insano candidato em 2018, ele está ampliando as possibilidades de fraudes, alterando leis, interferindo nas estruturas de combate à corrupção e aumentando os recursos passíveis de entrar no circuito fraudulento. Na CPI do Senado, o próprio Senador Renan Calheiros insinuou no dia 28 de outubro, que o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), está preocupado com o avanço de investigações sobre o chamado ‘orçamento secreto’[9]. Aliás, que contradição: o orçamento é público, mas o acesso às informações é negado a quem paga os impostos, que estão saindo pelo ralo sujo do Congresso.]

Provocada pelo PSOL, a Ministra do STF Rosa Weber expediu nesta sexta-feira julgamento liminar que suspende de imediato o pagamento de emendas do orçamento oculto. Diz a Ministra: “Mostra-se em tudo incompatível com a forma republicana e o regime democrático de governo a validação de práticas institucionais adotadas no âmbito administrativo ou legislativo que, estabelecidas à margem do direito e da lei, promovam segredo injustificado sobre os atos pertinentes à arrecadação de receitas, efetuação de despesas e destinação dos recursos públicos, com evidente prejuízo do acesso da população em geral e das entidades de controle social aos meios e instrumentos necessários ao acompanhamento e à fiscalização da gestão financeira do Estado”[10].

Márcio Pochmann, que durante vários anos presidiu o IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, critica a atual política que promove o empobrecimento dos pobres e o enriquecimento dos ricos, especialmente a partir de 2015[11]. Para ele, o que pode reverter a tendência é a introdução ou ampliação de duas medidas cruciais para melhorar a vida do trabalhador e das camadas populares: estender programas de garantia de renda – Renda Universal ou Renda Básica, cujo protótipo pode ser o PBF, elogiado no mundo inteiro, e a redução do horário de trabalho[12], abrindo mais postos de trabalho e liberando o trabalhador para outras atividades como estudar, se dedicar à cultura e à família. Em muitos países, a jornada semanal de trabalho já reduziu para 36 horas ou até menos, enquanto o Brasil continua adotando ainda as 44 horas semanais, e uma legislação recém reformulada de forma desastrosa, dando mais liberdade ao patrão de explorar as horas de trabalho e férias remuneradas a seu próprio bel-prazer.

Importa, pois, conhecer mais, para poder acompanhar e fiscalizar a quem elegemos para governar o País, e sobretudo para legislar, fazer as leis, decidir em nosso nome. Como acompanhamos os senadores e deputados que elegemos? Mais do que um direito, é um dever de todos nós cidadãos e cidadãs brasileiros.


[1] https://www.correiodopovo.com.br/not%C3%ADcias/pol%C3%ADtica/ibge-menos-de-1-4-dos-deputados-federais-s%C3%A3o-negros-1.379735 (Acesso em 2021/11/06)

[2] https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2018/eleicao-em-numeros/noticia/2018/10/21/perfil-medio-do-deputado-federal-eleito-e-homem-branco-casado-e-com-ensino-superior.ghtml (Acesso em 2021/11/06)

[3] Lista completa em https://www.fessp-esp.org.br/conheca-as-profissoes-dos-deputados-federais-eleitos/ (Acesso em 2021/11/06); veja ainda https://www.diap.org.br/images/stories/profissao-eleitos-2018.pdf sobre o mesmo assunto

[4] https://www.camara.leg.br/presenca-comissoes/votacao-portal?reuniao=63898&itemVotacao=10272 (Acesso em 2021/11/06)

[5] https://www12.senado.leg.br/noticias/glossario-legislativo/emendas-ao-orcamento (Acesso em 2021/11/06)

[6] Idem.

[7] https://www.poder360.com.br/congresso/emendas-de-relator-facilitam-corrupcao-dizem-especialistas/ (Acesso em 2021/11/06)

[8] https://auditoriacidada.org.br/conteudo/carta-aos-senadores-urgente-pec-23-securitizacao/

[9] https://www.cartacapital.com.br/politica/investigacao-pode-colocar-lira-no-centro-do-maior-escandalo-do-brasil-diz-renan-entenda/ (Acesso em 2021/10/29)

[10] https://www.migalhas.com.br/quentes/354414/rosa-weber-suspende-pagamentos-do-orcamento-secreto (Acesso em 2021/11/06)

[11] https://outraspalavras.net/desigualdades-mundo/pochmann-os-que-ganham-com-a-miseria-do-brasil/ (Acesso em 2021/11/06)

[12] https://controversia.com.br/2021/10/22/pochmann-um-brasil-de-bicos-e-trambiques/?utm_content=buffer66ce5&utm_medium=social&utm_source=linkedin.com&utm_campaign=buffer (Acesso em 2021/10/30)

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