Shadow

Escolhe, pois, a vida!

Por Leu Cruz*, da Comunidade Batismo do Senhor, Diocese de Duque de Caxias/RJ.

 

O nosso olhar se dirige a Jesus. O nosso olhar se mantém no Senhor

Quando vi tantas cartas e outros escritos sobre o acontecimento da Menina e cada texto tentando ser o que melhor olhava para a situação em questão, ou das situações que vieram após algumas atitudes ou pronunciamentos, fiquei pensando na Menina e também nas nossas comunidades: pessoas simples, crentes no Senhor, desejosas em ver tudo pela fé. 

Pensei muito nelas… nossas comunidades… 

Essas pessoas simples estão muitas vezes à mercê dos lobos ferozes, como esteve a Menina por quatro longos anos. Elas ouvem os familiares, os vizinhos, a televisão, as redes digitais e as Igrejas. Mas, nesse tempo de pandemia, se reduzem aos familiares, à televisão e às redes digitais.

Pensando assim, procurei algumas pessoas e pedi: escreve às nossas comunidades. Pensava eu algo que fosse ao encontro delas e construísse um diálogo que as ajudasse a pensar para além do comum das coisas que elas ouviam. Parecia a viúva insistente do evangelho no apelo ao juiz por justiça.

Mas as pessoas me respondiam: é muito difícil falar desse tema. O aborto é muito complicado de debater e fazer um texto sobre esse assunto.

Tentava eu esclarecer que o caminho era outro. A questão central estava em outro lugar. E a frase do Deuteronômio me vinha sem parar: Escolhe, pois, a Vida.

É a vida que queria que fosse proclamada em meio à morte; em meio à dor e ao sofrimento que essa realidade expõe.

Volto-me agora Aquele que amaria que fosse o centro de nossas vidas: Jesus. O que Ele faria? Como se comportaria diante dessa situação? Acredito que isso é que falta no nosso caminho de cristão: perguntar a Jesus e, através de sua Palavra, encontrar a resposta. 

Lembro muito nesses dias a passagem em que, num dia de sábado, Jesus cura uma mulher na sinagoga e é repreendido pelos fariseus. Responde a eles perguntando: no dia de sábado vocês não soltam seus carneiros, gados, cabritos? E essa filha de Israel aprisionada há tanto tempo, não deveria ser solta também?

Essa filha de Israel, na Menina, não deveria também ser libertada de tanta maldade?  Não deveria ser ela abraçada por todos nós em nome do Senhor, assim como foram a mulher da hemorragia e a menina que “dormia”? Dele não vem toda energia e força?

Onde está Jesus? Onde está o nosso Deus? Essa pergunta vem logo a nós quando estamos diante do absurdo, do inexplicável de tão violento e mortal. E a resposta vem logo a seguir: está nas próprias pessoas e em seus sofrimentos.

Deus foi crucificado com Jesus. Nossa dor é a sua dor. Nosso sofrimento, seu sofrimento. É assim a dinâmica que Jesus nos ensinou. Nossa vida está nas mãos de Deus, cantamos no salmo. E a vida da Menina está nessa mão.  E cada um de nós também. Nas mãos de sua misericórdia e de seu infinito amor.

A Ele voltemos, com Ele andemos. Ele é o nosso norte e orientação. Nossa bússola. Por isso o nosso olhar deve se dirigir e se manter em seu olhar, nele está contida a verdade do coração. Assim podemos ser protegidos da resposta rápida, da fala dos outros, do encanto da mídia (mesmo as católicas) e, do mais importante, do ato de condenar.

E como nos livrarmos do ato de condenar? A resposta vem da compaixão ensinada e vivida por Jesus. Compaixão é nos colocarmos no lugar do outro o mais inteiros que pudermos. É sentir em nós o que o outro está sentindo e vivendo. Olhou para multidão faminta e teve compaixão, estavam cansados como ovelha sem pastor. Sentiu dentro dele a fome do seu povo. Olhou nos olhos, viu que estavam perdidos e se ofereceu para ser sua orientação.

Nós somos esse povo, faminto de orientação e, muitas vezes, de pão. E essa fome, muitas vezes nos faz irmos atrás da primeira versão que aparece ou ao primeiro que grita mais alto ou seguimos às leituras condenatórias do caso.

Nos comportamos assim porque perdemos esse olhar fixo em Jesus. Nosso olhar fica fosco, embaçado com tantas coisas que ouvimos e vemos. Nosso olhar se transfere para a tela da televisão, e nossos ouvidos, para a notícia repetida inúmeras vezes. Até que nossa mente fica poluída e achamos que estamos pensando com nossa própria cabeça, mas são outras cabeças que estão pensando em nós. E, nesse tempo de pandemia, com nossas comunidades fechadas, onde o olhar real do outro nos falta para nos ajudar a ver além, para nos voltarmos para o centro, para limpar as vistas, ficamos à mercê dos olhares hipnóticos. Estes desejam nos levar para longe do olhar amoroso de Jesus. É o olhar de Jesus que nos conduz a uma pausa, que nos convida ao olhar misericordioso e faz com que passemos a olhar tudo nesse fato e na nossa realidade de um outro lugar.

A gente permite se fidelizar à primeira versão ou às seguintes variações dessa mesma. Por que fazemos essa escolha? Porque estar no lugar da dor, dói. Fugimos da dor como Pedro: quem é esse homem? Nunca estive com ele ou como os discípulos na “ multiplicação dos pães”: dispensa esse povo para ir comprar comida na cidade. Fugimos da dor da Menina, que é a nossa dor. E assim queremos que o culpado seja escalpelado em praça pública. Nossa raiva e nosso ódio vêm para fora, cega nossos olhos e ficam sendo nossa voz.

Mas, muitas vezes, acreditamos não ter esses sentimentos, ou que eles são pecados. Essa crença de que estamos livres de sentir raiva, ódio ou algo dessa envergadura, faz muitas vezes nos colocarmos no lugar de Deus, mas de um “Deus” impiedoso, castigador e vingativo. Embora acreditemos que estamos querendo justiça, somente justiça. 

Abramos nossos olhos e veremos a Deus e Ele nos conduzirá pelos caminhos que Jesus nos ensinou. Assim poderemos ver com compaixão a Menina, sua avó e até seu tio. Todos são envolvidos pelo amor de Deus que os vê com outros olhos. A Menina é centro da nossa atenção, mas tudo que a rodeia é atingido pela bondade e misericórdia dada por Deus.

Façamos a experiência de ficarmos quietinhos um pouco com a gente mesmo. Depois, nos voltemos para a Menina. A olhemos nos olhos. Façamos como em Jesus: o nosso olhar se dirige a Menina, o nosso olhar se mantém na Menina. Façamos contato com a sua dor e sofrimento, mas também com sua meninice e o que restou de sua criança e alegria. Talvez assim possamos ser salvos por ela, pois dela vem uma salvação. Toda misericórdia que a atinge, vinda da parte de Deus, nos atinge também, na medida em que no lugar dela nos coloquemos. Também talvez, nos livremos do caminho do julgamento e da vingança. Podemos assim ficar somente no amor.

Ficando no amor quem sabe possamos chegar até o tio da Menina. Esse caminho é calvário, mas também libertação. E só com muita ajuda do amor de Deus nos invadindo podemos passar desse lugar, no qual separamos os seres, para um olhar do coração sobre todos os seres, inclusive sobre aqueles que nos fazem sofrer e produzem muita dor aos inocentes. Jesus nos faz esse convite sabendo do quanto ele é difícil. Por isso, assim como no caso do jovem rico, Jesus olha dentro dos nossos olhos com amor.

Ao enfrentarmos as armadilhas da vida ficamos confusos com as encruzilhadas. Mas voltando o olhar para Aquele que nos amou primeiro, as armadilhas vão se desfazendo, e as confusões desse caso e de tantos outros, vão se clareando. Podemos, desse jeito, responder ao convite de amar como Jesus amou, sonhar como Jesus sonhou… e viver como Jesus viveu. No amor, só no amor, por Ele e Nele, amemos.

 

*Leu Cruz é professora, diretora do Museu Vivo do São Bento em Duque de Caxias, RJ, coordenadora da Comunidade Batismo do Senhor.

 

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