Shadow

A Ecologia Integral e seus desafios às comunidades

Reflexão realizada na plenária temática “CEBs e Ecologia Integral” durante o 15º Intereclesial das CEBs.

Por Andrei Thomaz Oss-Emer*

“De Seir alguém me chama: ‘Sentinela, quanto falta para acabar a noite? Sentinela, quanto falta para acabar a noite?’ A Sentinela responde: ‘O amanhecer vai chegar, mas a outra noite também. Se querem perguntar, perguntem. Voltem de novo’”. (Isaías 21,11-12)

Ver e comunicar a beleza do bem viver

Vimos uma multidão de gente, de muitas línguas e culturas, vimos os povos entrelaçados e irmanados na dança colorida do amor. Vimos pessoas muito vividas proclamando encarnadas visões e juventudes transbordando profecias, entoando canções sonhadas pelas utopias de um tempo novo, de cuidado com a Mulher Terra Mãe e seus territórios espoliados, devastados e contaminados, habitados por povos que resistem através do bem viver. Vimos e ouvimos o grito da vida que há séculos é explorada nestas veias abertas de Abya Yala, a América Latina que habitamos. Percebemos e entendemos o olhar atento dos profetas e das profetizas entre nós, dançamos na ciranda da vida, e estreitamos os abraços já não mais distantes.

Louvamos ao Divino Sopro da Ruah, à Paz inquieta do Criador Misericordioso, ao amor do Abba, Querido Papaizinho de Jesus de Nazaré, que nos ama com amor de Mãe, pedindo para que Ele seja sempre conosco e nós sejamos sempre com Ele. Nós nos entrelaçamos, como os fios do tear de Maria em Nazaré, observamos como o menino Jesus galileu e seu pai José, os sinais dos tempos, das chuvas, dos ventos e das secas, em nome dos povos migrantes de todos os tempos. Fomos como tendas em Pentecostes, vinhos novos em Caná, pães oferecidos a Elias, e profecia em abundância nas veias abertas destas periferias.

Desde estes nós vividos e entrelaçados pudemos profetizar e anunciar a Ecologia Integral a partir da novidade do Magistério de Francisco, que só pode ser realizada a partir de uma Economia dos Bens Comuns. Porque toda a casa é comum, acreditamos que somos parte do esperançar da Economia de Francisco e Clara, que foi luz claríssima e de radiante presença na vida deste 15º Intereclesial das CEBs em Rondonópolis, são novas gerações a encantar-se com utopias maduras, caminhos trilhados, reafirmando propositivamente a necessidade de seguir caminhando rumo a horizontes comuns. À luz Clara da Ecologia Integral de Francisco, sentimos os abraços dos povos de braços abertos e fraternos, com mãos que se estendiam e se elevavam ao céu em prece, como as flores dos grandes ipês que, em primaveras resistentes ainda colorem, mas que já coloriram abundantemente as matas de nossos biomas tão devastados.

Nós ouvimos, pela prece do coração, os gritos silenciados do mato tombado, da aldeia arrasada, da roça esquecida, da casa incendiada, dos frutos e minérios roubados. Nós choramos ao ver a terra envenenada, o bioma depredado, o correntão quebrando mato e matando a vida, o fogo que arrasa, a seca que castiga e tantas vezes nos desanima. Nós vimos a força da água, nos ciclones do sul, que neste ano alcançaram força sem precedente, ferindo a terra e os filhos da terra. Sentimos com seus tremores, que a terra sofre, e que, a seu modo, a natureza segue sendo a voz de Deus em seus sinais.

Nós vimos, ouvimos e reafirmamos que tudo está interligado, e que só há luta porque há cruz, dor, estrada, oração, canto, Páscoa, reconciliação e ressurreição de paz inquieta e inquietante. Nós sentimos que a Ecologia Integral só tem sentido quando nasce da escuta da dor do povo sofrido e ferido que, resistente, se levanta e se coloca a caminho. Nós, unidos por tantos nós, sentimos que a paz evangélica foi tão ferida em nossa nação que hoje resgatar o amor evangélico que moveu tantos: Pedro, Paulo, Luciano, Dorothy, Hélder, Dulce, Chico, Margarida, Maria, Clara de Assis e tantas outras, é uma tarefa urgente às nossas bases, no encontro às periferias vivas, desde o testemunho e a fraternidade.

Discernir o dom da vida à luz da Divina Ruah, o sopro do amor

Esta crise não é nova e reflete as consequências da ausência de políticas públicas, tanto a nível nacional, quanto a nível internacional, a respeito da responsabilidade ambiental das grandes empresas, pouco se tem feito de concreto para o cuidado da casa comum, da vida em comunidade e do valor da biodiversidade como dom da criação de Deus. A casa comum dá sinais de todos os males que o capitalismo neoliberal tem lhe infringido. A expropriação dos bens comuns da criação pelo mercado contradiz o direito a bem viver, a habitar um meio ambiente equilibrado no qual as relações entre todos os seres estão mutuamente imbricadas e são tecidas por constantes atos de reciprocidade.

Partilhamos e sentimos em nossa plenária, desde a espiritualidade franciscana e clariana, nos passos do magistério do Papa Francisco os direitos e responsabilidades à vida civil fundamentada na solidariedade, frutos da inter-relação entre pessoas em seus territórios, diferentes semblantes da mesma casa. A vida em comunidade deve ser vivida com gosto, por isso recordando a Carta Encíclica Fratelli Tutti (2020), afirmamos que a vida em comunidade tem “sabor a Evangelho” (FT 1), e nossa economia precisa estar em unidade e sintonia com a ecologia que buscamos. Somos sementes do Evangelho em nossas realidades, e é a partir da meditação da Palavra, que podemos encarnar em nossas realidades a vivência ecológica e profética de novos tempos, onde o cuidado com a criação e o cuidado uns com os outros esteja acompanhado de uma vida frugal e sóbria.

Sentimos em coletivo que não é possível encontrar caminho da paz inquieta e da concórdia verdadeira em nossas comunidades sem atitudes de encarnação, que nascem de um despojamento profundo e sincero, de uma passagem corajosa pela porta do Evangelho, que é o próprio Cristo. Acreditamos que só é possível trilhar caminhos conjuntos de um pacífico bem viver em nosso continente latinoamericano se assumirmos o enfrentamento aos sérios problemas relativos ao meio ambiente que, tomados em seu conjunto, deixam transparecer a grave crise socioambiental em que estamos mergulhados. A casa comum dá sinais de que nosso modo de habitá-la não está correto. Hoje, mais do que nunca na história da humanidade em nosso planeta, somos convocados a uma conversão ecológica profunda, reconhecendo que, em nossos modos de vida, temos pecado ecologicamente, ferindo a obra das mãos de Deus, o Criador.

Desde o testemunho de vida da fraternidade de Clara, Francisco de Assis e suas companheiras e companheiros, aprendemos que toda a casa comum é nosso lugar de habitação. Esses jovens, em sua época e lugar, foram capazes de romper paradigmas, indo além dos muros de suas casas e de suas cidades para compreender que toda a terra era seu lar, todos os bosques um convite a habitar a natureza, e cada desafio, do encontro com o lobo feroz, ao cuidado com os pobres e doentes, era um caminho para o encontro com Deus, que é Pai que cuida de todos.

Foi a partir da experiência viva e profética de Assis que o Papa Francisco escolheu fundamentar os caminhos da ecologia e da economia que a todos nós desafiam no presente momento da história da terra. A crise socioambiental pela qual passa a terra e seus ecossistemas está relacionada ao exacerbado consumo fruto do antropocentrismo e de um paradigma tecnocrático que transformou o mundo em uma sociedade de consumo e descarte. Reconhecemos que o mercado capitalista que formou o sistema-mundo em que vivemos se mantém por um ciclo vicioso de propaganda, necessidade, consumo e descarte, que opera através de um nivelamento monetário do valor da vida, que oprime a terra e seus filhos, a partir de exclusões de: raça, gênero e classe, onde a natureza e aqueles que estamos mais próximos dela (e dependemos de seus ciclos) somos desvalorizados e descartados.

É por isso que as nossas respostas à crise são ao mesmo tempo um ponto de partida e um horizonte de utopia. Podemos fazer nossa parte, enquanto comunidades, buscando nas relações humanas presentes em nossas tessituras socioambientais,  caminhos comuns, paradigmas éticos para que a casa comum seja um lugar de memória do martírio, celebração da caminhada e reafirmação da utopia que move o caminhar por uma terra sem males. Na base do chão da vida, a luta e o sonho se entrelaçam e apontam desafios para todas as comunidades, para as famílias, os jovens, para as conquistas e reafirmações de nossas esperanças.

Neste caminho rumo à Ecologia Integral, são nossos companheiros de caminhada todas e todos aqueles que em suas realidades, simples, silenciosas e muitas vezes não reconhecidas, já trabalham para que a casa comum seja um lugar de cuidado, vida plena e mútua comunhão. A casa comum demonstra, através dos desastres ambientais fruto das mudanças climáticas, o quanto os danos que nós, humanidade, lhe provocamos, são sinais dos males desta economia que mata. O nosso coletivo modo de bem viver é o caminho possível.

Motivadas e motivados a reencontrar a alma, ou seja, compreendermos o que anima as CEBs hoje, na missão de “Ser Igreja em Saída para as periferias, a serviço da vida plena para todos e todas”, perguntamo-nos como podemos realizar a Ecologia Integral à luz do Magistério do Papa Francisco, em nossas realidades, em vista à soberania alimentar e ao bem viver de todas as pessoas. Naquele momento da plenária, nos visitou e compartilhou a Palavra o Arcebispo Jaime Spengler OFM, de Porto Alegre. “Ele estará conosco todos os dias, e sua Palavra é fiel!”, recordou-nos o irmão e pastor franciscano. Neste sentido, a Ecologia Integral que ainda hoje nos suscitam as Claras e Franciscos nos convoca para que “criemos novo céu e nova Terra, para que todos tenham vida plena”.

Encarnar-se com economias ecológicas e proféticas

Segue atual e profético o chamado à encarnação, atitude de evangélica vivência da fé. Estar com as pessoas e sentir o Evangelho vivo na vida das sociedades sem deixar ninguém para trás é a primeira das tarefas para os agentes de pastoral das CEBs hoje. A proximidade gera esperança e sentido de pertença. A encarnação evangélica nos convida a compor os Conselhos de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA) a partir do nível local até o nacional. A proposição e desenvolvimento concreto de projetos pautados a partir dos temas urgentes: lutar pela soberania alimentar, motivar as feiras de sementes, plantar agrofloresta, cuidar das nascentes, reaproveitar os materiais.

Aprendemos nas CEBs que os direitos da natureza são dons de Deus e nossas responsabilidades cotidianas, especialmente naqueles territórios formados por camponeses, pequenos agricultores, comunidades indígenas e demais comunidades tradicionais: ribeirinhos, sertanejos dos fundos e fechos de pasto, quilombos e seus remanescentes. Mas são também um desafio às comunidades eclesiais nas realidades urbanas onde nos reunimos para a leitura da Palavra de Deus, dialogando com a vida em família e comunidade, na busca de discernimento, portanto, de conhecimento. A Ecologia integral nos move ao engajamento na atuação das pastorais sociais e da organização política, também no acompanhamento e na participação de projetos nos territórios, em especial naqueles que buscam a reforma agrária e o fomento das redes de agroecologia.

Desde as realidades de nossos territórios e movidos pelos desafios da caminhada de nossas comunidades, reafirmamos optar pela defesa da vida e de seus valores, defendendo a casa comum e seus biomas ante aos mega projetos energéticos, de extrativismo e mineração. Escolhemos partilhar com toda a humanidade o nosso modo de viver a ecologia, através da medicina natural, da escuta e da atenção a quem chega, sentando-se à mesa para fazer da comunidade uma casa de acolhida e comensalidade. Entendemos que vivemos em um novo tempo político, portanto, precisamos trabalhar por políticas públicas em nossos territórios a nível local e nacional: desde a construção de hortas urbanas e do apoio aos camponeses, à efetivação das políticas públicas, que retomam as compras estatais de alimentos.

Sabemos que o Reino acontece em pequenos gestos, por isso, estar com os pobres significa perceber a realidade encarnada de nosso modo de viver, porque somos a semente teimosa da resistência. Esses sinais de existência e resistência, de forma muito especial, estão presentes quando somos capazes de estimular os camponeses, sobretudo as juventudes, a escolher produção agroecológica como modo de vida, cuidando das sementes crioulas. Essas economias que cuidam da vida já acontecem em nossas comunidades, e a força irradiante de nossa profecia se encontra na valorização dos pequenos sinais do reino que já acontecem em nosso meio. Incentivar, através da construção de políticas para um turismo de base comunitária, por exemplo, de diferentes meios de comunicação popular para formações continuadas e comunitárias, fortalecem a dimensão do bem viver e ressignificam os territórios como lugares de encontro.

A valorização da agricultura familiar é uma pauta que dá voz àqueles que escutam o meio ambiente e as pessoas que nele vivem vem acompanhado do apoio aos ativistas, lutadoras e lutadores de nossas comunidades, especialmente aquelas mais atingidas pelos efeitos das mudanças climáticas e de crimes socioambientais. Queremos reafirmar que trabalhar cotidianamente por uma ecologia integral que considere todas as pessoas é nosso direito e nossa condição de existência, é uma escolha radical de vida que nasce do Evangelho. Jesus de Nazaré nos ensinou com sua vida e testemunho a não calar diante das injustiças, por isso sabemos que, na defesa da Casa Comum, nós Comunidades Eclesiais de Base somos sementes: pequenas potências das grandes causas do Reino.

Temos muito a fazer em nossas comunidades. Cultivando uma vida frugal, sóbria e feliz, aprenderemos que as lutas pelos direitos da natureza e de todos os seres de um território também é a nossa luta, enquanto comunidades. É fundamental que a comunidade seja um lugar para potencializar as trocas, as feiras, os grupos solidários, buscando formas criativas e possibilidades de recriar novas economias ecológicas e comunitárias. Reconhecer os direitos originários ancestrais dos povos desta terra e de suas economias, por fim, é a condição sem a qual não conseguiremos trilhar estes caminhos de bem viver. A concretização e vivência de uma Ecologia Integral depende da resposta de cada um de nós e da voz de todos nós juntos, sem deixarmos ninguém para trás.

Pelotas, Rio Grande do Sul, 3 de outubro de 2023.


* É doutorando em Filosofia Moral e Política pela Universidade Federal de Pelotas, compõe a Comissão Pastoral da Terra e a Academia de Pesquisadores da Economia de Francisco e Clara.

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