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O surgimento de cristãos de segunda categoria (o laicato na Igreja e no mundo 5)

“por sua essência, a Igreja é uma sociedade desigual, a saber, uma sociedade que comporta duas categorias de pessoas, os pastores e o rebanho… somente nos pastores residem o direito e a autoridade necessários para promover e dirigir todos os membros para o fim da sociedade. Quanto à multidão, ela não tem outro dever que deixar-se conduzir e seguir seus pastores como rebanho dócil”. 

Uma classe de cristãos separada do clero aparece na Igreja no início do séc. III e se consolidará no séc. IV. Coincide com a estratificação do clero em bispos, presbíteros e diáconos, que passam a se distanciar dos fiéis não-ordenados, formando uma categoria de cristãos à parte, que se sobrepõe à outra conformada por leigos e leigas.

A configuração da Igreja no binômio clero-leigos

Nos primórdios da Igreja, antes do surgimento do termo “laós/leigo”, já havia o termo klerós, mas, não para designar os ministros ordenados e, sim, os cristãos levados ao martírio. No início do séc. III, quando se passa a atribuir o termo laós/leigos aos fiéis não-ordenados, é quando também se passa a designar os fiéis ordenados de klerós/clero. Aos poucos, as duas categorias de cristãos não só vão se distinguir entre si, como praticamente também se separar. O clero passará a monopolizar todas as iniciativas na comunidade eclesial, fazendo dos leigos destinatários ou objetos da ação da Igreja. Estes, antes sujeitos que elegiam até os bispos, já não tem mais poder de decisão e são enquadrados dentro dos parâmetros da “plebe” na religião judaica e pagã, classe iletrada e inferior. Fora da classe dos ordenados, que são “a” Igreja, estão os monges nos conventos e os leigos no mundo.

No século IV, com a passagem do cristianismo de religião perseguida a religião protegida pelo império, a distinção e separação dos fiéis em duas classes de cristãos já estará consolidada. Com o desaparecimento do catecumenato, substituído por uma deficiente catequese, os leigos vão justificar sua fama de iletrados. Haverá uma monopolização por parte do clero não só da ação da Igreja, como dos próprios ministérios até então conferidos aos leigos e leigas, desaparecendo inclusive o diaconato. Contribuirá para a separação dos fiéis em duas categorias de cristãos, a clericalização também da teologia, fazendo aumentar ainda mais a brecha entre fiéis letrados e iletrados, no seio de uma comunidade de desiguais. É a Igreja configurada no binômio clero-leigos. 

Mesmo com parecer contrário de alguns sínodos, pouco a pouco o clero passa a vestir-se diferente, copiando os trajes da nobreza, sobretudo na liturgia. A exemplo da religião pagã ou judaica, a liturgia se clericaliza, passando a ser celebrada somente pelo “sacerdote”, o ministro ordenado, de costas para o povo, num presbitério separado da nave do templo, de onde os leigos assistem. A comunhão passa a ser dada na boca e recebida de joelhos, sem acesso ao cálice. 

Uma estranha concepção de Igreja

No século XII, a Igreja organizada no binômio clero-leigoshá quase um milênio, será regulamentada canonicamente. O decreto de Graciano, monge camaldulense, reza que a Igreja está organizada em dois gêneros de cristãos: um, constituído pelos clérigos, está ligado ao serviço divino e dedicado à contemplação e à oração, assim como se abstém de toda as agitações das realidades mundanas; o outro, o gênero dos cristãos ao qual pertencem os leigos, está permitido ter bens temporais, casar-se, cultivar a terra, depositar oferendas nos altares e pagar o dízimo. Poderão salvar-se, à condição de evitarem os vícios e se comportarem bem. Complementa o decreto: o clérigo é a-político, homem de Igreja, espiritual, celibatário, monge ou religioso consagrado ordenado; já o leigo, salvo os leigos poderosos ou imperadores, é político, homem do mundo, secular, inculto, pobre, sensual, carnal, casado, súdito obediente, menor.

Quando o magistério é reflexo da teologia de seu tempo

Ainda no final do séc. XIX, em carta de 1888 dirigida ao arcebispo de Tours, o Papa Leão XIII afirma: “É uma realidade constante e bem conhecida que, na Igreja, existem duas ordens claramente definidas por sua própria natureza: os pastores e o rebanho, isto é, os governantes e o povo. Os primeiros têm a missão de ensinar, governar e dirigir aos homens na vida, impondo-lhes as normas; os segundos têm o dever de submeter-se aos primeiros, de obedecê-los, de cumprir suas prescrições e de tributar-lhes a devida honra”. 

No início do séc. XX, o Papa Pio X, em sua encíclica Vehementer de 1906, também justifica uma Igreja organizada segundo o binômio clero-leigos: “por sua essência, a Igreja é uma sociedade desigual, a saber, uma sociedade que comporta duas categorias de pessoas, os pastores e o rebanho; os que ocupam um lugar na hierarquia e a multidão dos fiéis. Estas categorias são de tal forma distintas entre si, que somente nos pastores residem o direito e a autoridade necessários para promover e dirigir todos os membros para o fim da sociedade. Quanto à multidão, ela não tem outro dever que deixar-se conduzir e seguir seus pastores como rebanho dócil”. 

É uma estranha eclesiologia, sem base nas Escrituras e na tradição da Igreja primitiva. O modo de ser Igreja das origens só seria resgata com a “volta às fontes” do Concílio Vaticano II, preparado por diversos movimentos de renovação, entre eles, o movimento do laicato.

Por: Agenor Brighenti

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