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O Brasil nunca realizou uma redistribuição das terras

Pe. Jean Marie Van Damme (Pe. João Maria – assessor das CEBs NE V)

A análise começa recordando algumas dadas comemorativas deste mês de abril: dias 07, 17, 19 e 21. Versa sobre os lucros dos cartórios em 2022, as declarações do presidente Lula sobre a guerra na Ucrânia e a CPMI do dia 08 de janeiro e finaliza com algumas considerações sobre o encerramento das usinas nucleares na Alemanha.

O mês de abril é caracterizado por dias de luta por direitos. O dia 07 de abril, o dia Mundial da Saúde, no Brasil é o Dia Nacional de luta pela saúde. Este ano, por causa talvez de ocorrer em plena sexta-feira santa, não tivemos notícias de grandes manifestações. Não passou totalmente em branco. A Central Única dos Trabalhadores fez uma reflexão importante sobre a importância desta luta[1]. A data marca a fundação da Organização Mundial da Saúde em 1948, logo após a segunda guerra mundial. Enfatiza a cada ano que a saúde em todas as suas dimensões é um direito, defendido arduamente pelo Movimento Internacional de saúde para os povos (People´s Health Movement)[2]. Mundialmente, os ativistas rejeitam a ideia que a saúde é objeto de caridade, ou pior, dentro da lógica do mercado, destinada para quem possa compra-la. No Congresso brasileiro temos não poucos deputados e senadores que se elegeram com apoio financeiro de planos privados de saúde e por isso não assumem a defesa do Sistema Único de Saúde.

O des-financiamento do SUS, ocasionado pela EC 95 foi aprovado pela maioria do Congresso brasileiro. A mudança no financiamento da Atenção Básica através do Previne Brasil, que substituiu o PAB (Piso de Atenção Básico – fixo e variável) só veio agravar a situação, diminuindo os recursos para os municípios através de transferências constitucionais. Será uma temática imprescindível para ser discutido na Conferência Nacional de Saúde que deve ocorrer nos dias 02 a 05 de julho deste ano. O pleito é que anualmente 10% da receita federal seja utilizada para a saúde e não apenas 3,37%, como em 2022. Como? Tirando dos 46% que foram destinados para juros e serviços da chamada dívida pública, nunca auditada, nunca investigada, embora a Constituição de 1988 a determinou!

O dia 17 de abril é o Dia Nacional de luta pela Reforma Agrária. O Brasil é caracterizado pela concentração da terra e nunca, em toda a sua história, realizou uma revisão da propriedade agrária[3]. O Brasil nunca realizou uma redistribuição das terras. Se auto-titulando um país cristão e tendo a Bíblia como Livro Sagrado, parece desconhecer conceitos básicos judaico-cristãos sobre o acesso à terra. O capítulo 25 do livro Levítico ordena a realização de uma redistribuição das terras a cada 50 anos, praticamente a cada geração. O que os governos brasileiros, desde José Sarney e, 1995, tem chamada de Reforma Agrária não passa de uma confirmação do domínio das terras pelas mesmíssimas famílias ou empresas, e titulando alguns produtores familiares com um documento negociável. “Muitas vezes a terra pertencente aos agricultores familiares é arrendada ou vendida para compor áreas maiores”[4]. Ainda são cerca de 10 milhões de famílias que vivem e sobrevivem da agricultura familiar no Brasil. O Maranhão é o Estado mais rural da Federação com ainda 40% de sua população vivendo da agricultura.

Mas a preocupação e muito grande com a diminuição constante das famílias que permanecem no campo. Entre 2006 e 2017, os 84,4% de empreendimentos rurais que ocupavam 32% da área cultivada pela agricultura familiar, diminuiu para 77% de empreendimentos e 23% da área. São, no entanto, estas famílias que produzem o alimento saudável e a comida que vai para a mesa do cidadão. Que este processo é muito violento, atesta o relatório anual da CPT que foi lançado esta semana. O numero de conflitos cresceu 10% em 2022, afetando quase 1 milhão de pessoas[5].

É preciso destacar a importância do MST para a produção agroecológica. Em 2021, o Movimento conseguiu captar 17,5 milhões de reais em menos de duas semanas para investir nas suas cooperativas e unidades produtivas, com a emissão de um Certificado de Recebíveis do Agronegócio (CRA)[6]. Escapou dos sanguessugas bancárias e abriu sua própria linha de financiamento. Escapou do mercado dominante, produz para o povo e foi um dos maiores doadores de alimentos para famílias em condição de extrema pobreza durante a pandemia.

Não é o agronegócio que garante comida na mesa do povo brasileiro. As empresas produtoras de soja, algodão, carne, milho produzem para o mercado internacional, faturam em dólares. Dizem produzir alimento, mas não para a mesa brasileira. Nosso país é considerado um dos maiores produtores de alimentos, mas empurrou novamente a metade da sua população na Insegurança Alimentar em 2022. Há urgente necessidade de Políticas Públicas e de Reforma Agrária, de controle sobre o uso da terra, de agrotóxicos, temas para a próxima Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, marcada para dezembro deste ano.

Ao mesmo tempo que o MST luta por uma Reforma Agrária, outro componente da sociedade brasileira ruma para o lado oposto. Latifundiários, multinacionais do veneno, das sementes, do adubo e exportadoras de soja, milho e carne se uniram contra os trabalhadores e trabalhadoras. Estas empresas se organizaram no Instituto Pensar Agropecuária, “think tank” financiada diretamente por entidades como a Associação Brasileira do Agronegócio (ABAG), a Associação Brasileira dos Produtores de Soja (AGROSOJA), a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e a Federação da Indústria do Estado de São Paulo (FIESP) [7]. Grandes multinacionais também conspiram contra o MST, como a Cargill, Bunge, Nestlé, JBS e Bayer. No Congresso, tem mais deputados e senadores de rabo preso a estas empresas, cujos interesses defendem, do que parlamentares que se levantam para a defesa dos interesses da população, dos trabalhadores e das trabalhadoras.

No dia 19 deste mês, o Brasil celebrou o dia dos povos originários. Este pode ser considerado um dia de celebração mesmo, embora um longo caminho ainda está pela frente até que todos os povos tenham seus territórios reconhecidos, devidamente ocupados e seus direitos fundamentais respeitados, dentre destes de saúde e de educação. A conterrânea maranhense ministra Sônia Guajajara proclamou acertadamente: Nunca mais um Brasil sem nós![8] A ação do Ministério dos Povos Indígenas representa e fortalece a diversidade dos 305 povos que vivem no Brasil e suas 274 línguas. Esta luta, no entanto, não está ganha. As forças antidemocráticas e neofascistas não morreram e vão buscar fortalecer suas posições, incorporar os territórios no mercado especulativo e eliminar tudo que é originário e diversidade cultural.

Nestes dias, em que assistimos no País muita violência e atos antidemocráticos, a comemoração de Tiradentes ganha uma dose de relevância. O alferes – oficial subalterno – José Joaquim da Silva Xavier era de origem humilde. Como militar no exército português, Tiradentes inspirou-se no movimento estadunidense, que livrou aquele país da dependência da Inglaterra. A “devassa” (investigação sobre sonegação de impostos sobre os minérios explorados) e sua provável cobrança pela Coroa Portuguesa, fez surgir um movimento parecido na Capitania, chamado de Inconfidência mineira. Lutava pela liberdade da Colônia, que viria somente 25 anos depois com a instituição do Império. A maioria das lideranças de Inconfidência mineira, com ideais republicanos, foram expulsas a mando da Rainha Maria I em 1792. Apenas o alferes foi enforcado, servindo de bode expiatório[9].

Uma informação que não ganhou a grande mídia nos faz conhecedores de que em 2022, o serviço notarial (os cartórios) bateu um recorde de receita: R$ 15,9 bilhões, ou seja, mais do que vários (seis) ministérios (entre estes o Ministério da Justiça)[10]. Os cartórios são serviços prestados à população e seu uso é obrigatório em muitas ocasiões. Embora não sendo mais hereditários, tendo seu responsável hoje que passar por concurso público (desde 2009)[11], pouca coisa mudou na sua relação com a população. Não podem ser entendidos como um serviço, mas é um verdadeiro negócio altamente lucrativo.

As declarações do presidente Lula sobre a guerra na Ucrânia, têm sido contraditórias. No entanto, acusá-lo de fazer propaganda pró-russa não pode ser simplesmente endossado. Declarou: “A paz está muito difícil. O presidente [da Rússia Vladimir] Putin não toma iniciativa de paz, o [presidente da Ucrânia, Volodimir] Zelenski não toma iniciativa de paz. A Europa e os Estados Unidos terminam dando a contribuição para a continuidade desta guerra. Nós precisamos convencer as pessoas de que a paz é a melhor forma de estabelecer qualquer processo de conversação”[12]. Quantas vezes durante a história dos últimos 100 anos, os EUA não invadiram igualmente países onde entendeu que seus interesses estavam sendo contrariados. Deixou países inteiros arrasados, como Laos, Vietnã, Camboja, Iraque, Kuwait, Afeganistão. Países que nem fronteira fazem, como Cuba, Porto Rico, Nicarágua, Honduras… Muitos enxergam nos EUA o grande defensor da liberdade, que não o são. Nem defensores da legalidade internacional, porque nem todos os tratados são por eles assinados, nem respeitados. É importante conhecer a história da Ucrânia, sobretudo das últimas décadas. Lula têm razão de esticar o dedo para a União Europeia, a OTAN e os EUA como instigadores da guerra antes de fevereiro de 2022. Deve ser condenada a invasão russa? Deve. Mas deve ser apontada a culpa internacional, especialmente estadunidense, que busca a todo custo e desesperadamente manter o seu imperialismo sobre o planeta.

Em março, Bolsonaro, ainda nos Estados Unidos, entrou na articulação da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) sobre os fatos do dia 08 de janeiro[13], iniciativa dos deputados e senadores de seu grupo de apoio, da direita. O objetivo era obvio: fazer com que uma suposta omissão do governo fosse apontada como causa do descontrole e da violência dos terroristas e assim dar início a um processo de impeachment. O governo, por seu lado, se opôs à instalação do Inquérito. Achou mais prudente deixar a questão para investigação pelo Judiciário. Porém, a conjuntura mudou. Com a perspectiva de ter o controle sobre a CPMI em suas mãos e de poder convocar o ex-presidente e seu filho Eduardo para depor, a base do governo se convenceu de entrar na sua instalação[14], mesmo que alguns parlamentares (como Humberto Costa e Renan Calheiros) duvidem que terá muitas consequências ou encaminhamentos práticos.

No dia 15 de abril, a Alemanha encerrou definitivamente a operação de suas últimas usinas nucleares. Foi um passo importante para a Europa ampliar suas fontes de energia limpas. A nuclear ainda é a maior fonte para o continente e em diversos países, enquanto a hidroelétrica, eólica e o gás ganham maior espaço[15]. O Brasil ocupa um lugar de destaque no mundo, por utilizar quase 50% de fontes de energia limpa[16]. Nem sempre, as empresas de geração e distribuição de energia respeitam as populações, o que é facilmente constatado nas plantas de torres eólicas e as linhas de transmissão da energia. Como qualquer outra atividade econômica, pode causar impactos sociais e ambientais que devem ser analisados e mitigados[17]. Decisões sobre a localização de parques eólicos deveriam ser tomadas levando em consideração os usos da terra na região de interesse. No campo social, as empresas carecem de maior sensibilidade, senso democrático e respeito às populações residentes e seus direitos;


[1] https://www.ocafezinho.com/2023/04/07/dia-mundial-da-saude-marca-chamado-a-populacao-para-a-luta-pela-saude-publica/ (Acesso em 2023.04.21)

[2] https://peoplesdispatch.org/2023/04/08/our-fight-is-for-the-right-to-health-not-for-charity-and-mercy/ (Acesso em 2023.04.21)

[3] https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/reforma-agraria.htm (Acesso em 2023.04.21)

[4] https://eattae.com.br/a-agricultura-familiar-e-seus-novos-desafios/ (Acesso em 2023.03.21)

[5] https://www.cartacapital.com.br/tag/relatorio-cpt/ (Acesso em 2023.04.21)

[6] https://www.brasil247.com/economia/eduardo-moreira-operacao-do-mst-no-mercado-financeiro-tirou-poder-dos-bancos (Acesso em 2023.04.21)

[7] https://apublica.org/2023/04/frente-agropecuaria-paga-campanha-contra-mst-no-facebook-e-instagram/ (Acesso em 2023.04.19)

[8] https://www.abcdoabc.com.br/brasil-mundo/noticia/dia-povos-indigenas-marcado-pela-campanha-nunca-mais-brasil-sem-194542 (Acesso em 2023.04.21)

[9] https://brasilescola.uol.com.br/biografia/tiradentes-biografia.htm (Acesso em 2023.04.22)

[10] https://www.poder360.com.br/economia/cartorios-arrecadam-r-259-bilhoes-e-superam-verba-de-ministerios/ (Acesso em 2023.04.19)

[11] https://www.cnj.jus.br/atuacao-do-cnj-ampliou-atribuicoes-e-efetividade-de-cartorios-brasileiros/ (Acesso em 2023.04.21)

[12] https://revistaforum.com.br/global/2023/4/18/entenda-posio-de-lula-sobre-guerra-entre-ucrnia-russia-134468.html (Acesso em 2023.04.21)

[13] https://www.brasil247.com/regionais/brasilia/bolsonaro-entra-na-articulacao-da-cpmi-do-8-de-janeiro-e-escancara-objetivo-de-atacar-o-governo (Acesso em 2023.04.22)

[14] https://www.brasil247.com/brasil/base-governista-quer-convocar-bolsonaro-para-depor-na-cpmi-dos-atos-terroristas-de-8-1-09xgy7y3 (Acesso em 2023.04.22)

[15] Folha de São Paulo, 16/04/2023

[16] https://www.gov.br/pt-br/noticias/energia-minerais-e-combustiveis/2021/08/energia-renovavel-chega-a-quase-50-da-matriz-eletrica-brasileira (Acesso em 2023.04.21)

[17] https://www.scielo.br/j/ambiagua/a/5b77GB9j4yPTzkS4pjxyhvH/ (Acesso em 2023.04.21)

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