É possível afirmar que a Semana Santa, pela centralidade do mistério celebrado, concentra toda a densidade da experiência cristã?

Em nosso modo de compreender a dinâmica da fé cristã, a resposta para esta significativa interpelação, não pode ser outra que um “sim e não”. Foi com o saudoso professor e amigo Pe. João Batista Libanio que aprendemos a utilizar o antigo “método da dialética do sim e do não” como poderoso instrumento de análise e aprofundamento das questões que aparentemente se apresentam simples e óbvias.

Comecemos com a afirmação positiva: Sim, a Semana Santa concentra toda a densidade da experiência cristã.

Nela celebramos os impactos sociopolíticos e religiosos da vida de Jesus, de sua práxis libertadora profética ao anunciar-denunciar-testemunhar a acolhida fecunda da presença do Reino de Deus entre nós. A pessoa de Jesus, por um lado, atraiu discípulos e discípulas e saciou a sede de sentido ou a fome da proximidade amorosa e salvífica de Deus de muitas tantas pessoas que se sentiam excluídas da luz divinal. Mas também, por outro, Jesus despertou a ira de poderosos inimigos no âmbito religioso e sociopolítico de seu tempo. O que Jesus anunciava e testemunhava foi compreendido pelos poderosos como ameaça, daí a virulenta reação de seus algozes.

Na Semana Santa celebramos, o discernimento e a radical fidelidade de Jesus de Nazaré. Fiel até as últimas consequências ao projeto salvífico universal de Deus. Mesmo sendo ameaçado e depois de traído, preso, torturado e condenado, na calada da noite, à morte cruenta na cruz, Jesus permaneceu firme e fiel à revelação do amor de Deus Pai. Por discernir e entender que se manter fiel ao anúncio-denúncia-testemunho do Reino de justiça, fraternidade, misericórdia e paz era a concretização do fazer a vontade de Deus, Jesus entregou-se confiante nas mãos de Deus Pai. E não morreu fracassado.

Nesta singular semana, celebramos de modo todo especial a fidelidade de Deus ao seu Filho Jesus. O profeta da Galiléia não morreu abandonado por Deus Pai. Ao contrário, Deus ressuscita Jesus dos mortos. Esta intervenção de Deus na morte de Jesus, ou seja Jesus ao ser ressuscitado pelo Pai, revela o julgamento divino sobre a vida de Jesus. A ressurreição confirma que o conteúdo da vida de Jesus agradou tanto a Deus que se transformou em juízo salvífico. A vida de Jesus, seus ensinamentos e gestos proféticos, é caminho de salvação.

A ressurreição de Jesus ocupou a centralidade da experiência cristã pois revelou definitivamente o projeto salvífico universal de Deus, iluminou o sentido da história e explicitou, com inédita lucidez, o sentido da vida humana para Deus: somos chamados a cultivar, com fidelidade, a centralidade do amor. O amor é a nossa origem, o nosso sustento e o nosso destino último.

Aprofundemos com a afirmação negativa: Não, a Semana Santa não concentra toda a densidade da experiência cristã.

Quando temos presente a nervura do real, ou seja, quando temos diante de nós a dinâmica histórica do cristianismo, com seus altos e baixos, com sua fidelidade e infidelidade, com sua ambivalência radical, damo-nos conta da necessidade, para além da retórica, de refletirmos sobre o sentido da afirmação negativa.

De fato, por mais que compreendamos a força transformadora do simbólico, igualmente temos que estar cientes da força destruidora do diabólico. Simbólico, o que une, diabólico o que divide… A prudência, a vigilância, o discernimento crítico e autocrítico e a busca contínua de conversão a Deus, juntas, suscitam a atitude fundamental do cristão diante da própria experiência cristã.

A história do cristianismo revela que podemos vivenciar e transformar a experiência cristã, como qualquer outra experiência religiosa, é uma realidade ritualística perversa, hipócrita, intimista, espiritualista e vazia.

Quando a Semana Santa se transforma em pura ritualística tradicional – um conjunto de ritos antigos que se realiza igualmente todos os anos – ainda que vivida de modo piedoso, devocional e emotivo, mas desligada do modo como acolhemos a presença do Reino de Deus entre nós ou divorciada da maneira como nos responsabilizamos em assumir em nossa vida atual a práxis libertadora de Jesus de Nazaré como caminho de conversão, esta semana não concentra toda a densidade da fé cristã.

Quando a Semana Santa é vivida sem renovação da aliança batismal de procurarmos cotidianamente em nosso contexto atual discernir e fazer, como Jesus de Nazaré – com fidelidade até as últimas consequências – a vontade de Deus, esta semana, por falta de resposta dos cristãos a Deus, perde a capacidade de concentrar sacramentalmente a totalidade da proposta cristã.

Quando a Semana Santa não consegue nos envolver num processo criativo de conversão a Deus e de busca de fidelidade ao anúncio-denúncia-testemunho do Reino, Reino de justiça, fraternidade, misericórdia e paz – daí a importância da Campanha da Fraternidade todos os anos nos provocar e nos convocar a conversão para uma dimensão da realidade na qual a vida não está sendo o valor maior – esta semana perde a capacidade de nos interpelar, revigorar e renovar mesmo nosso compromisso de participar da missão salvífica de Jesus Cristo ressuscitado que, com a força atuante do Espírito Santo, permanece sempre conosco.

Para além da Semana Santa, o desafio da evangelização

O maior desafio do cristianismo é sempre o de evangelizar. Este verbo jesuânico traduz o contínuo sentimento de urgência diante do compromisso de discípulos e discípulas com o zelo diante do anúncio-denúncia-testemunho profético do Reino de Deus presente e atuante no meio de nós.

Que a experiência da Semana Santa, ao fazer a memória perigosa dos últimos acontecimentos históricos da vida de Jesus, desperte o nosso desejo de maior fidelidade a Deus e ao seu Reino de justiça, fraternidade, misericórdia e paz.

Edward Neves Monteiro de Barros Guimarães é mineiro de Tombos, teólogo leigo, doutorando em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) e mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Ele é membro da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (SOTER), do Conselho Arquidiocesano de Pastoral da Arquidiocese de Belo Horizonte e o atual secretário executivo do Observatório da Evangelização.