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Para um novo casamento cósmico: a Aliança divina com a humanidade é como uma festa de casamento na qual falta vinho. Marcelo Barros

O que nesse casamento da humanidade está vazio como as talhas de pedra destinadas a ritos de purificação é esse tipo de religião baseada em normas e ritos.

Ainda historicamente ligado à festa da Epifania, o evangelho desse 2º domingo comum do ano (Jo 2, 1 – 11) nos faz escutar de novo o primeiro dos sinais que Jesus dá aos discípulos. Trata-se do primeiro sinal que lhes permite compreender a proposta e a missão que Jesus quer cumprir no mundo. Todo mundo está de acordo que se trata de um relato simbólico, uma parábola e essa parábola é sobre a nossa relação de intimidade em Deus e com Deus. É como se o evangelho dissesse: a aliança divina com a humanidade é como uma festa de casamento na qual falta vinho.

O quarto evangelho diz isso em linguagem narrativa. Diz que há uma festa de casamento em uma aldeia da Galileia chamada Caná. Ali há um casamento no qual Jesus, sua mãe os discípulos são convidados ou participam. Na narração do evangelho, todos os personagens são anônimos. A única pessoa que tem nome é Jesus. De fato, nem os personagens principais que seriam o noivo e a noiva aparecem. O evangelho sublinha que é um casamento impossível de acontecer, porque não há vinho e na cultura deles, não pode haver casamento sem vinho. (No texto original a mãe de Jesus diz: “Eles não têm vinho”. Não diz que o vinho acabou. Diz simplesmente que eles não têm. Nunca tiveram). O vinho é o símbolo do amor que dá sentido ao casamento. Na cultura do evangelho, casamento sem vinho é casamento sem amor.

Os exegetas veem nos símbolos usados uma alusão à aliança judaica. O texto fala de talhas de pedra que parecem lembrar as tábuas de pedra da lei. Fala que elas serviriam para os ritos de purificação da religião judaica, mas estão vazias… E fala do mestre sala (em grego arquitriclínio) como do sumo sacerdote no templo (arquihereus). Por causa disso, normalmente, os sermões e homilias desse dia vão no sentido de que a religião judaica estava vazia, a antiga aliança já não valia nada e Jesus é o mediador da nova aliança que nos dá o vinho novo e por isso nos é dado como o Esposo da nova aliança com a humanidade.

Por várias razões, não gosto dessa interpretação. Não me parece justo com o Judaísmo (é uma visão anti-ecumênica com a religião judaica) e arrogante, (pretensiosa) como se a proposta de Jesus fosse substituir uma religião por outra e tomar para si essa função de esposo da humanidade, imagem que, de fato, alguns textos trazem … (João Batista tinha falado do Messias como esposo da humanidade e o próprio Jesus respondeu aos adversários que seus discípulos não jejuariam enquanto o esposo estivesse com eles). No entanto, o texto não mostra em nenhum momento Jesus nem como esposo nem como o mordomo da festa. Ele simplesmente é quem manda encher as talhas de água e essas são se transformam em vinho.

Em um mundo como o nosso, sinto que o casamento é humano e é entre nós mesmos. O que Jesus vem é trazer um novo vinho (um novo amor) a essa aliança. Mais tarde, esse mesmo evangelho dirá: Ele morreu (deu a vida) para reunir na unidade todos os filhos e filhas de Deus dispersos pelo mundo (Jo 11, 52). A proposta de Jesus é a de uma aliança da humanidade a serviço da Vida. Uma aliança cósmica entre nós e com o universo. Na qual a água, o vinho e todo o universo se casam no amor que é divino. Há poucos dias, falando à Academia pela Vida, no Vaticano, o papa Francisco falou da importância (urgência) dessa aliança da humanidade a serviço da vida. (A vida não pode ser mercantilizada).
Aqui no Brasil, nesses dias de tribulação para quem tem consciência social, as bodas de Caná nos chamam a nos unir aos povos indígenas (Todos nós temos de nos colocar na pele dos índios e como indígenas). Em um Brasil que abriu a temporada de caça aos movimentos sociais e especialmente aos lavradores sem-terra, temos de ser todos, no coração e pela nossa solidariedade, lavradores/as sem-terra.

Temos de nos solidarizar às famílias pobres dos presos das cadeias do Ceará, retirados sumariamente e à força dos seus lugares de origem e levados não se sabe para onde, nem até quando…

O evangelho é uma boa notícia para toda a humanidade e não só para a Igreja. Por que interpretar de forma tão restritiva e miúda?
O que nesse casamento da humanidade está vazio como as talhas de pedra destinadas a ritos de purificação é esse tipo de religião baseada em normas e ritos. Qualquer religião que tenha substituído o amor pela observância está vazia. Como primeiro sinal da sua missão no mundo, Jesus transforma água em vinho para alegrar os participantes de uma festa. Ele mesmo entra no espírito da festa e nos dá esse vinho novo que nos recorda que somos chamados à libertação. Temos de nos libertar de todos os jogos de escravidão que esse sistema do mundo nos impõe. O vinho que Jesus nos dá é a gratuidade nas relações e a possibilidade de sermos nós mesmos, como somos e do jeito que Deus nos ama.

Acabei de publicar na Itália uma “conversa com o evangelho de João”, livro feito com um grupo bíblico de uma cidade do norte da Itália (Pinerolo, perto de Turim). Nessa nova leitura comunitária, o que mais me tocou é como esse evangelho vai além das fronteiras, sejam religiosas, sejam culturais e nos chama a viver o movimento divino de se fazer humanidade. (A Palavra se fez carne). É essa interpelação que escuto hoje como apelo a me tornar cada vez mais humano e nessa aliança da humanidade e do universo.

Marcelo Barros

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