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Dom Angélico Sândalo Bernardino: um pastor com cheiro de povo, coração de profeta e alma de santo

Dom Angélico Sândalo Bernardino: um pastor com cheiro de povo, coração de profeta e alma de santo

 

“Perdi um confessor, amigo e companheiro de lutas. Mas terei a alegria de poder dizer aos meus netos: eu conheci um santo.”
— Toninho Kalunga

Essas palavras, carregadas de emoção, são as primeiras que me vêm à memória sob o forte impacto da notícia da passagem de Dom Angélico para a vida eterna. Tenho a alegria e a honra de ter feito parte de um pedacinho de sua caminhada e de ter convivido com Dom Angélico Sândalo Bernardino.

Com ele aprendi que devemos estar presentes nas dores e nas esperanças da luta do povo. São essas palavras que resumem, com simplicidade e grandeza, a marca deixada por esse bispo que, com seu rosto sereno e sua voz firme, soube conjugar fé e justiça, oração e ação, cruz e defesa intransigente de uma bandeira — a bandeira da Paz!

Dom Angélico nos deixou no tempo, mas não na história. Sua partida para a morada eterna — aquela que Jesus prometeu aos que vivem o Evangelho com radicalidade e ternura, e para onde Ele disse que iriam também todos os que Nele cressem — nos convida à memória e à gratidão.

Filho do Concílio Vaticano II

Nascido em Saltinho (SP), então distrito de Piracicaba, em 19 de junho de 1933, Dom Angélico foi ordenado padre em 1959 e bispo em 1974, pelo Papa Paulo VI, em plena ebulição do pós-Vaticano II. Foi um daqueles pastores que não apenas leram os documentos do Concílio — ele os encarnou. Escolheu viver uma Igreja como Povo de Deus, e não como poder. Optou por estar com os últimos, com os pobres, com os que choram.

Como bispo auxiliar de São Paulo, foi braço direito do Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns nos tempos sombrios da ditadura militar. Dom Angélico colocou sua mitra e báculo a serviço da vida. Participou das célebres missas nos presídios, das denúncias contra a tortura, e do apoio firme às Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), à Pastoral da Terra, da Moradia e aos movimentos populares. Foi um bispo da rua, da roça, da favela, do chão das fábricas e da mesa dos conselhos populares.

Formador de gerações de discípulos e discípulas

Entre os muitos dons que cultivou ao longo da vida, Dom Angélico foi um incansável formador de leigos e leigas, seminaristas, religiosos e presbíteros. Ao longo de décadas, contribuiu decisivamente para a formação de milhares de lideranças, sempre com ênfase numa fé encarnada, crítica, comprometida com os pobres e inspirada na prática de Jesus de Nazaré.

Nos cursos, encontros, assembleias, mutirões e retiros que conduzia — com fala mansa e conteúdo denso — formou consciências, iluminou vocações e despertou profetas. Sua pedagogia era a do testemunho: escutava antes de falar, ensinava com a vida, corrigia com doçura e firmeza evangélica. Sua presença era aula viva de Teologia da Libertação, espiritualidade do Reino e compromisso com a transformação social.

A Teologia da Libertação como prática de fé

Dom Angélico não apenas simpatizava com a Teologia da Libertação — ele a vivia. Como dizia Dom Pedro Casaldáliga, “não se trata apenas de uma teologia sobre a libertação, mas de uma teologia libertadora”. E assim ele foi: homem da escuta, das romarias, dos mutirões e da partilha do pão.

Em 2000, tornou-se bispo da Diocese de Blumenau (SC), onde também levou seu jeito simples, seu amor pela misericórdia de Deus e sua fidelidade à causa dos pequenos. Após sua aposentadoria canônica em 2009, retornou a São Paulo, onde seguiu ativo: celebrando, aconselhando, participando de atos públicos e sempre com um olhar afetuoso aos mais pobres, aos trabalhadores, às pastorais sociais e às lutas do povo. Foi neste período que mais convivi com Dom Angélico — e, posso dizer, mais aprendi.

Um santo do nosso tempo

Dom Angélico era da linhagem dos santos que não esperam canonizações. Sua santidade era visível nos gestos cotidianos: no abraço aos sem-teto, na presença solidária com os sem-terra, na palavra profética diante das injustiças. Não usava trono, mas banco de praça. Não tinha muralhas, mas portas abertas. Não se escondia em palácios, mas se deixava encontrar nas ruas, marchas, acampamentos e vigílias. Essa era sua Igreja.

Sua morte não é o fim de sua missão. É a passagem do bastão. A fé que professou e a justiça que defendeu continuam vivas nas comunidades, nas pastorais, nas juventudes, nos movimentos sociais e em tantos que, como ele, acreditam que o Reino de Deus começa aqui, com pão, dignidade e esperança para todos.

Afinal, como se diz: as palavras convencem, mas os exemplos arrastam!

A herança de um pastor libertador
Num tempo em que a fé muitas vezes é sequestrada por discursos de ódio ou por alianças com o poder econômico, Dom Angélico foi fiel ao Cristo dos pobres. Sua vida é um lembrete de que ser Igreja é estar do lado dos últimos. Como diz a canção que tantas vezes ele pedia para ser cantada nas missas que presidia:

“É Jesus este pão de igualdade,
Viemos pra comungar,
Com a luta sofrida de um povo
Que quer ter voz, ter vez, lugar.
Comungar é tornar-se um perigo,
Viemos pra incomodar…”

E Dom Angélico, com o Evangelho na mão e a Comunhão no coração, nos ensinou a incomodar — com ternura e coragem — aqueles que não se importam com a dor dos pobres.

Memória que vira compromisso

Que sua memória nos inspire a manter viva a chama da utopia do Reino. Que sua história nos desafie a continuar lutando por uma Igreja pobre e para os pobres. E que possamos ter a alegria e a honra de dizer às próximas gerações:

“Eu conheci um santo!”

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