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As mudanças no mundo do Trabalho e os impactos na participação da comunidade – VER/JULGAR

 

VER

[EM CONSTRUÇÃO]

Dom Reginaldo Andrietta

Bispo Diocesano de Jales – SP
Bispo Referencial da CNBB para a Pastoral Operária Nacional
Membro da Comissão Especial da CNBB para o Ano Nacional do Laicato

 

JULGAR

A impossibilidade do trabalho, o trabalho precário e o trabalho com função antissocial resultam de uma lógica econômica idolátrica, cruelmente mortal.

André Langer

1. Introdução

Proponho por este texto, breves ideias para uma interpretação bíblica, teológica e pastoral sobre “as mudanças no mundo do trabalho e os impactos na participação da comunidade”, em resposta às seguintes questões: Quais desafios principais emergem do mundo do trabalho no Brasil, hoje? O que a Palavra de Deus sugere a respeito dessa realidade? Como a Igreja vê o mundo do trabalho, nos dias atuais? Quais são seus desafios pastorais frente a essa realidade? Como as CEBs devem encarar esses desafios?

2. Questões que emergem do mundo do trabalho

O direito ao “trabalho decente”, “capaz de garantir uma vida digna”, conforme compreende a Organização Internacional do Trabalho (OIT), caracterizando-o como “adequadamente remunerado, exercido em condições de liberdade, equidade e segurança”, merece ser analisado. As organizações de trabalhadores têm lutado pela garantia de condições dignas de trabalho, tendo como foco, sobretudo salários, condições ambientais de trabalho e benefícios sociais.
Esse tipo de luta, tida como “economicista”, é muito importante, mas não afronta, necessariamente, a lógica capitalista. Lutas desse tipo permitiram superar, em algumas nações, o capitalismo selvagem. No entanto, não geraram um novo sistema. O capitalismo continua, enfim, gerando “barbáries”. As lutas, exclusivamente economicistas, seriam, então, reformistas, fazendo parte, até mesmo, do aprimoramento do sistema capitalista? Certamente!
Os detentores do capital aperfeiçoam seus mecanismos de exploração, maximizando os investimentos tecnológicos e a financeirização da economia, utilizando-se do Estado e de seus aparelhos ideológicos para impor sua orientação neoliberal, manipulando consciências em nome de uma falsa liberdade e modernização, e de um bem estar ilusório. Os mecanismos de acumulação de capital se tornam mais sofisticados, com a consequente destruição da qualidade de vida. Qual lógica está por detrás desse sistema? Estaríamos, inconscientemente, imbuídos dessa lógica?

3. Trabalho opressor, Deus libertador

Nossa sociedade orienta-se pelo Deus verdadeiro ou é idolátrica? “Não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6,24). Com essas palavras, Cristo dá a chave que abre a porta de interpretação bíblica e teológica do capitalismo. O “dinheiro”, mencionado por Cristo, simboliza o capital que, ao longo da história, tem sido acumulado. Esse instrumento de relações mercantis tem, hoje, um grau elevado de virtualidade. O mercado financeiro é feito por dinheiro que gera dinheiro, sem lastro real. O capital, nessa forma, dá impressão de ser um deus que “gera” a si mesmo. Esse extremo resulta de uma economia sob a lógica da mercantilização total, fundada na exploração desenfreada dos recursos naturais e da mão-de-obra, cujo lucro é canalizado para a geração de mais lucro.
Essa “economia sem coração” não está em função da coletividade humana. Ela se funda na liberdade e na concorrência de mercado que sacrifica vidas humanas. Essa lógica sacrificial foi explicitamente questionada por Jesus: “Ide, pois, e aprendei o que significa: ‘eu quero misericórdia e não sacrifício’” (Mt 9,13). Hoje, a classe trabalhadora tem sido imolada, ou seja, sacrificada no altar do “trabalho explorado” ou do “não trabalho”, em oferenda ao deus capital.
A impossibilidade do trabalho, o trabalho precário e o trabalho com função antissocial resultam de uma lógica econômica idolátrica, cruelmente mortal. A fé no Deus verdadeiro, de inspiração judaicocristã, sinaliza uma lógica totalmente oposta. Deus, segundo essa tradição é fonte de vida. Ele é, portanto, libertador de sistemas que causam a morte, a exemplo da libertação dos hebreus no Egito, relatada no livro do Êxodo. Suas aflições resultavam do trabalho escravo, promovido pelo Estado, representado pelo poder opressor dos Faraós.
Por “intervenção de Deus”, Moisés liderou a organização e a luta desse povo oprimido. A identidade libertadora de Deus se manifestou, desde então, na conquista da terra prometida, na atuação dos profetas e na missão de Cristo, o Verbo encarnado (cf. Lc 4,16-21). Este assumiu a “condição de escravo”, isto é, de trabalhador do seu tempo (cf. Fl 2,5-11), adentrando a realidade de morte gerada sobretudo pelo trabalho opressor, para resgatar os oprimidos e dar-lhes vida. O próprio Jesus o diz: “O ladrão vem só para roubar, matar e destruir. Eu vim para que tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10,10).
Em Jesus, Deus não assumiu natureza humana abstrata, mas realidade concreta de trabalhador. Jesus foi um trabalhador manual (Tektōn, em grego; traduzido por carpinteiro, cf. Mc 6,3) identificado, portanto, com trabalhadores comuns. Seu “trabalho” evoluiu, por meio de sua “vida pública”, para a “obra” que o Pai lhe confiou. Ele assumiu-a até o fim (cf. Jo 17,4). Sua ação e sua doação total para a salvação da humanidade, tornou-se missão contínua, confiada aos seus discípulos. Quais são as implicações dessa missão para a Igreja, referentes ao mundo do trabalho?

4. A Igreja e o mundo do trabalho

A Igreja passou a expressar, de maneira mais clara, a relação entre sua Doutrina Social e o mundo do trabalho, a partir da Encíclica Rerum Novarum, de Leão XIII, em 1891, culminando com a importante afirmação do Papa São João Paulo II, em sua Encíclica Laboren Exercens, de 1981: “o trabalho humano é uma chave, provavelmente a chave essencial, de toda a questão social” (n. 3). Por meio do trabalho, como chave de leitura da “questão social”, podemos entender a dinâmica da sociedade, relacionando-a, necessariamente, com a dinâmica do capital e do Estado.
João Paulo II aponta o perigo de tratar o trabalho como mercadoria ou como força de trabalho, especialmente quando a vida econômica está atrelada a um economicismo materialista. O ser humano deixa de ser neste caso, sujeito eficiente, artífice e criador. Ele ressalta que “o erro do primitivo capitalismo pode repetir-se onde quer que o homem seja tratado, de alguma forma, da mesma maneira que todo o conjunto dos meios materiais de produção, como um instrumento e não segundo a verdadeira dignidade do seu trabalho – ou seja, como sujeito e autor e, por isso mesmo, como verdadeira finalidade de todo o processo de produção” (n. 7)
Por isso, João Paulo II diz que “é necessário prosseguir a interrogar-se sobre o sujeito do trabalho e sobre as condições da sua existência. Para se realizar a justiça social nas diversas partes do mundo, nos vários países e nas relações entre eles, é preciso que haja sempre novos movimentos de solidariedade dos homens do trabalho e de solidariedade com os homens do trabalho. Uma tal solidariedade deverá fazer sentir a sua presença onde a exijam a degradação social do homemsujeito do trabalho, a exploração dos trabalhadores e as zonas crescentes de miséria e mesmo de fome” (n. 8).
Para João Paulo II, “a Igreja acha-se vivamente empenhada nesta causa, porque a considera como sua missão, seu serviço e como uma comprovação da sua fidelidade a Cristo, para assim ser verdadeiramente a ‘Igreja dos pobres’” (n. 8). Para ele, os pobres aparecem, “em muitos casos, como um resultado da violação da dignidade do trabalho humano.” (n. 8). O Papa Francisco avançou ainda mais nessa perspectiva, associando seu pontificado às causas sociais, relacionando-as às questões econômicas, políticas e ambientais, com forte ênfase à luta da classe trabalhadora, como bem demonstraram os três encontros mundiais que ele realizou com movimentos populares.
Merece destaque o que ele escreveu na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, em 2013: “A necessidade de resolver as causas estruturais da pobreza não pode esperar; não apenas por uma exigência pragmática de obter resultados e ordenar a sociedade, mas também para a curar de uma mazela que a torna frágil e indigna e que só poderá levá-la a novas crises. Enquanto não forem radicalmente solucionados os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira e atacando as causas estruturais da desigualdade social, não se resolverão os problemas do mundo e, em definitivo, problema algum” (n. 202).

5. Desafios pastorais

A Igreja é uma “frente”, necessária e válida, de iniciativas pastorais diversificadas, muitas das quais, claramente sociais. A maximização da eficiência e da eficácia de suas ações pastorais depende, no entanto, da conjunção de esforços, ou seja, de ações articuladas, focadas na superação do conflito fundamental que perpassa toda a história humana, gerador de mazelas sociais, que é a superposição do capital com relação ao trabalho. Essa relação desigual, em favor do capital, fez com que a Igreja desenvolvesse em sua Doutrina Social o princípio da primazia do trabalho sobre o capital.
O trabalho, assinalado pelo Papa João Paulo II como chave da questão social, tem sido assumido como prioridade pelo Papa Francisco. Seu pronunciamento nesse sentido, por ocasião de um encontro com trabalhadores, em Gênova, Itália, no dia 27/05/2017, tornou-se significativo: “O mundo do trabalho é uma prioridade humana. Portanto, é uma prioridade cristã, uma prioridade nossa; e também uma prioridade do Papa”. O que essa prioridade, declarada e testemunhada pelo Papa Francisco, sugere à Igreja, especialmente no Brasil?
Qual seria a prova mais evidente de que a Igreja estaria disposta a assumir essa prioridade, senão seu investimento pastoral na formação e organização de novas gerações de militantes cristãos desde o mundo do trabalho? A opção preferencial da Igreja pelos pobres e jovens, por meio de documentos, em nosso continente, é muito conhecida. A Igreja, particularmente no Brasil, estaria disposta a assumir com mais coerência as implicações dessa opção, favorecendo a formação, a organização e a atuação de trabalhadores e trabalhadoras, especialmente jovens, sobretudo pelo potencial que estes representam?
A relação entre acumulação de riquezas, exploração e geração de miséria é, hoje, evidente. Seria, portanto, igualmente evidente a necessidade de ações coletivas da classe trabalhadora que mudem radicalmente a lógica do privilégio dado ao capital cumulativo, para a lógica do empreendedorismo cooperativo? Como passar, na prática, da lógica econômica da concorrência para a lógica da economia solidária?

6. As CEBs e esses desafios

Muitos trabalhadores, sobretudo excluídos do mercado de trabalho, estão gerando novas práticas econômicas de cunho solidário e sustentável do ponto de vista ambiental. As CEBs estariam dispostas a desenvolver ações que promovam e orientem essas práticas econômicas? Que tal se valerem de seus valores profundamente comunitários, na forma de rede de comunidades, para promover redes de atividades econômicas orientadas por princípios cooperativos e ecologicamente sustentáveis, em sintonia com seus valores autenticamente cristãos?
Afinal, estamos dispostos a mudar radicalmente nossos estilos de vida, de convivência, organização social, econômica e política, em prol de uma sociedade que sinalize, realmente, o Reino de Deus? As CEBs, sendo “sementes de uma nova sociedade”, devem dar mostras de que estão gerando, historicamente, essa nova realidade, especialmente a partir do mundo do trabalho. Que tal, então, a partilha constante de experiências de ação no mundo do trabalho que estão resultando positivas, ser mais incorporada na vida e na dinâmica das CEBs? Se assim for, essa dinâmica deverá ser, mais claramente incluída nos encontros de CEBs em todos os níveis?
Quais devem ser, enfim, as características fundamentais da ação pastoral a ser realizada pelas CEBs desde o mundo do trabalho? As CEBs devem desenvolver, mais intensamente, a consciência e a atuação de classe trabalhadora? Se avançarem nessa direção, como garantir a compreensão de que estariam atuando para que a sociedade seja de trabalhadores e trabalhadoras, sem detentores particulares do capital que os explorem, assegurando que o Estado e todas as instituições da sociedade estejam realmente a serviço do bem comum?
As CEBs, devem, portanto, promover mais a atuação de seus membros desde a realidade do trabalho, com impacto na vida sindical, econômica e política, e avaliá-las permanentemente? Como? Elas necessitam, portanto, assumir um perfil mais militante desde o mundo do trabalho? Como, então, conciliar seu caráter grandemente mobilizador com seu caráter militante desde as bases, entendendo a realidade do trabalho como uma de suas bases fundamentais? As CEBs estariam, enfim, dispostas a orientar seus processos formativos desde a vida e a ação militante, especialmente no mundo do trabalho?

7. Conclusão

A vocação libertadora e humanizadora do Povo de Deus, revelada pelas Sagradas Escrituras, testemunhada por Jesus Cristo e sinalizada pela Igreja em toda a sua história, se realiza hoje, por meio de comunidades autenticamente evangelizadas e evangelizadoras, que geram “novas criaturas e estruturas”, transformando a realidade sobretudo urbana, massacrante, do Brasil atual, simbolizada pela “Jerusalém que mata os profetas” (cf. Lc 13,34), em “Cidade Santa”, lugar real do “Novo Céu e a Nova Terra” (cf. Ap 21,1).
As CEBs buscam concretizar esse estilo de Igreja. Por isso, são portadoras de uma nova esperança, desde que continuem fortalecendo-se como rede de comunidades que se orientam por critérios comuns, consequentemente, ações comuns planejadas de forma participativa, focadas no quotidiano de vida da classe trabalhadora, especialmente, na significação e na sustentabilidade da vida pelo “trabalho digno”, em função do bem comum.

André Langer

 

André Langer

Mora e trabalha em Curitiba, PR. Participa da Pastoral Operária. Presta assessoria aos movimentos populares e ao mundo eclesial. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), leciona na Faculdade Vicentina (FAVI) e faz traduções para o sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

 

Dom Reginaldo Andrietta

Bispo Diocesano de Jales – SP
Bispo Referencial da CNBB para a Pastoral Operária Nacional
Membro da Comissão Especial da CNBB para o Ano Nacional do Laicato

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