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POR QUE JESUS DE NAZARÉ FOI CONDENADO A MORTE DE CRUZ?

Por ANTONIO SALUSTIANO FILHO*

Foto: Tonin Creations na Unsplash

Eu[1], talvez por uma questão heresia natural do ser humano ainda não deformado pelas ideologias e crenças limitantes a dogmas, depois de estudar um pouco sobre o assunto, não aceito o dogma de que Jesus de Nazaré morreu na cruz para fazer a vontade do Pai. Ele não foi uma vítima expiatória que morreu pendurado numa cruz para satisfazer a vontade de um Deus sádico que, para salvar o mundo, envia seu Filho para morrer como um cordeiro imolado pelos pecados do mundo. Deus é amor (1 Jo 4, 8). Jesus morreu de morte de cruz em virtude dos pecados estruturais do mundo, no seu tempo. 

Sempre me intrigou essa questão teológica que não se encaixa na heresia indomável de um cristão rebelde com as invencionices teológicas da teoria de expiação. Há muito procuro elucidar as razões dessa descrença no sacrifício de Jesus como vontade do Pai. Nos últimos anos desse peregrinar herético na busca do entendimento da morte de Jesus de Nazaré tenho debruçado na leitura de alguns estudiosos do Jesus Histórico [2]. E cada vez mais convenço que minha fé subversiva tem razão de ser. 

Nessa minha busca para entender Jesus de Nazaré e sua morte de cruz, aprendi que há, em especial no Evangelho de Marcos, um movimento de Jesus da periferia para o centro judeu, ou seja, da Galileia para Jerusalém. Embora os estudiosos de teologia, “autorizados” pela grande instituição, pensam diferente da “teologia pé no chão que pratico – portanto, teologia herética” –, estou cada vez mais convencido que o movimento de Jesus estava no embate do mundo camponês com o mundo urbano. Jesus assumiu as dores e expectativas do seu povo. Isso é carregado de um simbolismo subversivo de encantar os de fé rebelde e revoltar os conservadores de um cristianismo (romanizado) destituído do verdadeiro espírito do contexto histórico de Jesus de Nazaré. 

Muitos são os autores, não vamos aqui nominá-los, que pensaram e escreveram sobre a situação do povo no tempo de Jesus de Nazaré. A Palestina no tempo de Jesus vivia sob o domínio imperial de Roma. Era governada pelas forças militares e ideológicas/teológicas do Império Romano, com o apoio da elite aristocrática local e de sacerdotes, reis e governos vassalos indicados pelo Imperador de Roma. Sem entender esse contexto histórico não vamos compreender o alcance da prática e morte de Jesus.

E para entender o contexto em que Jesus viveu é preciso ir um poco mais longe, lá na origem de Israel. Sob a orientação e condução de Moises e Josué, entre outros líderes libertadores, “Israel, junção dos vários grupos hebreus[3], se originou como povo livre e independente, sem uma classe dominante sobre si” (HORSLEY, HANSON, 1995, p. 24). A travessia do deserto por mais de quarenta anos foi o processo de formação desse povo que tinha como memória a ideia de um Deus libertador porque assim diz o Senhor Deus na Aliança do Sinai: “Eu sou o Senhor teu Deus, que te fez sair do país do Egito, do antro da servidão” (Ex 20,2). Essa consciência de libertação e liberdade tornou-se memória coletiva do povo e era celebrada todos os anos por ocasião da festa da Páscoa.

A terra, bem maior dos judeus – doada por Deus para se viver em independência e livre de qualquer classe dominante –, era de fundamental importância para sua sobrevivência como povo. Ademais, a posse da terra era um ato religioso por excelência, pois era sinal concreto da Promessa outrora feita aos seus antepassados. Israel organizou-se numa sociedade tribal como “camponeses livres de senhores e reis, independentes de dominação estrangeira, vivendo sob o governo de Deus (Teocracia) numa ordem social justa e igualitária, … O próprio Deus era o seu senhor a que devia-se lealdade exclusiva ‘Não terás outros deuses’” (HORSLEY, HANSON, 1995, pp. 24/25). 

Segundo Carlos Bravo Gallardo, em torno da terra forja-se identidade de Israel como povo irmanado na igualdade de um direito compartilhado sobre uma terra comum dada por Iahweh a todos por igual. (GALLARDO, 1997). Mesmo doada por Iahweh, a terra foi conquistada pelos hebreus com muita luta; guerra contra seus antigos ocupantes, os cananeus e outros povos que nela habitavam (Js 10, 24-25).

Depois de conquistada a terra, da experiência tribal (tribalismo de Israel) um projeto igualitário de sociedade experimentado por Israel; mesmo sendo terra uma benção de Deus, a ambição interna do povo hebreu influenciado por outras nações vizinhas, a Terra Prometida deixou de ser esse projeto igualitário, tal como proposto pela Aliança, para ser objeto de cobiça e ser transformada em latifúndios geradores de endividamento e empobrecimento, fazendo da maioria de seus originários donos, os herdeiros de Iahweh, pobres e escravos. 

Carlos Bravo Gallardo diz que “Pela aliança, o povo de Israel fora chamado a viver um projeto javista igualitário, fundado na política-religiosa da libertação de toda dominação e da resistência contra qualquer projeto de dominação que ameaça a liberdade. Este é um aspecto fundamental da sua identidade como povo de Deus” (GALLARDO, 1997, p. 46) que foi perdido no curso da história nas diversas situações de dominações estrangeiras.

A fé de Israel tinha como elemento central e fundamental sua eleição por Deus. Um povo escolhido para viver entre outros povos uma religião libertadora com moral e costumes diferentes das nações em seu entorno. A prática do direito e da justiça para com os mais pobres eram regras de ouro que orientavam o comportamento religioso, político, social e econômico de Israel. Porém, essa prática foi abandonada desde a monarquia davidica-salomonica até os tempos de Jesus.  Por conveniência das autoridades políticas e religiosas de Israel, em lugar da religião libertadora do Código da Aliança, criou-se o Código da Pureza, o que contribuiu, sobremaneira, para aprofundar a marginalização do povo.

Poderíamos discorrer aqui sobre o tribalismo, forma de organização primeira do povo de Israel depois que ocupou a terras de Canaã, porém, o espaço é pequeno para tal discussão. Deixemos isso para um outro texto. Daqui damos salto para a Palestina no tempo de Jesus.

A história, pela ótica do vencedor, diz que “Por meio da guerra, todo o Mediterrâneo havia sido conquistado pelo Império Romano, potência mundial da época. Movidos por táticas expansionista, os romanos iniciaram um movimento de extorsão desumana contra os povos subjugados, especialmente entre os mais pobres. O discurso imperial se baseava num duplo argumento: (i) era o progresso, urbanização e capacidade comercial, motivos aparentemente inofensivos e até positivos e (ii) um argumento teológico que apresentava o projeto da nova ordem mundial como se fosse desejos dos deuses” (SCARDELAI, ROSSI, 2021, p. 7).

No tempo de Jesus, Segundo Gallardo, o povo despossuído da terra vivia em miséria e mendicância; muitos, a maioria dos homens, transformados em trabalhadores explorados em trabalhos eventuais nas terras que antes lhes pertenciam; outros, trabalhadores urbanos com ofícios considerados impuros, portanto, marginalizados pelo sistema de pureza da religião oficial. Ainda sobre esse povo pesava forte carga dos impostos civis e religiosos, ou seja, tributos ao Império, a Herodes, além do dízimo, donativos e taxas sacrificais (compra de animais para o sacrifício) ao Templo (GALLARDO, 1997). Portanto, sob o Império Romano, o povo vive em situação de miséria, como se viveu no Egito antes do Êxodo. 

O povo, mesmo subjugado pelo domínio do Império Romano, com o apoio da aristocracia judaica e da classe sacerdotal, vive em clima de resistência. Grupos revolucionários, impulsionados pela expectativa messiânica, surgem de tempos em tempos, em especial na Galileia camponesa. Esses grupos se opõem aos impostos, ao poderio militar dos romanos com sua ideologia da “Pax Romana”, à helenização dos costumes e à idolatria. Essa gente, que ainda acreditava na restauração de Israel, que trazia em sua memória a ideologia do projeto igualitário da Aliança com Iahweh, se negava submeter-se ao domínio de Roma e seus vassalos locais. 

É nesse contexto que surge a figura de Jesus de Nazaré. Segundo os autores Donizete Scardelai e Luiz Alexandre Solano Rossi “As ações e discursos de Jesus podem ser compreendidos a partir do contexto histórico em que ele viveu, que era marcado por um sistema religioso, político-administrativo configurado a partir de estruturas de poder e violência sem precedente na história. Os romanos, certamente, determinaram e definiram as condições de vida na Galileia onde Jesus viveu e desenvolveu sua missão. (SCARDELAI, ROSSI, 2021, p. 7).

Ainda nas palavras de Gallardo, o povo abandonado, não tinha mais referências. “seus guias espirituais não se preocupam com o povo; os sacerdotes vivem esse duplo jogo de cumplicidade com os romanos e de defesa de seus próprios interesses. Os fariseus poderiam ser seus guias, porém, embora sendo de origem popular, não mais amam o povo, inclusive o desprezam porque se sentem superiores a ele lhe fazem inacessível o saber (Jo 7,49). A divisão e o enfrentamento entre os diversos grupos religiosos fazem esse abandono mais agudo.” (GALLARDO, 1997, p. 49). 

Jesus assume as dores do seu povo. Por isso, Ele se torna, para as autoridades judaicas e romanas, um “inimigo e perigo mortal pra nação […]. Porque trazia consigo o perigo de um golpe ou da insurreição […].”[4] Essa é a razão da morte de cruz. Sobre a teoria do sacrifício expiatório falaremos numa outra oportunidade. 

Nosso sacrífico nesta Quaresma é refletir sobre a temática da morte de Jesus e sua significação política e religiosa para seu tempo e tempos de hoje. 

*ANTONIO SALUSTIANO FILHO, advogado e militante dos movimentos sociais libertadores e das Comunidades Eclesiais de Base-CEBs. 

Notas e referências bibliográficas

[1] Começo o presente trabalho usando a primeira pessoa, o “eu”, porque, em primeiro lugar externo opinião própria sobre o assunto em discussão. Depois, porque não tenho a pretensão de escrever um texto acadêmico, obedecendo as regras de um artigo científico. Acredito que textos científicos estão fadados a ficar nas prateleiras das estantes das bibliotecas acadêmicas para, muito raramente, o deleite de alguns intelectuais interessados no tema. Penso que textos devem ser escritos para a leitura geral dos interessados. E para isso, é de bom alvitre, escrever sem o rigor acadêmico. 

[2] CROSSAN, John Dominic. O Jesus Histórico: a vida de um camponês judeu no Mediterrâneo. Tradução de André Cardoso. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1994; Jesus: uma biografia revolucionária. Tradução de Júlio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1995; BORG, Marcus J. e CROSSAN, John Dominic. A última semana de Jesus: um relato detalhado dos dias finais de Jesus. TRADUÇÃO DE Alves Calado. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007; MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. Tradução de I. F. L. Ferreira. 2. ed. São Paulo: Paulus: 2021 e GALLARDO, Carlos Bravo, Jesus, Homem em conflito: o relato de Marcos na América Latina, (tradução de Pedro Lima Vasconcellos) – São Paulo: Paulinas, 1997/ SCARDELAI, Donizete e SOLONAO ROSSI, Luís Alexandre. Jesus, O Messias dos pobres: por uma teologia do messianismo libertador e integral. São Paulo: Paulus, 2021; BARBAGLIO, Guiseppe. Jesus, Hebreu da Galileia: pesquisa histórica. Tradução: Walter Eduardo Lisboa. São Pulo: Paulinas, 2011; HORSLEY, Richard A. e HANSON, John S. Bandidos, Profetas e Messias: movimentos populares no tempo de Jesus. São Paulo: Paulus, 1995; PUIG, Armand. JESUS: uma biografia. São Paulo, Paulus, 2020.

[3] Segundo Sandro Gallazzi “Hebreu não é nome indicativo do povo de uma nação. HEBREU INDICA UM GRUPO SOCIAL, OS EXCLUÍDOS, OS MARGINALIZADOS. São as vítimas do sistema e que sobrevivem à margem, assaltando, roubando e oferecendo seu serviço como soldados e a um ou outro latifundiário.”

[4] Pe. ZEZINHO, IESHUÁ, In: https://www.letras.mus.br/padre-zezinho/1288077/. Acesso em 18.02.2024.

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