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Julgar – Bíblico

 

“Eu vi e ouvi os clamores do meu povo e desci para libertá-lo” Ex 3,7

 

 Tea Frigerio

 

 

“Eu vi, ouvi os clamores do meu povo e desci para libertá-lo” Ex 3,7 é a memoria fundante da fé israelita. Palavras que evocam o olho d’agua que desagua num rio que percorre toda experiência do povo de Israel, dos profetas, de Jesus, de Paulo, das Primeiras comunidades e que papa Francisco retoma hoje, nos indicando o chão aonde afundar nossas raízes, a que seiva beber.

Os que estão oprimidos e a margem no Egito são reconhecidos como filho primogênito (Ex 4,22), por isso Javé desceu e caminhará ao seu lado. Sair do Egito, passar o Mar, caminhar no deserto, atravessar o Rio Jordão, ocupar Canãa para assentar-se e viver na terra com uma missão: conviver com os povos vizinhos, cultivar e cuidar da terra, se organizar economicamente e politicamente de tal forma possa ‘viver longamente sobre a terra’ (Is 2,3b-5)

Esta memoria fundante nascida na experiência do êxodo, mantida viva pelos profetas, desagua em Jesus de Nazaré. Na Galileia, Ele percebeu que a estrutura de dominação do império romano, a estrutura religiosa do judaísmo formal oficial haviam desintegrado e quebrado as relações da “casa”, as antigas relações de solidariedade no meio do povo. A memória histórica do êxodo, dos profetas, dos anawim, de Javé que desce e caminha na história do povo levaram Jesus a se deslocar da vila de Nazaré e percorrer os caminhos da Galileia, Samaria, Judeia para reconstruir as relações da “casa”. Desde o ventre da mãe Jesus se coloca a caminho, entra nas casas, senta à mesa e transforma e reconstrói as relações: econômicas, políticas, sociais, classe, gênero, etnia, religião. Reconstruir a casa é apressar a vinda do Reino de Deus no meio dos pobres, os excluídos da história. O casal de Emaus é o ícone das primeiras comunidades: caminho – casa – mesa – missão: nele vislumbramos a semente das CEBs.

Jesus, fiel a esta memoria, anunciou a Boa Nova do Reino no mundo judaico, na Palestina, numa cultura onde predominava o pensamento rural, e teve sua continuidade na historia por meio dos e das que se colocaram no caminho do discipulado. Entre eles se destaca Paulo que experimenta seu chamado em continuidade à vocação profética e a vive anunciando a Boa Notícia de Jesus no mundo greco-romano que é eminentemente mundo da cultura de cidade.

 

Nasce uma pergunta: como Paulo bebeu no olho de água de Javé que vê o sofrimento e escuta o clamor, como se enxertou na utopia de Jesus de Nazaré?

 

Saulo que se tornou Paulo no caminho de Damasco: “Quem és? Eu sou Jesus a quem persegues”: Jesus o crucificado é vivo e se identifica com a comunidade que ele persegue (At 9,5ss). Compreende que o Movimento do Caminho é continuidade, a concretização histórica da memoria profética de Javé libertador, da utopia de Jesus de Nazaré: reconstruir a “casa”. E, na sua itinerância vai viver isso, vai fazer sua esta utopia, abrindo picadas, ousando inculturar.

Enxertando no mundo greco-romano a Boa Nova da “casa” se torna “ekklesia”.  A sua Nazaré será a periferia das cidades, o mundo do trabalho manual, sua opção identificar-se com os últimos, como Jesus de Nazaré. Escutar o grito que sai das cidades, se enxertar nas periferias, trabalhar com as mãos, deste lugar social anunciará o Evangelho que é de Deus, a Boa Notícia de Jesus o Cristo (1Ts 2,1-7). Convoca a constituir a ‘ekklesia na casa de…’  alternativas à ekklesia das cidades. Em 1Cor 1,26-31, delineia o retrato dessa ekklesia/casa alternativa “entre vós não há muito sábio… poderosos…, mas Deus escolheu o que não é para confundir o que é…”, e assim escrevendo pinta o retrato da comunidade/assembleia/ekklesia que se constitui na casa.

Paulo apreende na itinerância. Sua primeira viagem é toque e fuga: chega numa cidade anuncia a Boa Nova e logo sai para outra cidade. Na segunda viagem muda de metodologia: nas cidades aonde chega para um tempo, forma comunidades. É outra metodologia. Com quem apreendeu?

Ao chegar a Filipos, cidade principal da Macedônia e colônia romana permaneceram alguns dias e seu olhar vai além das portas, vai até à beira do rio e vê mulheres, entre elas Lídia trabalhando e rezando, rezando e trabalhando. Com elas Paulo apreende a evangelizar trabalhando ou trabalhando evangelizar.

De Filipos vai para Tessalônica e chegando a Corinto depois de ter passado pelo fracasso de Atenas no areópago. Fragilizado chega nesta cidade multicultural, se reúne à equipe indo morar com o casal Aquila e Priscila trabalha com eles e no final de semana vai à sinagoga anunciar a Boa Nova. Coloca em pratica, vive o que havia apreendido com Lídia e as mulheres: se enxertar na periferia e trabalhando evangelizar – evangelizando trabalhar.

 

“Eu vi e ouvi os clamores do meu povo e desci para libertá-lo” Ex 3,7

 

Paulo aprendeu a escutar o clamor que sai das periferias da cidade, apreendeu a formar comunidades: 1) Conhecer a realidade, se enxertar na cidade; 2) Começar fora da porta da cidade, na periferia, no mundo dos pobres, das mulheres, dos trabalhadores, dos escravos; 3) Optar para trabalhar: se sustentar, se inserir no mundo dos trabalhadores manuais; 4) Escutar o grito que sai da margem, dos emarginados, dos que não contam; 5) Anunciar Jesus Cristo: Cruz e Ressurreição; 6) Animar: sustentar a resistência das comunidades; 7) Apreender uma nova linguagem: ser um profeta apocalíptico.

As comunidades cristãs nasceram no meio de um poder tão abrangente, surgiram como grito de esperança. De uma esperança que é ‘escândalo’ e ‘loucura’ (1Cor 1,21-25), porque não corresponde a racionalidade e logica dos poderes deste mundo (1Cor 2,2-8). O Império Romano tinha consciência que sua maior vitória estaria na capacidade de despojar suas vitimas até da esperança. Os cristãos perceberam que renunciar a esperança seria renunciar à vida. Por isso quando toda a esperança razoável parecia desaparecer do horizonte a causa dos acontecimentos históricos, Paulo em suas cartas procura manter viva a esperança: não é o imperador o Kýrios, mas Jesus, e entre vocês não há mais nem judeu nem grego, nem livre nem escravo, nem homem nem mulher, minando a sociedade hierarquicamente estruturada (Gl 3, 28).

Frente ao poder imperial hegemônico; frente a arrogância dos imperadores que se proclamaram “senhor”; frente a divinização do poder violento e totalitário, as comunidades do crucificado aparecem como algo de insignificante e ridículo, pois elas são integradas por ‘marginais’, despojadas de todo acesso ao ‘senhor’, e ao ‘poder oficial’. Que esperança de sobreviver, de impor sua existência, seu projeto, sua fé tinha a igreja nascente?

“… Com efeito a cruz é loucura por aqueles que se perdem, mas para os que se salvam, para nós, é poder de Deus… Deus escolheu os fracos para confundir o que é forte; o que não é, Deus escolheu… (1Cor 1,26-31). Ao escrever isso Paulo, manifesta uma consciência lucida: o que são? O que valem os da comunidade de Corinto na organização da polis? Na estrutura massificante do Império? Eles, elas são um nada, seja numericamente, seja qualitativamente, eles não tem nenhum poder. A estrutura, o ‘dragão’ tinha força e meios para esmagá-los. Crer nas comunidades era ‘loucura’, e ‘escândalo’. Mas é neste universo ideológico radicalmente diferente que Paulo aposta.

Para os cristãos de Tessalônica e seus irmãos da região que sentido tinha suas lutas, padecimento, mortes? Eles eram uma minúscula fração social frente à sólida hegemonia do Império. A eles Paulo escreve: “… empenhai vossa honra em levar uma vida tranquila, ocupai-vos dos vossos negócios, e trabalhais com as vossas mãos, conforme nossas diretrizes. Assim levareis uma vida honrada aos olhos de fora, e não tereis necessidade de ninguém…” (1Tess 4,10-12).

Estas são palavras que fogem da ideologia imperante e por isso se colocam em outro universo ideológico com a possibilidade de alimentar a utopia, através da esperança. Esta esperança se transforma em identidade. “… pois já que cremos…”. O fundamento da identidade é o “nós que cremos”. O universo ideológico do crer alternativo geram reconhecimento, união, força para resistir aos de “fora” que dizem “paz e segurança” (1Ts 5,3).

A apocalíptica desde o seu nascimento tem grande poder querigmático: proclama a esperança quando tudo parece perdido; sustenta a fidelidade a Deus numa proposta alternativa quando o que foi recebido, a tradição não responde adequadamente as crises do presente.

Profecia e apocalíptica são expressão da fé teimosa dos pobres em Javé que vê, ouve, conhece e desce, presente na historia em Jesus de Nazaré e naqueles e naquelas que assumem seu projeto.

Os profetas convidavam a entrar na luta. Os apocalípticos animam a permanecer, a resistir na luta. A apocalíptica é fruto da teimosia da fé dos pobres: apesar das aparências que negam tudo o que eles acreditam, eles continuam a crer que Deus está com eles e os conduz, Jesus é o irmão que caminha à sua frente. Esta fé proporcionava aos que resistiam a capacidade de ler a história. Com esta fé aparentemente irreal, sem fundamento, visionária, eles souberam resistir aos poderes que ameaçavam, perseguiam, marginalizavam.

Este é chão, a terra onde a semente das CEBs foi semeada, saberemos fazer nova semeadura, e preparar a colheita do futuro?

 

Tea Frigerio

Missionária de Maria (Xaveriana), no Brasil desde 1974. Formada em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Gregoriana em Roma, pós-graduada em Assessoria Bíblica pela Faculdades EST-CEBI. Assessora do CEBI.

 

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