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JULGAR, HORIZONTES DA ESPERANÇA – PARA COMPREENDER O VERBO SAIR

Por Tea Frigério – mmx*

CEBs, Eklesia alternativa de novos céus e nova terra

Principiando a conversa retomo o que escrevi no Texto Base do 15º Intereclesial.

Inspira-me profundamente a palavra que nos vem do profeta Isaías e que o autor do livro do Apocalipse retoma no final de seu escrito: vou criar um novo céu, uma nova terra (Is 65,17; Ap 21,5). Palavras proféticas, palavras apocalípticas. Sim porque hoje nós, amantes da eclesiologia das CEBs, ou como nos propõe Papa Francisco, ser amantes da eclesiologia Sinodal, exige de nós sermos apocalípticos. Apocalípticos, não no sentido de proclamadores e proclamadoras de ruínas e de fim de mundo, mas sim pessoas resilientes que mantem viva a utopia de Jesus de Nazaré, a utopia de Paulo de Tarso de sermos Eklesia, Assembleia alternativa que não se conforma à logica deste ‘mundo’ (Rm 12,2).

As palavras do profeta ressoam em nós criando imagens, pisando realidade, acordando e acalentando utopias. A utopia nasce da realidade. O sonho que ela encerra brota da ausência. Realidade marcada pela ausência do que se sonha: ausência de vida, dignidade, comida, casa, terra, céu. Realidade sofrida. Realidade dura, violenta, até com colorido de morte, mas que não mata a esperança no povo resiliente.

Dois rios de água pura alimentam o esperançar: o rio da utopia e o rio do rito.

O rio da utopia tem sua nascente no mito. O mito é coisa séria. É fonte escondida que atua poderosamente, é fonte de água viva (Jo 4,13-14). É memória coletiva do povo, sua origem, sua identidade. No mito o povo expressa quem é, de onde vem e para onde vai. Descreve como se relaciona com o Divino, com a Casa Comum, na sociedade, consigo mesmo. As narrações ajudam a compreender os fatos da vida ligando-os às suas origens. Ajudam a se situar no ‘espaço’ e no ‘tempo’ estabelecendo um quadro de referências que dão segurança e identidade.

A utopia/mito acorda a memória da origem de toda expressão de vida, da cultura, dos costumes. Falam de tudo que faz parte da vida. Falam da Casa Comum, da solidariedade humana, da convivência na Casa Comum. Falam da Divindade como origem da vida.

Em tempo de crises, de mudanças, de derrota, quando a identidade é ameaçada, a utopia/mito entra em ação e ajuda o povo a defender-se, a reencontrar-se, recriar-se através dos ritos, das celebrações, das danças, das peregrinações, das visitas, etc. A utopia/mito torna a vida inteira um rito. E as palavras do profeta Isaías nos ajudam a compreender quem somos, de onde viemos, e para onde vamos.

O segundo rio que alimenta a esperança é o rio do rito. A utopia/mito é como uma música. As notas musicais escritas no papel são mudas, mas quando ativadas pelo toque de instrumentos musicais, interpretadas pelas vozes, elas nos conectam e nos fazem entrar em comunhão com a inspiração original do artista. Acreditamos que o artista seja o Divino. Nasce, então, o rio do rito. Quando ativado através das águas do rito, a utopia/mito faz o ‘eu’ da pessoa encontrar o ‘nós’ da comunidade, do povo. Integra a pessoa e lhe dá identidade. Quando o rito é ativado através dos costumes e tradições, das celebrações e romarias, leitura orante e círculos bíblicos, novenas e visitas, narrações e solidariedades, empenho e luta a utopia se torna próxima na realidade. Neste processo a Palavra de Deus nos coloca em contato com a inspiração original que deu origem ao Povo de Deus, ao Povo das CEBs. Faz-nos entrar na correnteza do rio rito que tudo purifica e renova, alimenta a resistência, a esperança se torna esperançar. A correnteza das águas leva, faz o processo acontecer no cotidiano e no social, no pessoal e coletivo, enfim no eu e no nós.

O tempo da utopia/mito é ontem e amanhã. O tempo do rito é hoje. O rito é o espaço onde vivemos o esperançar, construímos a utopia. O rito nos coloca em saída, nos faz perceber que a água de hoje não é a de ontem, que a paisagem mudou e, compreendemos que a utopia se realiza na interação entre hoje e ontem, entre mito e rito.

“…O tempo é ocupar-se mais com iniciar processos do que possuir espaços. O tempo ordena os espaços, ilumina-os e transforma-os em elos duma cadeia em constante crescimento, sem marcha à ré. Trata-se de privilegiar ações que geram novos dinamismos na sociedade e comprometem outras pessoas e grupos que os desenvolverão até frutificar em acontecimentos históricos importantes… gerar processos que construam um povo… desenvolve e alcança uma autêntica razão de ser a plenitude da existência humana, de acordo com o caráter peculiar e as possibilidades da dita época” (EG 223-224).

Acolhemos o convite do Papa Francisco: “Jesus Cristo pode romper também os esquemas enfadonhos em que pretendemos aprisioná-Lo, e surpreende-nos com a sua constante criatividade divina. Sempre que procuramos voltar à fonte e recuperar o frescor original do Evangelho, despontam novas estradas, métodos criativos, outras formas de expressão, sinais mais eloquentes, palavras cheias de renovado significado para o mundo atual. Na realidade, toda ação evangelizadora autêntica é sempre ‘nova’” (EG 11).

CEBs: Igreja Sinodal em Saída para as Periferias

A utopia das CEBs tem sua inspiração no Projeto eclesial das Primeiras comunidades cristãs, assim como são retratadas em At 2,42-47:

  • Reúnem-se nas casas. A casaé o lugar onde acontece a novidade. Na casa, não tem a hierarquização que há no templo. As relações são de iguais. A casa é o espaço das mulheres. Então, elas se tornam as diaconisas. Várias vezes, fala-se disso: a casa de Maria, a casa de Lídia, a casa de Priscila e Áquila, a casa de Febe, de Filemón e Ápia. A casa é o espaço que acolhe a comunidade nascente.
  • Na casa, sãoassíduos ao ensinamento dos apóstolos. É na casa que a memória de Jesus é transmitida, aprofundada e vivida. Quem faz isso não são os escribas ou doutores da lei, mas gente simples, pescadores, lavradores, mulheres, os e as que conviveram com Jesus.
  • Na casa, vive-se a comunhão fraterna. Na memória de Jesus e no testemunho de sua prática, os discípulos e as discípulas vivem o serviço à comunidade em espírito de igualdade, fortalecendo a comunhão, partilhando seus bens para que entre eles não houvesse necessitados.
  • Na casa, celebra-se a fração do pão. Fração do pão que é a memória de Jesus presente no Pão e no Vinho. Celebrar a Ceia, a Eucaristia, partilhando o pão, mantendo viva a memória a prática de Jesus, mantendo vivo o compromisso do Reino.
  • A oração era o cimento que segurava os três esteios que sustentavam a comunidade: kerigma – koinonia – diakonia.

É a nascente de nossa utopia e ela é profundamente sinodal, embora seja como semente que necessita desabrochar.

Papa Francisco nos convida repetidamente a ser uma Igreja em saída, então vamos aprofundar o verbo sair e perceber que este verbo geralmente é acompanhado pela sinodalidade embora este vocábulo não apareça.

Aprofundando o Verbo Sair

Vamos nos perguntar: quais as águas que alimentam as CEBs em saída? Onde buscamos a seiva que faça a árvore crescer e frutificar?

  • SAIR: caminhar, ir, percorrer, buscar, acreditar, deixar … podemos continuar a refletir, encontrar sinônimos e assim perceber a profundidade deste verbo.
  • SAIR: iniciar um processo, um movimento que nos leva a sermos comunidades LIMINARES.
  • SAIR: verbo que tece todo o 1º e o 2º Testamento, como o fio que costura os variados pedaços de pano de uma colcha de retalhos, com seus pontos vai unir, vai tecer uma colcha que ainda hoje estamos tecendo.

Igreja em Saída

Papa Francisco nos ajuda a aprofundar:

  • É uma Igreja que toma a iniciativa, sem medo de ir ao encontro dos que estão à margem, de chegar às encruzilhadas dos caminhos para convidar os excluídos e excluídas (cf. EG 24). 
  • É passagem de uma Igreja autorreferencial, centrada em si mesma, para uma Igreja aberta à alteridade, porque “quem deseja viver com dignidade e em plenitude não tem outro caminho senão reconhecer o outro e buscar o seu bem” (EG 9).
  • É acolher o chamado a uma saída missionária sempre em novidade (EG 20), sem medo de enfrentar os cenários e os desafios próprios da missão evangelizadora da Igreja. 
  • É um convite a uma nova práxis eclesial, na visão de Francisco, “não se pode deixar as coisas como estão. Não nos serve uma ‘simples administração” (EG 25).
  • Diante dos desafios da missão, o papa convida a Igreja a uma saída missionária. Isso é, sair da própria comodidade e ter a coragem de alcançar todas as periferias que precisam da luz do evangelho (cf. EG 20).
  • Igreja em saída é missão. Missão é o encontro de Deus com o mundo, do Divino com o Humano. Missão é um processo de integração, de relação, de comunhão, de urgência, que não se realiza sem tensões e lutas(PANAZZOLO, 2006, p. 101).

SAIR nasce da PROVOCAÇÃO de um NÃO, que tem como resposta a PROVOCAÇÃO de um SIM.  O verbo SAIR é fundamento, é nascente do sermos Igreja em saída, assim como nossos antepassados e antepassadas o foram: somos filhos e filhas do sair. Sair é nossa herança.

Sair é resposta a uma provocação que vem através de um grito, um chamado, uma situação. Sempre há um não vida, que clama por vida plena.

Compreendendo o Verbo Sair

Podemos nos interrogar: qual a Palavra que fundamenta a nossa caminhada de CEBs para ser uma Igreja em saída? Ouso voar como águia sobre nosso Texto Sagrado e apontar umas luzes, a vocês o convite a voar comigo e perceber outras luzes.

  • A Divina Ruah saiu para pairar sobre o caos, fazer acontecer a harmonia e o desabrochar da vida (Gn 1,1ss).
  • A Divindade desceu, para estabelecer morada no meio do povo teve que sair.

De ponta a ponta, o verbo sair, é o fio que costura todo o texto sagrado.

  • Abraão teve que sair e, de saída em saída se tornou nosso pai na fé (Gn 12,1ss).
  • Agar teve que sair, se colocar a caminho no deserto, arriscar sua vida e a vida do filho e, na nascente, viu, foi vista e, se tornou mãe de um povo forte (Gn 16,7ss; 21,14ss).
  • No êxodo, Javé viu, ouviu e desceu. Ele se deslocou, teve que sair para fazer acontecer a libertação (Ex 3,7ss). O povo teve que sair, caminhar pelo deserto para aprender o bem viver. JAVÉ é como o rio que desce e convida a sair, se colocar a caminho, atravessar as águas para entrar na terra do bem viver.
  • Débora teve que sair dos paradigmas de seu tempo para responder ao clamor do povo e dizer com Jael: basta as invasões predatórias (Jz 4 e 5). 
  • Elias teve que sair do palácio do rei para experimentar que se pode viver do que a natureza e a hospitalidade oferecem, aprender que o Deus na vida é o Deus da brisa, leva sempre novidade, livre e libertador (1 Rs 17; 19,11-13).
  • Noemi e Rute saíram e voltando constituíram uma aliança, resgataram leis que asseguravam para elas e para o povo pão, terra, teto e futuro.
  • Ester teve que sair dos privilégios de rainha, colocar sua vida em risco para proteger a vida do povo (Est 5).
  • Judite teve que sair de sua viuvez para denunciar que não se coloca Deus à prova, se confia Nele acreditando que o Deus verdadeiro agiria libertando através do seu agir (Jt 8,1ss).
  • Saiu Maria carregando no ventre o filho anunciado (Lc 1,39), a Palavra que se faz Humanidade e coloca sua tenda no meio do povo (Jo 1,14).

Poderíamos continuar voando e elaborando um cântico/ladainha para cantar, dançar e viver o verbo sair que costura a história da Divindade que sai e caminha com seu povo.

Sair para as Periferias

Sair, para onde? Porque? Para que? Como?

Sair tendo um objetivo, uma meta, um projeto, um processo para fazer acontecer mudança, transformação, vida: passar do não ao sim, da morte à vida. Ao sair sempre exige um deixar, se colocar em movimento, iniciar um processo para fazer acontecer o novo. Olhando bem de perto o texto sagrado não nos apresenta um, uma protagonista, nunca solitária, isolada, um ser heroico, personalista, há sempre companheiros, companheiras, aliados e aliadas, um coletivo comunitário, uma equipe visando a vida, vislumbrando superar o não vida para vida do povo.  

Sair e Sinodalidade caminham juntos. Embora nunca isso seja expresso verbalmente. Fixamos nosso olhar sobre alguns panos desta nossa colcha de retalhos para percebermos isso.

Convido a olhar para Paulo: no caminho de Damasco é cegado por um grito que provoca nele um deslocamento, uma mudança, que exige sair de um caminho para enveredar noutro caminho, vislumbrando um projeto, aos poucos elaborando um método, uma pedagogia, não sozinho sempre em equipe. O chamado é apocalíptico… Nossos tempos são apocalípticos… Jesus é um apocalíptico… Paulo, as primeiras comunidades são apocalípticas. Porque são apocalípticas? O são porque a luz à sua frente é novo céu e nova terra, o Reino.

Já refleti sobre isso no Texto base do XIV Intereclesial realizado em Londrina, pouca coisa mudaria, talvez atualizar as luzes para o hoje. Acredito profundamente que as CEBs devem se tornar comunidades apocalípticas: nova lógica social e eclesial, resiliência, ousadia, ser liminares. Mas aqui quero refletir colocando em paralelo nossa nascente Jesus de Nazaré e perceber como Paulo, embora não tendo conhecido pessoalmente Jesus de Nazaré, bebeu à sua fonte, se tornou sua luz e o guiou no processo de inculturar e decolonizar a Boa Nova. 

Jesus nasce, vive em Nazaré, mas a certa altura de sua vida se desloca, sai e se coloca a caminho. O que o faz sair de Nazaré? A realidade! O grito que vem do povo pela opressão do Império Romano, pela estrutura religiosa que colocava o povo à margem. Sair, para ir ao encontro. Sai de Nazaré e se desloca para Cafarnaum provocado pela realidade. Deslocamento que coloca Jesus a caminho, num processo que marcará toda sua vida.

Saulo também sai e se torna Paulo. Judeu tem sua primeira provocação no assassinato de Estêvão, seu amigo, seu companheiro na escola de Gamaliel.  No caminho de Damasco “cai” do cavalo; falamos isso para significar que ele foi tocado, provocado a se colocar em saída, do ser profundamente judeu da tribo de Benjamim, circuncidado a se considerar o último dos últimos no conhecimento de Jesus Cristo (Fl 3,7-14). Se coloca em saída.

Jesus sai para onde? Para a beira mar. Sua vida foi colocar-se à margem, geograficamente, socialmente, religiosamente. Sair das estruturas, colocar-se à margem: pensa e age a partir da margem e com os emarginados.

Paulo é trazido por Barnabé na comunidade de Antioquia, pequena comunidade que vivia à margem da estrutura social e judaica da cidade. Desta comunidade sai em equipe e vai percorrer as estradas que conduzem as cidades greco-romanas fazendo-se último com os últimos optando para se sustentar como trabalho manual de tecelão de tendas.

Jesus tem no seu horizonte o Reino. Qual é o horizonte de Paulo? Embora não apareça no seu vocabulário seu projeto é o Reino.

Jesus ao sair à beira mar em Cafarnaum, seu primeiro agir é criar um pequeno grupo de homens e mulheres. Ao mesmo modo Paulo sai em equipe e em cada cidade organiza pequenas comunidades.

O pequeno grupo com o qual Jesus vai percorrendo a Galileia, a Samaria e a Judeia o que faz? Cura, expulsa demônios, inclui, perdoa, restitui a dignidade, abre os olhos, aprende e vive uma nova lógica. Um agir alternativo na sociedade em que estão vivendo: os leprosos ao ser curados são reintegrados na sociedade, as mulheres se tornam discípulas, apóstolas apostolorum, as crianças símbolo do Reino; o ser humano e a vida têm valor, não a lei; seu não à estrutura do templo é radical; à Samaritana que pergunta onde adorar revela que na vida se encontra e adora o Divino porque tudo é sagrado; as estruturas que matam têm que deixar lugar ao amor, ao perdão, à inclusão. O agir de Jesus não é somente ao seu redor, mas um agir também para dentro do grupo: há mulheres, homens, pescadores, judeus, gregos, samaritanos. O grupo vive com Jesus, vive um agir novo, relações novas não só fora, na sociedade, mas um agir novo, relações novas no grupo: entre vocês não deve ser assim (Mt 20,24-28; Mc 10,42-45).

Jesus é marco de mudança na história: ele saiu radicalmente da estrutura de seu tempo, não existe sacerdócio, no agir de Jesus: nasce leigo, vive como leigo, morre leigo. Nas relações com as mulheres, quebra todos os tabus de pureza e desacerdotalizou a estrutura de “igreja/templo” de seu tempo. Jesus sai de Nazaré para fazer acontecer uma mudança, tendo como luz, o Reino.

Igualmente o fez Paulo. No seu andar, ele provocou pessoas a formar pequenas comunidades na estrutura de cidade do império romano, da religião judaica. Pequenas comunidades provocadas a viver novas relações: Priscila e Áquila, Lídia, Onésimo, Filemon, Febe. Homens e mulheres experimentam uma nova sociedade. A ‘eklesia cristã’ deve ser alternativa a ‘eklesia da cidade’.

A Comunidade tem que ser primeiramente um espaço de novas relações “não há judeu nem grego, não homem nem mulher, não há escravo nem livre (Gl 3,28)). Paulo traz o Divino na realidade; provoca mudança de linguagem, que levam a mudar de mentalidade, de paradigma, de vivência, de relações.

Em seu primeiro escrito, a 1ª Carta aos Tessalonicenses, afirma repetidamente que Jesus Cristo é o Senhor e não o imperador, ao seu lado repetidamente ocorre o vocábulo irmão. Ao fazer isso convida os cristãos e cristãs de Tessalônica a mudar de paradigma: na comunidade não há estrutura piramidal, na comunidade vive-se relações de irmãos e irmãs.

Na 1ª Carta aos Coríntios escreve: ouço dizer que uns comem, até passar mal, envergonhando os pequenos, na noite em que Jesus foi entregue … (1Cor 11,18ss).Paulo está decolonizando as comunidades greco-romanas, está provocando a inculturar a Boa Nova de Jesus de Nazaré. Na comunidade tem que ter relações alternativas, mas para isso é necessário mudar de paradigma, mudar de mentalidade. Deus escolheu o que é loucura no mundo, o que é fraqueza, aquilo que o mundo despreza, acha vil, não tem valor isso Deus escolheu… (1Cor 1,26-31).

Sair geográfico, sair social, sair religioso, sair eclesiológico, sair de paradigmas, sair … O verbo sair é verbo fundante para o nosso ser CEBs hoje: Jesus – Paulo – CEBs hoje. Sair é processo, se colocar a caminho …

CEBs em saída, mas sair do que? Sair para onde? Sair como? Dissemos que sair é sempre um deixar: deixar o que? Teremos a coragem de deixar? A coragem de mudar? Qual a identidade do projeto das CEBs? Sair para iniciar um processo. Hoje vivemos numa sociedade plural. Sociedade e Igreja se influenciam reciprocamente, por isso também vivemos numa Igreja plural. A própria realidade das CEBs é plural. Como conviver com a pluralidade sem perder o carisma histórico das CEBs de Eklesia Povo de Deus, toda ela sinodal?

Ao olharmos para Jesus, para Paulo percebemos com força que não partiram da estrutura, se colocaram à margem. O que é colocar-se à margem? Colocar-se à margem é se colocar no limite, é se tornar liminares. Em todas as sociedades existem pessoas liminares (Jesus, Paulo, o Movimento de Jesus, o próprio judaísmo). O que significa isso? Fazer a experiência de um Deus que ouve, escuta, desce e vai ao encontro. Ir ao encontro, dar resposta ao clamor precisou sair, para encontrar se deslocar, descer no limite, à margem, lá onde se eleva o clamor. Vai ao limite. Limite que é recomeço!

Colocar-se no limite, muitas vezes é fruto de rupturas, é acordar a memória de uma sociedade, de uma humanidade cuja centro é a vida e não as estruturas. Numa Igreja que esquece seu arquétipo de ser povo de Deus, qual será o limite que vai acordar o compromisso de ser Igreja povo de Deus? Estar à margem como CEBs, é se tornar um grupo liminar, que acorda na Igreja seus compromissos com a vida, com a casa comum, com os últimos, de ser pobre com os pobres, de ser laical, sinodal, de ser Igreja em saída.

Na celebração de abertura do intereclesial de Crato vibrei quando o bispo em alta voz proclamou: CEBs é o modo normal de toda Igreja ser. Vibrei, vibramos! Uma utopia, um sonho! Hoje acordamos deste sonho e experimentamos que as CEBs são um jeito minoritário da Igreja ser. Vivemos numa realidade plural, a sociedade é plural, a igreja é plural, a igreja católica é plural. Como conviver na pluralidade mantendo-se fiel radicalmente à proposta de Jesus de Nazaré de ser comunidade pobre com os pobres, em saída, no jeito sinodal de ser?

Pessoalmente me inspirando em Jesus de Nazaré, em Paulo, no Movimento de Jesus acredito que as CEBs devem ser comunidades liminares. O que entendo por isso?

Comunidades liminares

O que a antropologia define como comunidades liminares? Apresento uma possível definição. “Liminar é um espaço social ambíguo e sagrado no qual uma pessoa ou um grupo é separado por um tempo das estruturas normais da sociedade”.

A definição subentende algumas ideias: as comunidades, as pessoas liminares clareiam as estruturas existentes e ao mesmo tempo provocam mudanças; as sociedades tendem a se estruturar, a se esclerosar nos dogmas, na tradição, nas leis, nos códigos, na moral, nos costumes; por isso cada sociedade gera comunidades, ou pessoas liminares. Inconscientemente uma sociedade, quando se estrutura até se esclerosar, separa alguns indivíduos ou grupos e os assinala de um especial sistema de valores. São projetados nelas os valores que a sociedade está perdendo, seus arquétipos, suas utopias, suas esperanças e sonhos. As sociedades ou grupos necessitam de ‘alguém’ que encarne os ideais em que acreditam e consideram sagrados, e através deles re-articular valores que são considerados arquétipos e que parecem perdidos ou esquecidos. As sociedades precisam dessas comunidades, dessas pessoas, mas ambiguamente podem achá-las irrelevante e até persegui-las, pois elas criticam e apontam transformações. Este processo é uma busca criativa que quer responder as necessidades contemporâneas e ao mesmo tempo alimentar uma nova visão de futuro: novos céus e nova terra.

As CEBs são um chamado à liminaridade.  Um chamado a oferecer uma imagem especular na qual as pessoas possam ver refletidas e reconhecer suas buscas, lutas e esperanças de uma existência mais significativa. As igrejas precisam da eklesia das CEBs, mas de uma forma que desafie e inspire o contexto de cada época a recuperar valores arquétipos perdidos.

Carl Jung afirma que quando os símbolos decaem o inconsciente coletivo como vulcões em erupção geram novos arquétipos, pois estes estão inscritos de modo indelével na consciência coletiva. Os valores arquétipos estão ligados ao: sagrado – cosmos – terra – outros seres humanos em termos de sexualidade afetiva – outros seres humanos em termos de companheirismo e cooperação.

A recuperação destes valores acontece, na maioria das vezes, fora das instituições religiosas, no limite da estrutura social e podemos aqui dizer eclesial. As pessoas encontram criativamente seus caminhos para recuperar o que está em perigo de ser perdido para sempre. Constatamos que as igrejas ao longo da história perderam contato com sua vocação liminar, pois se deixaram domesticar, então surge a interrogação: Qual é o desafio liminar para os nossos tempos?

As CEBs, comunidades minoritárias que guardam em seu bojo a utopia das primeiras comunidades são chamadas hoje a ‘vocação a liminaridade’, são depositárias de uma vocação que não pertence somente às igrejas, às religiões e sim pertence à humanidade, inclusive de quem diz não ter fé.

A liminaridade é processo, é crescimento, é risco a ser vivido, por isso exige criatividade, flexibilidade, fluidez e coragem para entregar-se ao caos. Entregar-nos ao caos é a coragem de embaralhar os elementos e começar do princípio. Como no Gênesis o caos é o princípio da criação (Gn 1,1-2). Voltar ao caos para recriar, irradiar e intensificar determinados valores a serviço da humanidade, da casa comum, da vida.

Sair em Sinodalidade

Na celebração de encerramento, dom Maurício, bispo anfitrião nos brindou com estas palavras: parecia que Papa Francisco caminhava aqui entre nós, sua utopia expressa no seu magistério estava presente nas nossas falas e reflexões … Sim, nas falas e reflexões, nos cantos e celebrações ecoavam A Evangelii Gaudium, Laudato Si, Querida Amazônia, Fratelli tutti … Uma das falas insistentes de Papa Francisco nestes tempos é o convite a ser uma Igreja em saída, convida as CEBs a retomar a utopia de ser Povo de Deus, de ser uma Igreja Sinodal.

O convite a se colocar em saída nos pede, segundo a reflexão do meu amigo Celso Carias, colocar as CEBs a caminho percorrendo esta trilha para serem comunidades liminares:

  • As CEBs deverão ser Uma Igreja sinodal pobre com os pobres”. Recordar que os empobrecidos, foram feitos empobrecidos e com eles e elas superar esta violação.
  • As CEBs testemunharão Uma Igreja Sinodal toda ministerial. Onde os ministérios são distribuídos sem a marca de uma pesada hierarquia. Onde haja serviço em igualdade para homens e mulheres. Uma Igreja sinodal deverá ser toda ela sinodal nas ideias e na vivência.       
  • As CEBs deverão reaprender que Uma Igreja Sinodal deve mudar a forma de decidir. Reaprender a prática do discernimento e do consenso que nasce da base, dos pequenos, dos grupos, das comunidades, das assembleias, na escuta da voz dos últimos, dos pequenos, dos que não são escutados e escutadas.
  • As CEBs serão Uma Igreja sinodal que terá como método a transformação social da sociedade”: A Evangelii Gaudium afirma que o povo de Deus é sujeito eclesial numa Igreja que é comprometida com os direitos humanos e os direitos da casa comum.
  • As CEBs se encantarão novamente por Uma Igreja sinodal, que se preocupa com a política, pois a política é o compromisso com o bem comum.
  • As CEBs serão a expressão de Uma Igreja sinodal que é uma Igreja poliédrica. Poliedro é a figura geométrica que o Papa Francisco tanto fala. Igreja das múltiplas faces, onde as faces estão voltadas umas para as outras, se reconhecem, se respeitam, se acolhem, pois, a diversidade é bela. CEBs é uma face do poliedro.
  • As CEBs viverão a utopia de ser Uma Igreja sinodal que é Igreja de irmãos e irmãs”. Igreja que vive o mandamento de Jesus amai como eu vos amei: Amar no Servir, no Partilhar, dócil ao sopro da Divina Ruah.

As CEBs sempre serão minoria. As CEBs ao serem minoria são liminares, vivem a pedagogia do fermento. O fermento no interior da massa faz brotar o ar, o sopro, o vento, abrindo e, às vezes rasgando nela espaços necessários ao seu crescimento, dando leveza e sabor, criando novos espaços. Convida a colaborar com a elevação ética da humanidade, ajudando as pessoas e as sociedades a tomarem consciência de que a vida saudável depende do respiro: inspiração e expiração, recepção e doação, personalização e comunhão. Porém, rasgar novos espaços numa massa compacta, embora seja fundamental, não será sempre uma atividade confortável. É necessário dar nome a tudo aquilo que prende esta massa ao solo, que não lhe permite ganhar a leveza e o sabor aos quais ela é chamada. O fermento não existe em função de si, mas voltado à existência de um pão nutritivo, saboroso. O pão, não existe em função de si mesmo, mas para alimentar a vida e proporcionar mais prazer e alegria. Do mesmo modo, as CEBs vivendo sua vocação de comunidades liminares são fermento, são condição para o surgimento de um mundo mais bonito, diverso, humano e divino, onde todos, todas possam crer, esperar e amar: novo céu e terra nova (Cfr. Julgar, Texto Base do XV Intereclesial).

Em Rondonópolis, no 15º Intereclesial vivenciamos o que a dona de casa, da parábola experimenta ao amassar o pão, a pacientar que a massa levede, ao confiar a massa ao forno, agora o pão está quase pronto, seu perfume saboroso já se desprende do forno e enche a casa. Assim o futuro que surge no fim da caminhada e já presente no hoje da história, vem como dom de Deus e como fruto da luta do povo que resistiu e resiste na perseguição permanecendo fiel. O futuro que Deus oferece está em gestação no escondido da história, assim como o fermento escondido na massa. Sua semente está no passado do povo que é acordado pela promessa escutada no presente: “Porá sua morada entre eles e elas e serão povo dele, e ele será o Deus-com-eles, o Deus-com-elas … Eu serei Deus para ele, ela e ele, ela será filho, filha para mim.” (Ap. 21,3.7).

*Maria Teodolinda Frigério, conhecida como Tea, Missionária de Maria – Xaveriana, vive em Belém do Pará, é assessora do CEBI e assessora nacional das CEBs. Mestre em Ciência da Religião pela Universidade Gregoriana, Roma; mestre em assessoria bíblica pela Universidade EST, São Leopoldo. E-mail: t_frigerio@hotmail.com

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