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  A Doutrina Social da Igreja é uma ideologia?

 Doutrina Social surge como uma resposta da Igreja à profunda angústia provocada pelo surgimento do Liberalismo, do Capitalismo e dos Socialismos.

A Igreja não pretende definir as questões científicas nem substituir-se à política, mas convido a um debate honesto e transparente, para que as necessidades particulares ou as ideologias não lesem o bem comum

A Igreja não pretende definir as questões científicas nem substituir-se à política, mas convido a um debate honesto e transparente, para que as necessidades particulares ou as ideologias não lesem o bem comum (Pixabay)

Por Élio Gasda*

A crítica às ideologias é uma constante na Doutrina Social da Igreja (DSI). A condenação do Liberalismo é encontrada nos seguintes documentos: Mirari vos (1832), Singulari Nos (1834), Syllabus errorum (1864), Immortale Dei (1885), Libertas praestantissimum (1885); do Socialismo Marxista: Qui pluribus (1846), Quanta Cura (1864), Sylabbus errorum (1864); do Comunismo ateu: Qui pluribus, Quod Apostolici muneris (1878), Divini Redemptoris (1937).

O pontificado de Leão XIII produziu diversos documentos criticando de forma contundente as ideologias do seu tempo. Com Rerum novarum (1891), a Doutrina Social surge como uma resposta da Igreja à profunda angústia provocada pelo surgimento do Liberalismo, do Capitalismo e dos Socialismos. A primeira reação dos pontífices diante das ideologias foi de condenação. O confronto com os dois modelos de sociedade – Capitalismo Liberal e Socialismo Marxista – caracteriza todo o período da DSI anterior ao Concílio Vaticano II (1962-1965).

A doutrina social representa a ideologia com a qual a Igreja entra em disputa com as outras ideologias pelo controle da opinião pública? Ela seria a alternativa à perversão do capitalismo, como defende o reconhecido economista Jeffrey Sachs? A Doutrina Social da Igreja é uma espécie do gênero equivalente ao liberalismo, aos socialismos e anarquismos?

A DSI não pertence ao campo da ideologia, mas ao campo da teologia, mais precisamente, da ética teológica. A sua finalidade principal é interpretar as realidades da existência humana, na sociedade e no contexto mundial, à luz do Evangelho. Examinar a sua conformidade ou desconformidade com a ética de Jesus e a visão humanista da história; objetiva, também, iluminar o comportamento dos cristãos na vida pública (Compêndio da DSI, n.72). Ela não se restringe aos parâmetros políticos ou socioeconômicos. Não é um sistema pragmático que pretende definir e compor as relações econômicas, políticas e sociais. Em relação ao Reino de Deus, a ideologia é sempre relativa. A Igreja não quer substituir o Estado.

A Doutrina Social da Igreja não foi pensada como um sistema orgânico; mas foi se formando pouco a pouco, com progressivos pronunciamentos do Magistério sobre os temas sociais. Por este motivo ela não depende das diversas culturas, das diferentes ideologias ou opiniões. Ela convida a todos a se perguntar sobre os fundamentos últimos da ética, assim como da ordem jurídica e política, a considerar os recursos que favorecem o bem comum, os direitos humanos e a justiça social.

A Igreja acredita que as pessoas e as comunidades são capazes, à luz da razão, de discernir as orientações fundamentais de seu comportamento público e de exprimi-las de modo normativo na forma do Direito e dos costumes. A consciência das pessoas constitui uma instância crítica imprescindível que garante a defesa intransigente da dignidade da pessoa humana diante das imposições das ideologias. O sistema socioeconômico e político não pode ser o horizonte de sentido definitivo e absoluto de um país e da humanidade inteira. “Qualquer ideologia puramente materialista do desenvolvimento humano é contrária à verdade integral da pessoa humana e ao projeto de Deus na história” (Compêndio da Doutrina Social da Igreja, n. 48).

Com Papa Francisco a DSI mantém a mesma postura a respeito das ideologias: “A Igreja não pretende definir as questões científicas nem substituir-se à política, mas convido a um debate honesto e transparente, para que as necessidades particulares ou as ideologias não lesem o bem comum” (Laudato sí, n.188). Francisco parte de dois elementos centrais: a realidade social e o Evangelho. Sua atitude está na origem da afirmação: “A realidade é mais importante que a ideia. A realidade simplesmente é, e a ideia elabora-se. Entre as duas deve estabelecer-se um diálogo constante” (Evangelii gaudium, n. 231). Combater a realidade da fome, do desemprego, da concentração de renda, do racismo, da violência, da miséria, da exploração do trabalhador deveriam ocupar o centro das preocupações ideológicas.

Em 2009, quando era cardeal de Buenos Aires, Bergoglio defendia a cultura do encontro: “O diálogo é um instrumento privilegiado para romper tudo aquilo que nos bloqueia; para romper as ideologias fechadas e para abrir horizontes através da pequena transcendência que supõe escutar o outro e que o outro nos escute” (Discurso nas Jornadas de Pastoral Social).

Eleito papa, Bergoglio sentiu ainda mais a necessidade de afirmar esta posição. Como fez no Encontro com os movimentos populares em 2014: “Este encontro não corresponde a uma ideologia. Vocês não trabalham com ideias, mas com a realidade. Tendes os pés na lama e mãos na carne. O vosso cheiro é de periferia, de luta do povo”.

*Élio Gasda é doutor em Teologia, professor e pesquisador na FAJE. Autor de: Trabalho e capitalismo global: atualidade da Doutrina social da Igreja (Paulinas, 2001); Cristianismo e economia (Paulinas, 2016).

Fonte: Dom Total

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