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O DIREITO DE TER COMIDA NA MESA

Foto: Luciney Martins

O reconhecimento da alimentação como Direito Humano no Brasil é bem recente. Precisamos esperar até o último ano do segundo mandato de Lula (2010), para ver o Direito à Alimentação ser reconhecido na Lei Maior do País, por meio da Emenda Constitucional nº 64. Esta Emenda modifica o 6º artigo da Constituição, que coloca o direito de alimentar-se entre os outros direitos que assistem a todas as pessoas que vivem no Brasil. O Art. 6º dispõe queSão direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”. (grifo da redação). Assim sendo, a comida, objetiva e subjetivamente, pode ser cobrada dos poderes públicos como um direito. O poder público, portanto, tem a obrigação constitucional de criar programas e políticas que garantam a alimentação. Não é mera política de um governo – o do PT – mas uma política de Estado e que deve ser promovida por todos os governos subsequentes.

No artigo 7º dessa Emenda, a alimentação está inserida entre os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais. A inclusão de trabalhadores rurais neste artigo dá fundamento para diversas políticas que, embora ainda de forma embrionária e insuficiente, devem beneficiar as famílias do campo, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), o incentivo à produção da agricultura familiar, a Compra Direta da produção do trabalhador rural pelos governos e o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).

A Merenda Escolar, como é chamada ainda por muita gente, começou a ser discutida na década de 1940 e sugerido pelo então existente Instituto de Nutrição. Sem ter disponibilidade de recursos na época, a Campanha de Merenda Escolar figurou como o único encaminhamento concreto do abrangente Programa Nacional de Alimentação e Nutricional, intitulado de “Conjuntura alimentar e o problema da nutrição no Brasil”. Em 31 de março de 1955, foi assinado o Decreto nº 37.106, que institui a Campanha da Merenda Escolar (CME)[1]. No início deste século XXI, a alimentação escolar ganhou uma dimensão maior, alcançando todos os alunos da rede das escolas públicas. Este Programa Nacional de Alimentação Escolar é admirado mundialmente.

Nas últimas semanas, como em muitas áreas da política nacional, há sérias agressões às políticas que visam garantir o direito público de ter comida na mesa. Uma das primeiras medidas do governo do Bolsonaro, no primeiro mês de seu governo, foi a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional por meio da Medida Provisória nº 870 (janeiro de 2019).

Dois Projetos de Lei já aprovadas na Câmara Federal e tramitando no Senado, desvirtuam as proposições originais da Política de Segurança Alimentar. São o PL nº 3.292/2000 e o nº 4.195/2012. O primeiro Projeto determina que “no mínimo 40% (quarenta por cento) dos recursos repassados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), no âmbito do PNAE, e utilizados para a aquisição de leite, devem se referir à forma fluida do produto adquirido junto a laticínios locais devidamente registrados no Serviço de Inspeção Federal, Estadual ou Municipal”; e retira a prioridade dada a comunidades tradicionais indígenas e de remanescentes de quilombos na aquisição de alimentos para o PNAE. E o PL nº 4.195/2012 torna obrigatório incluir nos cardápios das refeições fornecidas pelo PNA o consumo de carne suína).

Mesmo sendo o leite um alimento com importantes nutrientes, a realidade local não oferece possibilidades de abastecimento com leite líquido em condições sanitárias oriundo de produtores familiares pertencentes aos grupos prioritários, como indígenas, quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais. O Programa terá que recorrer a médios e grandes produtores para atender à demanda. O mesmo ocorre com a inclusão obrigatória de carne suína no cardápio escolar. A grande maioria de municípios brasileiros não dispõe de Serviço de Inspeção Municipal, que proporcionaria a compra de carne de qualidade de pequenos produtores. Quem se beneficia com esta obrigação, novamente, serão grandes e médios criadores de porcos. Além do mais, a proposta retira a autonomia de nutricionistas de elaborar os cardápios escolares a partir da cultura alimentar local.

Os dois Projetos de Lei estão ainda no Senado. Cabe, pois, pressionar os nossos senadores para não aprová-los. Infelizmente, o nosso Congresso é majoritariamente composto por representantes e defensores do agronegócio. Acompanhar e fiscalizar o que os deputados e senadores debatem e aprovam é papel e responsabilidade de cada eleitor e eleitora. Temos que ter a consciência de que eles decidem sobre grande parte da nossa vida. E muitas vezes decidem contra nossos direitos, contra nossos interesses e necessidades.

Uma Resolução do FNDE, de nº 6, de maio 2020, propõe a introdução, pelos estados, de um “Cartão PNAE”. Os produtores não receberiam mais dinheiro por meio de transferência em conta no banco, mas precisariam dispor de uma maquininha leitora de cartão pela qual a Prefeitura ou a Secretaria faz o seu pagamento. O FNDE alega que haverá maior controle do uso do recurso público. Os municípios recebem estes recursos do Ministério para a compra de alimentação escolar e teriam menos possibilidade de desvio de dinheiro.

Para o/a agricultor/a familiar, no entanto, é mais uma dificuldade que é colocada para a sua participação no Programa, e em pelo menos dois aspectos: a aquisição destas máquinas e o seu uso. Elas só funcionam por meio da internet, nem sempre disponível ou então funcionando com muitos problemas de conexão. Além disso, há custos na sua aquisição e uso, e que cairão sobre os ganhos dos trabalhadores familiares. Muitos se verão obrigados a sair do programa, perder compradores, e até mesmo abandonar o campo.

No começo do mês de agosto, as aulas presenciais nas escolas da rede pública deverão reiniciar. A compra de no mínimo 30% da agricultura familiar para a Alimentação Escolar, privilegiando produtores quilombolas, indígenas e famílias de assentados, significa transferência de renda para um público empobrecido. Em tempo de pandemia, quando a fome se expande, garantir acesso a recursos para estas famílias e alimentação de qualidade aos alunos, ganha em importância. Acabar com o espírito dos programas de transferência de renda ou diminuir o volume dos recursos, somente causará mais fome e mais miséria.

É muito contraditório o fato que o Brasil ocupa o 2º lugar no mundo em produção de alimentos, mas sua população está passando cada vez mais fome[2]. O agronegócio, há décadas, tem recebido muito mais atenção por parte do governo, do que a agricultura ecológica e familiar. Com preços internos altos, que impedem muitas famílias de conseguir alimentação adequada, a exportação brasileira irá bater novo record em 2021[3]. Para as empresas exportadoras, os tempos não são de penúria, mas o contrário.  No primeiro semestre deste ano, o superavit da balança comercial foi de 37,5 bilhões de dólares! Cerca de 175 bilhões de reais.

Sempre olhei de forma crítica para uma prática fisiologista que domina o parlamento brasileiro: o uso de emendas parlamentares para o poder executivo influenciar as votações em favor de seus interesses. É papel dos parlamentares avaliar, emendar e aprovar os orçamentos anuais e a posterior fiscalização de sua execução.

No decorrer da nossa história recente, houve alguns episódios marcantes de uso indevido dos recursos públicos para beneficiar interesses escusos. Em 1993, uma CPI investigou 37 parlamentares suspeitos, e alguns condenados depois, “com esquemas de propina, para favorecer governadores, ministros, senadores e deputados”[4].

Embora negasse a compra de voto de parlamentares, em 1997 Fernando Henrique Cardoso conseguiu a aprovação da Emenda Constitucional do segundo mandato para presidente, governadores e prefeitos, pagando 200 mil reais em emendas a quem votasse favorável à proposta[5].

Emendas Constitucionais posteriores, ampliaram o uso do recurso público por meio de emendas parlamentares nos orçamentos anuais, o que permitiu ao presidente da República poder de compra de votos. A EC nº 86/2015 tornou as emendas individuais impositivas e ainda determinou um valor mínimo (1,2% da receita líquida) a ser executado no ano seguinte. A metade do recurso solicitado deve ser para ações e serviços de saúde pública. Os parlamentares usam esses recursos sobretudo para aparecer para suas bases eleitorais e assim[6] garantir votos nas próximas eleições. Em outras palavras, as Emendas Parlamentares são um meio de compra de votos dos parlamentares para que votem favoráveis aos projetos do governo federal.  E, por sua vez, também servem para a compra de votos dos eleitores para a reeleição de deputados e senadores. Portanto, impedem ou dificultam a renovação dos integrantes da Câmara e do Senado.

Bolsonaro, que vê o apoio no Congresso diminuindo a cada instante, após afirmar em 2018 que “o Centrão é o que há de pior” na política, hoje se diz integrante dele[7]. Sabe que este aglomerado de partidos é muito sensível a cargos políticos e verbas oriundas de emendas. Lembrem-se da expressão, usada pelo general Heleno: “Se gritar pega Centrão (ladrão na letra do samba), não fica um, meu irmão”[8].

Pe. Jean Marie Van Damme (Pe. João Maria – assessor das CEBs NE V).


[1] https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/pnae/pnae-sobre-o-programa/pnae-historico (Acesso em 2021.07.25)

[2] https://www.cnnbrasil.com.br/business/2021/05/07/ano-de-2021-deve-ser-extraordinario-para-exportacoes-avalia-professor (Acesso em 2021/07/24).

[3] https://campoenegocios.com.br/exportacao-recorde-de-alimentos-seca-e-pandemia-agravam-fome-no-campo/ (Acesso em 2021/07/24).

[4] https://pt.wikipedia.org/wiki/An%C3%B5es_do_Or%C3%A7amento (Acesso em 2021/07/24).

[5] https://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc0212200703.htm (Acesso em 2021/07/24).

[6] https://www.politize.com.br/emendas-parlamentares/ (Acesso em 2021/07/24)

[7] https://www.poder360.com.br/brasil/politicos-ironizam-bolsonaro-por-falas-contra-o-centrao-em-2018-o-que-ha-de-pior/ (Acesso em 2021/07/24)

[8] https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/07/22/eu-sou-do-centrao-diz-bolsonaro-ao-ser-questionado-sobre-ciro-nogueira-na-casa-civil.ghtml (Acesso em 2021/07/24)

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