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Martas e Marias na Igreja e no mundo .No discipulado, o que é essencial?

Poucas coisas são necessárias.

O evangelho de Lucas continua mostrando Jesus com o seu grupo caminhando para a Páscoa em Jerusalém, isso é para a cruz e nessa viagem, ele (Jesus) vai formando os discípulos e discípulas. No capítulo 10, Lucas apontou dois elementos fundamentais da missão dos discípulos e discípulas de Jesus: a itinerância, (vão dois a dois pelos caminhos), a solidariedade como base da missão (a parábola do samaritano que escutamos domingo passado). Agora, ele nos apresenta o terceiro elemento da missão: a hospitalidade.

Esse pequeno episódio que conhecemos como a história de Marta e Maria lembra a espiritualidade do acolhimento tão presente em toda a Bíblia, desde Abraão e tão viva no meio do povo brasileiro, como de outros povos tradicionais. Quando a gente acolhe alguém em casa, está sempre acolhendo a Deus em sua vida. E Marta e Maria são discípulas como exemplos ou profecias de acolhida. Ao acolher o outro, acolhem o próprio Jesus. Em outro lugar, ele afirma: “Quem vos recebe a mim recebe”.

Esse episódio da parada de Jesus na casa de Marta e Maria deve ser lido como lição de vida, contada do modo como os rabinos costumavam fazer. Depois de contar a história do samaritano que serve ao homem ferido, logo se conta a história de Marta que também serve, dessa vez, ao próprio Jesus. É possível que Marta e Maria, embora tenham sido pessoas históricas, sejam retratadas no evangelho como símbolos ou figuras de grupos cristãos na comunidade do tempo dos evangelhos. Contando essa história como se ela tivesse ocorrido na época da viagem de Jesus a Jerusalém, a comunidade de Lucas está tratando, de fato, de um problema das comunidades cristãs na sua época (anos 80). Chama Marta de diaconisa, já que está servindo à mesa. O livro dos Atos (6, 2- 4) conta que dirigentes das comunidades opunham a diaconia (o serviço) da mesa à diaconia (serviço) da Palavra. Por trás dessa aparente oposição, havia um conflito cultural entre os cristãos de origem judaica e os de cultura grega. A solução imaginada foi escolher ministros só para servir à mesa. Nos capítulos seguintes do livro dos Atos, os escolhidos para este serviço estão começando também a servir à Palavra. Lucas, discípulo de Paulo, é ecumênico com a cultura grega . O evangelho pede uma unidade interior nas pessoas.

Em um livro chamado “O caminho que nos transforma”, Georges Wierush Kowalski mostrou que essas mulheres (Marta e Maria) simbolizam em realidade às Igrejas. Assim, Marta representaria as Igrejas domésticas, cuja maior tarefa era acolher, resolver os problemas e conflitos internos, garantir a unidade entre as diversas comunidades e, sem dúvida, presidir as reuniões de oração. Maria seria o símbolo das Igrejas missionárias, nas quais os profetas são portadores da palavra de Deus, depois de havê-la escutado e meditado . Essa interpretação significaria que, nas origens do cristianismo, as mulheres permaneciam seguindo Jesus em funções de primeira importância . E que esse episódio não pode ser interpretado como tradicionalmente ocorreu nas Igrejas como oposição entre dois modelos de vida: ação e contemplação.

Assim, Lucas apresenta essas duas figuras simbólicas de duas irmãs Marta e Maria na tarefa de acolher e de abrir sua casa a Jesus e a seus companheiros e companheiras. De acordo com o texto, Maria faz o que os rabinos aconselhavam os discípulos a fazerem. Os textos rabínicos dizem: “Que tua casa seja espaço de reunião para os sábios. Agarra-te à poeira dos pés deles e bebe de suas palavras como quem está com sede”(Mishna Abot, 1, 4). No caso, a novidade é tratar-se de uma mulher.

Para certa parte da tradição rabínica, o fato de uma mulher fazer isso é uma subversão. Quem gosta de Cinema lembra do filme Yentl, no começo dos anos 80. Barbra Streissand faz o papel de uma moça judaica, filha de um rabino do norte da Europa que se finge de homem para ser rabino. Hoje, o Judaísmo liberal tem mulheres rabinas. No entanto, não era essa a tradição e até hoje os judeus ortodoxos, como o magistério católico impedem as mulheres a exercer ministérios ordenados. Jesus é um rabino que aceita discípulas. Ele não concorda com certas interpretações da lei que excluem a mulher. Jesus toma posição. Reconhece explicitamente que uma mulher pode ser discípula, coisa contrária aos costumes da época. Jesus defende a liberdade e igualdade feminina. Maria estava na mesma atitude que Paulo aos pés do grande rabino Gamaliel (Cf. At 22, 3). A tradicional função de dona de casa não é a única função possível para uma mulher. Mulher não é só para os trabalhos domésticos. Tem direito a sentar-se aos pés do mestre e ser discípula livre e ativa (não se trata de opor ação e contemplação).

Há tradutores desse evangelho, segundo os quais Jesus teria dito a Marta: “poucas coisas são necessárias”, como se tivesse se referindo à comida: bastam poucas coisas. Para que tanto trabalho? Mas, a tradução correta do grego diz: “uma só coisa é necessária”. E Jesus deixa claro: “Maria escolheu a melhor parte!”
Nessa pequena história, duas vezes, Lucas cita o título “Senhor”. Era o modo próprio como as primeiras comunidades cristãs se referem ao Senhor Ressuscitado. Hoje, com a preocupação do discipulado de iguais entre homens e mulheres, essa expressão Senhor parece patriarcal e masculina demais. No tempo dos evangelhos, não havia essa relação. Senhor era o título do imperador (Kyrios) e chamar Jesus de Senhor era o modo subversivo de dizer que um judeu crucificado se tornava a referência do reino de Deus no mundo.

Na década de 80, o nosso saudoso irmão Eliseu Lopes, que, durante anos, foi secretário nacional do Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), comentou com o povo este Evangelho. Partilho com vocês uma parte da homilia deste irmão: “Jesus visita Marta e Maria, suas amigas de Betânia. O motivo maior da visita é a Amizade. O clima é de intimidade, como na poesia de Manuel Bandeira, musicada por Vila Lobos:
‘Amigo, seja benvindo! A casa é sua. Não faça cerimônia.
Vá pedindo. Vá mandando. Seja seu tudo o que tenho de meu.
E mais a divina graça. Amigo, seja benvindo!’

Marcelo Barros

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