Shadow

Glória a Deus nas Alturas e Paz aos seres humanos nos quais Ele se faz presente

O NATAL IV*

Por ANTONIO SALUSTIANO FILHO**

Capítulo 3 – Glória a Deus nas Alturas e Paz aos seres humanos nos quais Ele se faz presente.

A fé que aprendemos a cultivar e a cultuar nos ensina que neste tempo de Natal temos que refletir sobre as razões dessa nossa crença na festa da Natividade. Em sonho, passeando pelo passado da humanidade, passei por Belém de Judá. Era noite de Natal. Ouvi o choro de uma criança e uma canção entoada por voz feminina que cantava um acalanto dos tempos de então (BOFF, 2009).

Curioso, fui ver do que se tratava. Era o menino Jesus que acabara de nascer e chorava, deitado em um berço de palha numa manjedoura, rodeado de animais; o boi, o asno, as ovelhas e era acalentado por aquela cantiga de ninar entoada pela voz suave da Virgem Maria, sob o olhar cuidadoso do bom José.

Enquanto eu observava a singeleza da cena, eis que chegaram uns Pastores, alegres e inquietos pela curiosidade em ver o Menino. Aqueles homens toscos, vestidos com roupas esquisitas disseram que lhes fora dado uma alvissareira notícia por um Anjo: o nascimento do Salvador, aquela Criança.

Depois de olhar com encantamento e reverenciar o Menino, os pastores abriram seus odres e partilharam entre si o que restava do vinho, brindando aquele acontecimento. Cantaram uma cantiga que costumavam cantar na calada da noite de pastoreio para afugentar o lobo voraz e o medo inibidor. Só que em lugar das palavras mágicas que dissipava os inimigos do pastoreio, frases de alegria e contentamento eram pronunciadas: “Glória a Deus nas alturas e Paz na Terra aos homens e mulheres a quem Ele concede a Graça e o(a)s agraciado(a)s se fazem receptáculo do Salvador”, disseram eles serem estas as palavras do Anjo.

Um instante de silencio e, de repente, um deles, ainda iluminado pela luz e inspirado pela mensagem do Anjo, tomou a palavras e disse: “Nós que habitamos esta terra subjugada pelo poder opressor de Roma, que vivemos o tempo da espera e alimentamos a esperança na promessa da vinda do salvador vemos, nesta Criança, a luz que anuncia o fim da escuridão. A aurora de um novo tempo surge na imensidão de nossas noites escuras. Deus não se contentou em ser somente Deus e fez-se Homem e habitou entre nós. Bem-aventurado é o ser humano que não será mais somente humano, pois o divino se faz presente nele com a chegada deste Menino”.

Fez uma pequena pausa e outro pastor continuou: “Na fragilidade desta Criança se esconde a grandeza de nosso Deus, pois nela subsiste duas naturezas: a divina e a humana. O Criador se fez criatura, se deu como presente a uma humanidade cansada e desiludida da existência, mas que cultivava a esperança que o cansaço seria vencido pela chegada do Salvador prometido. Deus, que criara o homem à sua imagem e semelhança para um dia, quando se completasse o tempo, Ele se fizesse homem e mulher. Mulher como tu, ó Mãe Bem aventurada sobre quem pouso o Espírito de Deus, Homem na pessoa dessa criança. Agora, o ser humano não é um uma criatura qualquer, mas o receptáculo de Deus. Nesta criança, cuja humanidade não é diferente da nossa, hospeda-se Deus, o Todo Poderoso”.

Um terceiro pastor tomou a palavra e com a mesma inspiração cantou: “O Deus todo poderoso[1], esperado por inúmeras gerações, Aquele que fez maravilhas, ao criar o céu e a terra repleto de tantas criaturas, se abaixa e se faz um de nós, assumindo nossa humanidade caída para elevá-la à condição original. O ser humano, ao longo dos tempos, maculou a imagem divina nele impregnada no ato da criação, porém, Deus, neste Menino, resgata essa imagem. Este é o motivo da nossa alegria”.

Ainda, falava aquele e o quarto, tomado pelo Espírito do momento, dirigiu-se à Maria e discursou: “Bendita sois Tu, ó Mulher, que representando a espécie humana, porém, serva incondicional de Deus, foste escolhida para em teu ventre gerar o Filho Altíssimo! Tu disseste o sim que todos nós devíamos dizer ao projeto de Deus que, num primeiro momento, é fazer-se Humano e habitar entre nós. Mas o Poderoso só achou guarida em Ti, porque Tu sempre estiveste à disposição de nosso Deus. Fostes consciente e fiel à promessa. Acreditastes no poder do braço de Deus que dispersa os que orgulham de seus planos. Derruba os poderosos de seus tronos e exalta os humildes, enche de bens os famintos e despede os ricos de mão vazias (Lc. 2, 51-53)”.

Um quinto pastor que a todos ouvia e meditava no silêncio de sua atenção se pusera a falar como quem resgatava uma profecia proferida em tempos de sofrimento e esperança: “A misericórdia do nosso Deus desceu sobre nós e nos norteará em nossos dias até o fim dos tempos. Foi nos dado um Menino, Ele será grande e o reino por si vivido e pregado será um lugar e um tempo de paz, justiça e harmonia entres os homens e os demais elementos da natureza. Não haverá mais a disputa entre o lobo e o cordeiro, o leopardo e o cabrito, o leãozinho e o bezerro, a vaca e o urso com o império do mais forte. Todos serão conduzidos pelo Espírito de um menino, pois foi assim que o Todo-Poderoso se manifestou para nós nesta noite. Deus fez-se Homem e demonstrou sua grandeza na fragilidade desta criança”.

Por fim, falou pastor mais velho: “Dominado pelo Espírito desta criança os seres humanos cessarão as injustiças de uns sobre os outros. Ninguém construirá cercas aumentando sua propriedade privando muitos de tirar da terra o seu sustento; nenhum ser humano terá pão em demasia com o pão que falta na mesa de tantos outros – a fome não será mais o motivo da morte de muitos irmãos; ninguém construirá palácios e nele habitará, enquanto milhões estarão relegados ao relento dos casebres, barracos, ruas e pontilhões de nossas cidades; e, finalmente, ninguém há de festejar enquanto a tristeza não for banida dos corações de todos os filhos e filhas de Deus. Os pecados serão perdoados e as feridas, curadas. A Gloria de Deus, ora anunciada, será completa se a raça humana banir da convivência entre si as injustiças que impedem a paz”.

Maria e o bom José ouviam calados as manifestações de alegria e contentamento saídas dos lábios daquela gente simples e humilde. Aquela gente nem parecia com os habitantes da cidade de Belém que lhes negaram hospedagem. 

Ao ouvir e ver tudo o que ali se passara entendi que o Natal não é tempo de uma festa qualquer; mas, um tempo de celebrar a manifestação “da bondade e do amor de Deus, nosso Salvador” (Tt 3, 4). O Natal encerra a sacralidade inviolável da vida em todas suas manifestações. Na vida daquele Menino podemos sentir a pulsação da Vida dentro de um contexto de plenitude.

Deus não se fez ser humano somente para que nas épocas natalinas, nós, imbuídos da atmosfera profanizada do Natal, possamos, num gesto miserável – por que destituído da profundidade sacrossanto do nascimento de Jesus –, festejar à moda da sociedade consumista, onde a figura ridícula de papai Noel ocupa a centralidade de nossas vidas, ofuscando o Mistério da Encarnação.

O Natal é mais do que a simbologia dessacralizada e manipulada pela sociedade de consumo que apela para bolso daqueles que podem gastar. Ao invés de pedir presentes a Papel Noel, deveríamos pedir a Deus para fazer-se presente em nossos corações. Ou melhor, abrir nossos corações para que Deus, na fragilidade do Menino-Jesus, possa nascer e aí hospedar-se, crescer e fazer-se adulto, com a prática de Filho de Deus. Porque, se não for assim, como disse Angelus Silesius, místico e poeta de outros tempos, “Nasça Cristo Mil vezes em Belém e não nasça em teu coração: estás perdido para o além, nasceste em vão”.  

* O presente texto é o capítulo 3 de uma reflexão nossa sobre o Natal, cujo texto maior será objeto da publicação de um livro com diversos capítulos escritos em forma de artigos em datas diferentes por ocasiões dos Natais.

** ANTONIO SALUSTIANO FILHO, advogado e membros das CEBs do Regional Sul-1 e da Ampliada Nacional de CEBs, militante do Movimentos Sociais Libertários.  


[1] Poderoso aqui significa aquele que tem o poder do Bem.

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