“o Papa Francisco é uma chuva depois de uma terrível seca”
“A Esperança do Pobre Vive.” Comblin
A Comissão Pastoral da Terra – CPT, acompanhou a vida de Ruben Siqueira nos últimos quarenta anos. Na CPT, onde hoje faz parte da Coordenação Executiva Nacional, ele encontra um modo de ser cristão, de lutar contra as injustiças e a violência no campo, especialmente na Amazônia, acusando o Estado brasileiro de “conivente, omisso, e até promotor dessa situação de violência”.
Junto com a terra, a CPT se preocupa com o cuidado da agua, em um país que tem uma legislação que favorece o abuso d´água, sempre em favor dos donos do capital. Frente a isso, a Comissão Pastoral da Terra tem sido parceira em políticas públicas que favoreçam o acesso à água, sobretudo no semiárido nordestino.
Ruben Siqueira afirma que “o Papa Francisco é uma chuva depois de uma terrível seca”. Nesse sentido, ele destaca o grande valor da Encíclica Laudato Sí, que mostra a importância do “cuidado com a Mãe Terra e os pobres da terra como os privilegiados do cuidado e da atenção da Igreja”, o que condiz com o propósito da Pastoral da Terra.
Diante dos ataques que vem sofrendo os agentes da CPT, aparecendo como exemplo mais claro o caso do Padre Amaro Lopes, ele reconhece que “a violência no campo, a violência agraria ela é pedagógica”, pretende intimidar. Se faz necessário “recriar nossas resistências, nossas formas de saber lidar”, que permita lutar contra a tentativa de voltar “às origens do liberalismo”, uma situação que “afeta a uma parte cada vez maior da sociedade brasileira e mundial”, que se traduz em aumento da pobreza, dos sem-teto, os famintos, consequência de “uma concentração do poder de riqueza cada vez maior”.
Depois de quase quarenta anos trabalhando na Comisão Pastoral da Terra – CPT, o que ainda lhe motiva para continuar trabalhando na CPT?
Faria a resposta em duas perspectivas, primeiro é que o processo de construção do Reino de Deus é permanentemente inconcluso, e eu encontrei na CPT um modo de continuar essa procura e me dedicar a isso. Tinha algo muito a ver com o modo de ser cristão. A segunda é que as razões pelas quais a CPT foi criada há quarenta e três anos atrás, estão presentes e agravadas. Nós vivemos no Brasil hoje, um processo de exacerbação da violência no campo, de mortandade, de todas as formas de violência, inclusive os massacres, que é quando são assassinados três ou mais na mesma ocasião. Foram cinco massacres em 2017 e 71 mortos no geral.
Isso reflete esse crescimento da violência, que tem muito a ver com o processo global do capitalismo. Hoje a terra se tornou um ativo no mercado de capitais, depois da crise do capital financeiro em 2007, que é uma crise da especulação. Em busca de um lastro real, para não cessar, pelo contrário potencializar a especulação, a busca de áreas no Brasil, que tem ainda a maior concentração de terras agricultáveis, a maior concentração de água doce disponível, principalmente na Amazônia. É por isso que a maior parte desses conflitos, desses massacres, aconteceram na região. O apelo para a resistência da CPT, e para minha dedicação à CPT e aos camponeses, continua mais presente do que nunca.
Como a CPT está enfrentando essa violência no campo, quais os passos que estão sendo dados, quais os desafios enfrentados pela CPT
O principal da CPT é o trabalho junto com os camponeses, com privilégio daqueles que sofrem esses conflitos e que são vítimas dessa violência, porque o nosso propósito, o nosso modo de atuar é potencializar a resistência, autonomia e protagonismo desses próprios. Acreditamos que esses povos mais pobres, empobrecidos, têm a capacidade de se libertarem, pelo menos essa é a prática e o ensinamento de Jesus e de tantos seguidores dele depois.
Junto a isso, que isso não é suficiente, é preciso construir processos de aliança, de parceria, com outras instituições afins, usar o aparelho do Estado, ainda que esse Estado seja conivente, omisso, e até promotor dessa situação de violência, mas é preciso forçar o Estado, através do Ministério Público, junto ao Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas, porque um dos fatores do aumento da violência são os retrocessos na legislação. O Congresso, dominado pela bancada ruralista, a bancada do agronegócio, tem feito mudanças na lei que prejudicam os agricultores, o reconhecimento das terras tradicionais, das terras indígenas, dos territórios quilombolas e outros povos tradicionais, dificultando a agricultura familiar e camponesa, que é aquela que produz o alimento que se come.
Na medida em que se favorece o agronegócio, que se favorece a agricultura a base de insumos químicos, de agrotóxicos, o Brasil já é o maior produtor e o maior consumidor de agrotóxicos no mundo, tem leis aí que ainda querem abrir mais para outros produtos. Ao mesmo tempo, a gente atua também, tenta junto com esses parceiros, a opinião pública nacional e internacional, e isso cada vez é mais importante, por conta da circulação da informação, e da disputa de narrativas ao respeito dessas situações todas, e também junto a tribunais de Direitos Humanos, tribunais internacionais, da ONU, da OEA, intentamos usar de todos os meios possíveis para que possa criar uma frente que se anteponha, se não consegue vencer no momento, pelo menos barre, estanque essa sangria terrível que aumenta no campo.
A CPT, junto à defesa da terra, trabalha a defesa das águas. Qual é a problemática da água no Brasil?
Primeiro o uso da água na agricultura e nos outros diversos usos, cresce a irrigação, em sistemas hidro intensivos, ou em mineração, também cresce e são hidro intensivos. Alumínio, por exemplo, extração de bauxita para transformar em alumínio, gasta água. A própria mineração atinge os mananciais, os aquíferos, e aí, junto às comunidades que são as primeiras atingidas por essa busca da água para usos económicos intensivos, é o primeiro passo que a gente tenta para defender a água. Inclusive levar a essa reflexão, o Brasil como uma potência hídrica é um país que exporta água, através de minério, através dos produtos agrícolas, e isso não se dá conta.
A legislação brasileira, tida como moderna, ela favorece esse abuso d´água e ainda chama a sociedade para participar disso, quando se fala que tem pela lei de 1997, que a sociedade e todos os usuários d´água, participam da gestão d´água, que é uma gestão participativa e inclusiva, como se os parlamentos das águas, que são os comitês de bacias, fossem suficientes para que esse uso d´água fossem sustentáveis. Na verdade, a gente está vendo que isso é uma máscara, isso é um biombo, um mascaramento do aprofundamento do abuso da água e da crise hídrica.
No Brasil tem regiões, sobretudo no Nordeste, onde muitas vezes e durante muito tempo, o povo passou sede. Como resolver o problema da água?
A região do Nordeste, o semiárido brasileiro, talvez até por conta de mais tempo no enfrentamento da crise hídrica, que é uma crise sazonal, periódica, tem um período que não chove mesmo, saber captar, armazenar e usar de maneira sustentável e equilibrada a água acumulada. Isso já traz para esse povo, há mais tempo, uma perspectiva de salvar a água, para os usos prioritários d´água, que são os usos humanos.
Já no final dos anos noventa e início dos anos dois mil, as tecnologias muito simples, que é essa da cisterna de placas, captação de água de chuva do telhado das casas, uma água a baixo custo, relativamente baixo, uma cisterna de dezesseis mil litros é suficiente para uma família de cinco pessoas beber e cozinhar por oito meses. Essa primeira experiência virou política pública, existe o projeto, ainda na época do governo de Fernando Henrique Cardoso, que é o Projeto Um Milhão de Cisternas, que era para ser em cinco anos, um milhão de cisternas no Semiárido, e nós estamos em torno de oitocentas mil. Tantos anos depois ainda não conseguimos um milhão.
A partir dessa primeira experiência exitosa partiu-se para uma outra, que é o Projeto P1+2, uma Terra e duas Águas, que já é a água da produção, da produção agrícola, da pecuária, também usando captações várias, inclusive principalmente de chuva. Com isso, garantida a água de uso humano, doméstico, a água de uso para a produção, e então você tem condições hídricas suficientes para bem viver no Semiárido brasileiro, depois de tanta seca, depois de tanta mortandade.
O melhor exemplo do sucesso dessa política popular, que virou política pública, com boa participação de muitas entidades, quase mil entidades articuladas na ASA, Articulação do Semiárido Brasileiro, é que na última grande seca, a mais rigorosa da série histórica das secas, pelo que se tem notícia, não morreu ninguém no Semiárido brasileiro, morreram animais, até árvores resistentes à seca, secaram, mas pessoas não se tem notícias. Provavelmente isso se deve a essa política de captação de água de chuva, de uso moderado, sustentável das águas acumuladas.
Na história da CPT sempre teve bispos profetas, ligados à CPT, que influenciavam decisivamente o resto dos bispos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB. Hoje o episcopado brasileiro está alinhado com as Pastorais Sociais, com a Pastoral da Terra?
A Igreja católica, e também algumas Igrejas evangélicas históricas, elas têm essa tradição de lidar com as demandas internas, muitas vezes conflituosas, de modo a conciliar. Nesse período de resistência à Ditadura Militar no Brasil, depois do Concilio, depois do Documento da Conferência de Medellín, depois o Documento da Conferência de Puebla, um grupo não muito grande de bispos, com um cunho profético muito forte, fizeram essa tendência da conciliação para o lado dos pobres, para o lado dos oprimidos, dos explorados, no campo e na cidade. Essas figuras davam tom para a CNBB.
Depois do Papado de João Paulo II, na volta para a sacristia, e com Bento XVI, ainda tentando estender esse período, esse pêndulo deixou de correr para essa direção dos pobres e ficou centrada em se mesma, numa Igreja que se empoderou como instituição clerical, voltada para a liturgia, para uma espiritualidade desencarnada. Mas também permaneceu, em menor número no episcopado, pessoas, lideranças que continuaram firmes nessa tradição de opção pelos pobres, de Medellín, de Puebla, confirmado em todas as Conferências Latinoamericanas posteriores, ainda que fosse desfibrada um pouco essa ação.
A CNBB hoje, ela é muito composta com essas tendências conflituosas da sociedade, que reverbera da sociedade dentro da Igreja, mas aí ainda nós temos uma nova safra de bispos, com exceções, acho que é uma dificuldade que o Papa Francisco possa ter mais apoio, se consegue influenciar mais o processo de nomeação de bispos, que é uma caixa preta até hoje para os fiéis, para a assembleia do Povo de Deus. Mas, enfim, contamos ainda com alguns, pelo menos, para que possamos estar legitimamente vinculados e estreitados com a direção da Igreja, com a Conferência Nacional dos Bispos, com a Pastoral da Terra. É uma pastoral criada pela CNBB e continua tendo sua ligação.
O Papa Francisco escreveu a Laudato Sí, uma encíclica sobre a ecologia. Como sua presença está influenciando para que essa dimensão ecológica seja assumida dentro da Igreja?
Usando uma metáfora bem sertaneja, do nosso Semiárido, o Papa Francisco é uma chuva depois de uma terrível seca. Reabre a esperança de saciação da sede, do plantio, da fartura, trazendo essa perspectiva da ecologia, a discussão das mudanças climáticas, do aquecimento global, usando na própria Carta Encíclica Laudato Sí o que tem de mais avançado ao respeito, então tem um respaldo para essas afirmações da Laudato Sí.
Nós nos sentimos plenamente respaldados, principalmente numa compreensão de terra que vai além da terra de lavrar, coisa que a gente já tinha incorporado aqui na Amazônia, no Semiárido e outros biomas do país, junto com os camponeses. O quanto os processos, ciclos da natureza são essenciais para a atividade agrícola, para a vida toda de famílias camponesas, de comunidades camponesas.
Essa permeação pela natureza, defesa disso, o avanço do agronegócio que quer impor monoculturas tóxicas, hidro intensivas, produzindo poucos produtos para a exportação e não para a fome, deixando desertos atrás, vindo propor como reação a isso o mercado de carbono, os mecanismos de redução da emissão de carbono, como se fosse um negócio, um mercado, mas manter na natureza porque precisa dela, porque ela tem direito, não numa perspectiva mercantil. Tudo isso, a gente se sente respaldado na postura do Papa Francisco, nessas duas direções, o cuidado com a Mãe Terra e os pobres da terra como os privilegiados do cuidado e da atenção da Igreja, e por isso, a Pastoral da Terra.
Você falava dos conflitos no campo, uma das regiões onde esses conflitos são maiores é o sul do Estado do Pará, onde além das massacres e perseguições, neste ano aconteceu a prisão do Padre Amaro, em consequência de sua luta em defesa dos direitos dos posseiros, continuando o trabalho que a Irmã Dorothy fez durante muito tempo. Qual é realmente a situação dessa região, o que é que está acontecendo para chegar nessa situação tão crítica?
Além desse poder local articulado de poderes mais amplos no estado e no país, estou falando do poder dos madeireiros, o poder dos ruralistas, dos pecuaristas e, até mesmo desses mercadores de carbono, essa região encontrou na luta dos camponeses, dos povos da floresta, com o apoio da CPT, da Irmã Dorothy, do Padre Amaro, das outras irmãs de Notre Dame de Namur, lá em Anapu, o apoio necessário para fazer um embate que ele é muito simbólico, além de ser real ali, porque constituiu-se um PDS, um Plano de Desenvolvimento Sustentável, um uso da floresta de maneira efetivamente sustentável, que são sistemas agroflorestais.
Por conta disso, você tem um forte poder de esses setores devastadores, destruidores da floresta e você tem uma experiência dos pobres, apoiado pela Igreja, pela CPT contraposto a isso. Então isso precisa ser eliminado para ser exemplar. A violência atual, a violência no campo, e sempre foi assim, a violência no campo, a violência agraria ela é pedagógica. Quando você dá oito tiros na cabeça de uma liderança camponesa, você quer contar a cabeça, quando você mata a uma religiosa, com a Bíblia aberta na mão, é para dizer assim, vocês da Igreja, da CPT, não façam isso, porque vocês vão ser matados também.
Quando se plantam provas que não são provas, montagens de situações para incriminar o padre, não para mata-lo e virar outro mártir, como Dorothy virou, e um símbolo que fortalece a luta, lá tem a Romaria da Floresta que vá em direção ao seu túmulo e reafirma a resistência dos camponeses nos sistemas agroflorestais. Eles também evoluíram, não vamos eliminar fisicamente para dar força para eles através de um novo mártir e nós vamos desmoraliza-lo na sociedade. O processo do Padre Amaro tem esse sentido.
A gente também tem que recriar nossas resistências, nossas formas de saber lidar, de construir uma opinião pública, uma narrativa que ganhe também as redes sociais, a opinião pública, revelando a trama urdida, diabólica que está por trás disso.
A gente pode dizer que o governo brasileiro, o atual e o que vai assumir no início de janeiro, com uma perspectiva de futuro pouco alentadora, são contra os mais pobres, contra os que defendem os ideais e pensam em um outro mundo possível?
Esse embate, ele é cada vez mais explícito e acirrado, o neoliberalismo, a volta aos princípios, às origens do liberalismo, que teria sido perturbado pela socialdemocracia da pós-guerra, pelo estado de bem estar social, essa reafirmação do individualismo possessivo e exacerbado, ele não só é uma prática política, uma forma de economia, mas é uma ideologia muito poderosa, a mais poderosa ideologia que a humanidade já teve. Ideologia no sentido de uma mentira bem contada, uma crença que as pessoas aderem sem se dar conta do que ela significa realmente para sua vida, para sua continuidade como sociedade, como povo.
Nossa dificuldade, eu acho que a mensagem de Jesus, a atualidade dela, essa postura da Igreja de América Latina, do Papa Francisco agora na Igreja mundial exatamente o confronto com essa postura que a gente nem chama mais de neoliberalismo, é ultra liberalismo, é hiper liberal. O que temos para enfrentamento disso, mais do que condicionar, refrear, um pouco isso, as vítimas disso, com os trabalhadores precariçados, a previdência pública derrubada, o corte de gastos sociais com saúde, educação, segurança pública. Isso afeta a uma parte cada vez maior da sociedade brasileira e mundial, nos países de Europa e Estados Unidos aumenta a pobreza, aumenta os sem-teto, aumenta os famintos, uma concentração do poder de riqueza cada vez maior.
A perspectiva disso é uma hecatombe final, é o fim. As pobres vítimas, os empobrecidos disso são aqueles que mais tem o interesse de que isso não aconteça. A resistência dos pobres, no campo e na cidade, nas diversas formas de empobrecidos, vitimados por esse sistema, essa é a esperança que nós temos, é o que o Papa está dizendo, quando ele diz, nenhum camponês sem-terra, nenhum trabalhador sem trabalho e nenhuma família sem teto, ele quer dizer a idolatria do mercado é a mote.
Esses que que lutam, que tem o direito, que buscam essas três coisas que são fundamentais para qualquer existência humana, eles estão sendo os estratégicos lutadores contra essa possibilidade do fim completo que o sistema aponta nessa direção. A esperança, ai eu lembro toda a trajetória, todos os escritos, a monumental obra do Padre José Comblin, resumida nessa frase, a esperança dos pobres vive.
Luis Miguel Modino
Ruben Siqueira, Parabéns pelos anos de dedicação à essa população tão desassistida. Admiro demais seu trabalho!