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A originalidade histórica de Medellín. Clodovis BOFF

Medelín constitui o que  foi o verdadeiro “divisor de águas” na história da igreja do Continente, de tal modo que se pode falar do “antes de Medellín” e do “depois do Medellín”. 

O fruto maior da Assembléia da Conferência Episcopal Latino-Americana (CELAM) em 1968 foi ter dado à luz a Igreja latino-americana como latino-americana. Os Documentos de Medellín representam o “ato de fundação” da Igreja da América Latina (AL) a partir e em função de seus povos e de suas culturas. (Aqui, para nos conformar com o falar de Medellín, dizemos sempre e apenas “América Latina”, mas compreendendo também nessa designação todo o Caribe). Esses textos constituem a “carta magna” da Igreja do Continente.

O que nos interessa aqui não é o “Medellín histórico”: o que se passou de fato na Assembléia do CELAM de 1968; mas sim o “Medellín querigmático”: o que ele representa em termos históricos. Ora, relendo hoje os documentos de Medellín fica-se impressionado com o vigor e a audácia de sua expressão, ou, para dizer numa palavra, com seu “pathos profético”, típico dos textos originários e fundantes de uma tradição. Aquilo é linguagem de verdadeiros “Pais da Igreja”, Pais da Igreja latino-americana como tal, como intuiu com penetração o Pe. José Comblin, benemérito teólogo do Continente.

Caminho histórico da Igreja da AL

De fato, até Medellín, a Igreja no Continente era a reprodução do modelo da Igreja européia, em seu modo de organização, em sua problemática teológica e em suas propostas pastorais. Era uma “igreja-reflexo” não uma “igreja-fonte”, como se exprimiu o Pe. H. de Lima Vaz, intelectual a quem muito deve a igreja brasileira. Portanto, a Igreja latino-americana, mais que ser igreja da América Latina, era mais propriamente a Igreja européia na América Latina. Era, de fato, uma igreja em estado de minoridade, tutelada, privada de sua legítima autonomia institucional.

Contudo, falta muito ainda para as “igrejas locais” terem e gozarem efetivamente dessa justa autonomia. É sabido como a Igreja latina ou ocidental é, desde Gregório VII (séc. XI), uma igreja extremamente centralizada e uniformizadora. Apesar do Vaticano II, que deu um grande impulso às igrejas locais; apesar do Pontificado de Paulo VI, que muito favoreceu o processo de descentralização e afirmação dessas igrejas; apesar dos avanços práticos em termos de consciência da própria identidade, da prática da “comunhão e participação” e da criação de mecanismos adequados para esse fim, falta ainda muito para chegarmos à justa autonomia das igrejas locais: faltam sobretudo as garantias institucionais e canônicas para tornar irreversíveis esses ganhos.

Dizíamos que a Igreja do continente, até Medellín, era substancialmente a extensão da Igreja européia na América Latina. Efetivamente, num primeiro momento, a Igreja na América Latina foi uma igreja ibérica, espanhola ou portuguesa que fosse. Era, no sentido cultural do termo, uma igreja “colonial”. É verdade que houve algumas tentativas de criar aqui uma “cristandade tropical”, como foi a utopia dos “Doze apóstolos” franciscanos no México, nos inícios do século XV. Mas esses ensaios não vingaram e talvez nem pudessem vingar. Os grandes Sínodos realizados na América Latina no século XVI, como o do México e o de Lima, são meras aplicações de Trento ao novo Continente. (De resto, Trento foi um concílio extremamente eurocêntrico: ele não viu a AL e não disse uma palavra sequer da trágica realidade da destruição dos povos e culturas ameríndias, também pela ausência naquele Concílio dos bispos do Novo Mundo e de sua voz própria).

Num segundo momento temos na América Latina uma Igreja “romanizada“. Foi quando, na segunda metade do século passado, por várias causas, o modelo ibérico foi suplantado pelo fenômeno da chamada “romanização”. Essa se caracterizou por um modelo de igreja extremamente centralizado no clero, na prática dos sacramentos e nas devoções de santos recentes e “oficiais”, destacando-se a devoção ao Sagrado Coração de Jesus. O I Concílio Plenário Latino-Americano, realizado em Roma em 1899 representou a aplicação direta do Vaticano I ao Continente.

A contribuição decisiva do Vaticano II

Foi só com o Vaticano II que se deram as condições de emergência de uma Igreja continental em sua originalidade e em sua diferença em relação ao modelo da igreja européia. Precisamente, Medellín pode ser visto como a recepção criativa do Vaticano II na América Latina. O título do documento dessa Conferência soa: “A Igreja na atual transformação da América Latina à luz do Concílio“. Como se intui, à diferença dos outros Concílios que influíram no Continente (Trento e Vaticano I), a proposta do Vaticano II funcionou aí como inspiração e não mais como padrão a ser simplesmente copiado.

De resto, como disse Karl Rahner, o Vaticano II significou a “deseuropeização” da Igreja e sua abertura verdadeiramente “católica” – fato que só encontra, na história, paralelo com a ruptura da Igreja Primitiva em relação à matriz hebraica e sua partida para o mundo grego. Desse modo, a construção da identidade das Igrejas da Periferia possibilitada pelo Vaticano II deu nascimento à “Terceira Igreja” – a do “Terceiro Mundo” (se ainda é lícito usar essa expressão). “Terceira Igreja” é uma expressão criada pelo missiólogo Walbert Bühlmann para designar o conjunto das Igrejas do Sul do Mundo, nascidas justamente depois da “Primeira Igreja” – a do Oriente – e da “Segunda Igreja” – a do Ocidente ou latina.

Portanto, sem Vaticano II, não teria havido Medellín e, por isso, nem Igreja latino-americana, com seus traços próprios, como veremos.

Os apelos da realidade social

Mas não foi só o Vaticano II, mas conjugadas com ele, foram as circunstâncias concretas em que vivia então o Continente que levaram a Igreja da América Latina a definir sua identidade. Ora, tal definição se deu justamente em função dessa realidade. Deu-se, portanto, em chave enfaticamente social. A Igreja da América Latina se caracteriza por ser uma “Igreja social”: é uma igreja profética, dos pobres e libertadora.

Digamos, antes de tudo, que a passagem de uma igreja colonial para uma igreja realtivamente autônoma tinha sido preparada por muitas e várias tentativas. Já falamos no projeto de uma Cristandade autônoma de alguns dos primeiros missionários. Durante o período da independência (fins do séc. XVIII e começos do séc. XIX) também se levantou a questão de uma igreja independente, porém de corte nacionalístico, como foi, no Brasil, a proposta do Padre-político Diogo Antônio Feijó. Na passagem do século XIX para o XX, o Pe. Júlio Maria, no Brasil, propunha, no lugar da aliança Trono-Altar, a aliança Igreja-Povo. Com o grande Cardeal Leme, ainda no Brasil, temos as primeiras tentativas de uma “pastoral social” com a ativação da Ação Católica e depois, a partir de 1934, a implantação de uma verdadeira “pastoral política” com a “Liga Eleitoral Católica” (LEC). Seja como for, nos anos 50 e 60 são todas as igrejas latino-americanas que assumem com vigor a problemática social, ainda que numa ótica marcada pelas ideologias do tempo: primeiro o populismo e depois o desenvolvimentismo.

De fato, é preciso reconhecer que no campo social se sucederam movimentos populistas, desenvolvimentistas e outros revolucionários, que foram fatores que acelerarm a consciência da libertação e da autonomia do Continente, inclusive no interior da Igreja. Em 1959 irrompeu a Revolução Cubana, que inspirou (e sua inspiração ainda não se esgotou) todo um processo de emancipação dos países do Continente. Na segunda metade dos anos 50 surgiram os governos “desenvolvimentistas”, como foi no Brasil o governo Kubischeck (1956-1961); depois, nos inícios dos anos 60, vieram os governos populistas (Jango Goulart, no Brasil); igualmente nos inícios de 60 organizam-se movimentos guerrilheiros (como na Guatemala, em 1961-63; o movimento sandinista na Nicarágua, em 1961; e a unificação do movimentos insurrecional na Venezuela em 1962); em seguida, levantam-se, no Peru, a Frente Esquerda Revolucionária e o movimento da Esquerda Revolucionária; na Bolívia, se implanta a guerrilha com “Che” Guevara (+1967); e assim por diante.

As ditaduras, que surgiram no Continente a partir dos meados dos anos 60 e de que os grupos dominantes lançaram mão para sustar o ascendente movimento popular, foram um elemento precipitador no sentido de as igrejas de cada país buscarem seu próprio caminho. De fato, quase todos os países da América Latina, nas décadas de 60 e 70, caíram sob regimes militares violentos: o Brasil em 1964, a Argentina em 1966, a Bolívia em 1971, o Uruguai e o Chile em 1973, o Peru em 1975, o Equador, em 1976 e assim por diante. E não falemos ainda das ditaduras, então já “crônicas”, como as de Strossner, no Paraguai, de Duvalier no Haiti, de Somoza em Nicarágua, de Duvalier em Santo Domingo, e das poucas e fracas democracias, como as da Colômbia e da Venezuela.

Ora, justamente em torno da época da realização de Medellín, quando os modelos de desenvolvimento e os primeiros Regimes de Segurança Nacional, como o do Brasil, não conseguiam mais esconder sua verdadeira natureza elitista e opressiva, várias igrejas latino-americanas estavam questionando sua aliança secular com o poder. Medellín, no caminho aberto pelo Vaticano II, que rompeu a “aliança constantiniana” (M.-D. Chenu), foi decisivo para dar à Igreja da AL o perfil de uma igreja livre do poder, próxima dos pobres e companheira do povo em sua caminhada libertadora. No Brasil em particular, com o documento do Regional da CNBB Centro-Oeste “Marginalização de um povo” e o documento do Nordeste II “Ouvi os gritos do meu povo”, a Igreja marcava, de modo resoluto, sua ruptura com o Poder e ao mesmo tempo sua aproximação com o povo pobre.

A resposta de Medellín e o que se lhe seguiu

Sensibilizada e legitimada pelo Vaticano II, que pôs a Igreja “dentro” do mundo (e não mais “face” a ele) e que ensinou a levar em conta, à luz da fé, os ‘sinais dos tempos”, a Igreja continental assumiu para valer, a partir da fé e de sua missão pastoral, a realidade envolvente. A Ação Católica especializada já tinha ensinado aos pastores do continente a aplicar na pastoral o método “ver, julgar e agir”, pelo qual a realidade emergia como um “lugar teológico” a se levar em conta para saber “o que o Espírito diz às igrejas”. Os Documentos de Medellín e, mais tarde, os de Puebla, seguirão esse método. De fato, na “Introdução às conclusões” de Medellín, os bispos exprimem essa nova ótica nestes termos:

“Não podemos deixar de interpretar este gigantesco esforço por uma rápida transformação e desenvolvimento como evidente sinal da presença do Espírito que conduz a história dos homens e dos povos para sua vocação. Não podemos deixar de descobrir nesta vontade… os vestígios da imagem de Deus no homem… (…) Não podemos realmente… deixar de pressentir a presença de Deus que quer salvar o homem todos, alma e corpo. (…) Assim como… o Antigo Povo sentia a presença salvífica de Deus quando da libertação do Egito…, assim também nós, o Novo Povo de Deus, não podemos deixar de sentir seu passo que salva quando se dá o ‘verdadeiro desenvolvimento’…” (n. 4,5 e 6).

Agora, para mostrar, por contraste, o salto qualitativo que representou a II Conferência do CELAM que foi Medellín, recuemos a apenas 13 anos antes e olhemos para a Primeira Conferência, no Rio de Janeiro, em 1955. Esta, em seu documento final, mostra ainda exígua consciência da identidade social e cultural do continente. Sobre 97 números de suas conclusões, dedica apenas 4 à problemática social e ainda assim numa ótica bastante genérica. Mais da metade do documento se preocupa com a constituição de um clero suficiente e de seus auxiliares leigos.

Medelín constitui o que  foi o verdadeiro “divisor de águas” na história da igreja do Continente, de tal modo que se pode falar do “antes de Medellín” e do “depois do Medellín”. Os bispos que fizeram aquela conferência estavam conscientes da importância histórica daquele momento. Na “Introdução às Conclusões” proclamam explicitamente uma “nova época da história” e a definem precisamente em termos de “libertação”:

“Estamos no umbral de uma nova época da história de nosso Continente. Época plena de um desejo de emancipação total, de libertação de qualquer servidão… Notamos aqui os prenúncio do parto doloroso de uma nova civilização…” (n. 4).

Desse modo, o que veio em seguida a Medellín na Igreja da AL foi influenciado de modo decisivo por aquela Conferência. A Assembléia de Puebla (1979) representou a confirmação das intuições fecundas de Medellín, amadurecidas que foram na década sucessiva. Aquilo que em Medellín era apenas esboçado, em Puebla é dito de maneira clara. Os traços que iriam definir em seguida o perfil teológico-pastoral da Igreja do continente, como veremos mais abaixo e que desde Puebla são chamados por todos e claramente de “opção pelos pobres”, “teologia da libertação” e “Comunidades Eclesiais de Base”, estão em Medellín bem presentes, mas aí não estão ainda claramente delineados e nem explicitamente designados.

Já Sto. Domingo (1992) – e esse foi seu mérito maior – pôs na agenda de nossas igrejas a questão precisa da sua identidade cultural. A partir de então fala-se de modo crescente, na necessidade de uma igreja “inculturada” dentro do pluralismo cultural do continente. Esse, na verdade, constitui um mosaico composto por culturas tão diversificadas, como são as indígenas, as negras, as neo-européias, as neo-orientais. Toda essa riqueza é chamada a entrar no que se poderia chamar de uma “igreja mestiça” ou de um “cristianismo moreno”.

As três marcas da identidade da Igreja latino-americana

Mas onde está no concreto o identikit da Igreja do Continente? A nosso ver, Medellín deu à nossa igreja os elementos essenciais, que, amadurecidos na década seguinte, até Puebla, configuraram as três instituições que se podem dizer próprias ou típicas da Igreja latino-americana, a saber: a Opção pelos Pobres, a Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base. Ora, basta enunciar essas três realidades para pensar imediatamente na Igreja da AL. Explicitemo-las a partir dos próprios Documentos de Medellín, que constituem as suas “razões seminais”.

1. Opção pelos pobres

Certamente, essa opção não é uma novidade absoluta na Igreja. Além de ter sido uma prática constante na história, embora sob formas várias e até desencontradas, ela tem fundamentos perfeitamente bíblicos. Mas foi um dos méritos (e não dos menores, antes, possivelmente o maior) da Igreja da América Latina ter desenterrado essa dimensão e ter dado um lugar de honra na teologia e na pastoral. Só por isso Igreja do Continente tornou-se credora da gratidão eterna não só dos pobres do mundo, mas também da parte da Igreja universal.

É certo que a idéia da “Igreja dos pobres” já tinha ressoado de modo potente na voz de João XXIII. Mais: o grande Cardeal Lercaro queria pôr todo o Concílio sob a consigna daquela proposta profética. Mas não foi ouvido, pelo menos de imediato e oficial. É o que fez Gustavo Gutiérrez dizer: “Os pobres bateram à porta do Concílio, mas não foram atendidos.” Da idéia de “uma Igreja de todos, mas especialmente dos pobres”, o que ficou nos documentos conciliares na verdade foi muito pouco, embora esse pouco seja de alto valor, como é o n. 8b da Lumen Gentium:

“Assim como Cristo consumou a obra da redenção na pobreza e na perseguição, assim a Igreja é chamada a seguir o mesmo caminho… Cristo Jesus… ‘despojou-se a si mesmo, tomando a condição de servo’ e por nossa causa ‘fez-se pobre embora fosse rico’, da mesma maneira a Igreja… não foi instituída para buscar a glória terrestre, mas para proclamar, também com seu próprio exemplo, a humildade e a abnegação.Cristo foi enviado pelo Pai para ‘evangelizar os pobres, sanar os contritos de coração’, ‘procurar e salvar o que tinha perecido’, semelhantemente a Igreja cerca de amor todos os fligidos pela fraqueza humana, reconhece mesmo nos pobres e sofredores a imagem de seu Fundador, pobre e sofredor. Faz o possível para mititar-hes a pobreza e nels procura servir a Cristo.”

 

Tudo se passou como se a Providência tivesse reservado à Igreja da AL a tarefa de desenvolver, em favor de toda a catolicidade, o que o Vaticano II apenas tinha pressentido. E é esse talvez o lado mais criativo da recepção desse Concílio pela Igreja do Continente. Eis a ilustração mais eloquente de uma das sementes conciliares que encontrou no Sul um terreno fecundo para se desenvolver e frutificar.

A opção pelos pobres implicou no distanciamento da Igreja frente ao Poder, com o qual estava amarrada desde séculos, para não dizer milênios, e a aproximação com os pobres. Segundo as palavras da própria Conferência, no belo Documento XIV: “Pobreza na Igreja”, os bispos pleiteiam por uma “Igreja livre de amarras temporais, conveniências e prestígio ambíguo” (n. 18) e que esteja “próxima dos pobres” (n. 9).

Mas, na ótica de Medellín, a opção pelos pobres, põe em causa, em primeiro lugar, não os próprios pobres, mas a própria igreja. Ela exige uma conversão à pobreza evangélica como forma de conversão aos pobres. A ideía de uma “igreja pobre” que São Francisco não conseguira fazer valer, conseguiu-o até certo ponto Medellín. O documento de Medellín sobre a pobreza foi nisso extremamente corajoso. Confessa:

“E chegam a nós as queixas de que a jerarquia, o clero, e os religiosos são ricos e aliados dos ricos. (…) Os grandes edifícios, as casas paroquiais e de religiosos, quando são de qualidade superior às do bairro em que vivem, os veículos, às vezes luxuosos, e a maneira de vestir herdada de outras épocas são fatores (que contribuem para criar a imagem de uma igreja jerárquica rica)” (n. 2). 

Por isso Medellín propõe a “pobreza como compromisso que se assume voluntariamente e por amor a condição dos necessitados deste mundo” (n. 4, c). Trata-se de um pobreza bem concreta: “Nossa morada e modo de vida sejam modestos, nosso modo de vestir simples… Desejamos renunciar a títulos honoríficos….” (n. 12). Portanto, fala-se aí, sem meias tintas, do “compromisso com a pobreza material”, mas num duplo espírito: o da “pobreza espiritual” e o da “denúncia da carência injusta dos bens deste mundo” (n. 5). Isso permitirá dizer, mais tarde, de modo lapidar: “opção pelos pobres, contra a pobreza”.

A Conferência de 1968 vai mais longe: fala também da possibilidade para alguns de “compartilharem a sorte dos pobres, vivendo com eles e trabalhando com suas mãos” (15). É o que mais tarde se iria chamar de “inserção nos meios populares”, para a qual Medellín estimula de modo todo particular os Religiosos e Religiosas, falando de “pequenas comunidades encarnadas realmente nos ambientes pobres” (n. 16).

Como vemos, o que depois iria se chamar com todas as letras “opção preferencial pelos pobres”, em Medellín vem enunciado de forma ainda geral, embora a proposta já apareça com todo o vigor em termos de “preferência efetiva pelos setores mais pobres” (n. 9). Aos Religiosos em particular se lembra a necessidade de “atender, educar, evangelizar e promover sobretudo as classes sociais marginalizadas” (Doc. XIII, n. 13, e).

Mas é preciso destacar que os pobres em Medellín são tratados como “sujeito”. E essa é a novidade da visão do pobre em relação à visão assistencialista do passado: a do pobre reduzido a “objeto” de cuidado. É o que ficará mais claro no tópico seguinte.

2. Teologia da libertação

Antes de existir como teoria teológica, a libertação foi uma prática pastoral e social. A Pastoral social dos inícios dos anos 60, testemunhada pelos Bispos proféticos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), pelos Leigos comprometidos da Ação Católica Brasileira (ACB) e pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), foram, por assim dizer, a “teologia da libertação em ato I”.

Vimos acima que a sensibilidade pela realidade de pobreza e de opressão do povo, assim como o método de analisar essa realidade à luz da Palavra de Deus – coisa que a Teologia da Libertação iria em seguida desenvolver e refinar – já eram um fato em Medellín. Efetivamente, o eixo central de seus documentos é a relação fé – vida. E é essa, na verdade, a quintessência do “novo modo de fazer teologia” que define a Teologia da Libertação.

A própria temática da “libertação” está bem presente em Medellín. Certo, ela coexiste com a de “desenvolvimento”, mas é a temática que emerge com mais vigor e é a mais rica de promessas. Já tinha sido lançada um ano, em 1967, por Gutiérrez em célebre conferência em Chimbote (Peru).

Quando lemos os dois documentos mais enérgicos do Medellín, precisamente o primeiro, sobre a “Justiça” e o segundo sobre a “Paz”, nota-se que todo o espírito da teologia da libertação está aí presente.

No Documento I, depois de descrever com cores vivas a “miséria que marginaliza grandes grupos humanos – miséria que, como fato coletivo, é uma injustiça que brada aos céus” (n. 1), o documento fala do Cristo que “liberta todos os homens de todas as escravidões” (n. 3); fala-se da “verdadeira libertação” que envolve uma “profunda conversão”; fala-se da “libertação integral” como ação da “obra divina” (n. 4) e que o amor é “a grande força libertadora da injustiça e opressão” (n.5).

Já o Documento II – sobre a “Paz” – é certamente o mais contundente de todos. Entra direto “in medias res”, dizendo que o “subdesenvolvimento latino-americano… é uma injusta situação promotora de tensões que conspiram contra a paz”(n. 1). Logo adiante fala em termos de “situação de injustiça” como “situação de pecado”, coisa que mais à frente é chamada cruamente de “violência institucionalizada” (n. 15). Toda a parte doutrinária do documento se centra na conexão entre a justiça e a paz. “Onde existem injustas desigualdades… aí se atenta contra a paz” (n. 14, a).

Nesse capítulo faz-se um diagnóstico extremamente ousado da situação social do continente: as “desigualdades” internas e outras formas de “opressão” são chamadas de “colonialismo interno” ( n. 2-7); e a “dependência” econômica e política de fora é chamado de “neocolonialismo externo” (n. 8-10).

Para o momento do “agir”, o Documento “Justiça”, entre outras coisas, se refere à “tarefa de conscientização”, ou seja, da “formação da consciência social” (n. 17). Por sua vez, o Documento “Paz” pede “transformações profundas” (n. 17), critica a omissão diante das injustiças a pretexto de apolitismo e, embora reconheça a legitimidade da “insurreição revolucionária”, inclina-se para uma ação pacífica (n. 19). “O cristão é pacífico…, mas não é pacifista, porque é capaz de combater. Prefere no entanto a paz à guerra” (n. 15). Isso dito é dito no contexto de insurreição revolucionária, que se alastrava por todo o Continente e ao mesmo tempo na situação de violenta repressão política.

Ademais, as “conclusões pastorais” do Documento “Paz” falam no imperativo de se “criar uma ordem social justa” (n. 20). Fala também nos “direitos dos pobres e oprimidos” (n. 22); na necessidade de “denunciar energicamente os abusos e… desigualdades excessivas entre ricos e pobres” (n. 23); e também na missão da Igreja de favorecer o povo para que “crie e desenvolva suas próprias organizações de base” (n. 27).

O Documento IV, relativo à “Educação” é um dos que explicitam de modo mais forte o tema da libertação. Sete vezes aparece aí a palavra “libertação”, “libertar” ou “libertador”. Há inclusive todo um parágrafo (n. 8) que explicita o conteúdo do que chama com todas as letras a “educação libertadora”. Define-a como a que “transforma o educando em sujeito de seu próprio desenvolvimento” e é vista como “o meio-chave para libertar os povos de toda escravidão” (n. 8). Impossível esconder aqui a forte influência da “Pedagogia do Oprimido” de Paulo Freire.

Não se há de perder de vista que a concepção medelliniana do processo de “libertação”, embora destacasse a urgência da dimensão social, nunca perdeu de vista o horizonte maior de sua integralidade. A “libertação integral”, portanto, compreende a libertação pessoal e espiritual, em breve, a dimensão que mais tarde se chamaria “libertação soteriológica”. Eis uma ilustração no documento apenas citado:

“Eis a educação libertadora necessária à América Latina para redimir-se das escravidões injustas e acima de tudo do seu próprio egoísmo. Eis a educação que nosso desenvolvimento integral exige” (Doc. IV, n. 8)

3. Comunidades Eclesiais de Base

As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), 3o. traço da Igreja do Continente, são o “dispositivo prático” em que se encarnam os dois traços anteriormente mencionados. Efetivamente, elas são fruto da “opção pelos pobres” feita pela Igreja do Continente e a instância operativa da Teologia da Libertação.

As CEBs nasceram logo nos inícios dos anos 60, portanto, antes de Medellín, mas essa Assembléia as legitimou e generalizou. De fato, pede-se aí que o CELAM “estude” o fenômeno, ainda recente, das “Comunidades cristãs de base” (Doc. XV, n. 32), as “divulgue” e “na medida do possível as coordene” (n. 12). O Documento XV, intitulado “Pastoral de Conjunto”, dedica todo um parágrafo (n. 10, 11 e 12) a esse “achado” pastoral latino-americano.

Para Medellín, a “Comunidade de base” é uma “comunidade local ou ambiental, que corresponde à realidade de um grupo homogêneo e que tenha uma dimensão tal que permita o trato pessoal fraterno entre seus membros”(n. 10). Trata-se do “primeiro e fundamental núcleo eclesial”, “célula de estruturação eclesial e foco de evangelização” e “fator primordial de promoção humana e desenvolvimento” (n. 10). A partir das “Comunidades Cristãs de Base” (é assim que então vêm chamadas), redefine a paróquia, que passa a ser “um conjunto pastoral unificador das Comunidades de base” (n. 13).

As CEBs aparecem em várias outras partes das Conclusões de Medellín, por exemplo, quando trata da “Pastoral popular” (Doc. VI), onde propõe a “formação do maior número possível de Comunidades Eclesiais…, que devem basear-se na Palavra de Deus e realizar-se, enquanto possível, na celebração eucarística…” (n. 13); da “Catequese” (Doc. VIII), onde afirma que essa tem que frutificar em “Comunidades Cristãs de Base, abertas ao mundo e nela inseridas” (n. 10); quando trata da “Liturgia” (Doc. IX), onde se recomenda a “celebração da Eucaristia em pequenos grupos e Comunidades de Base” (n. 12), etc.

Fechando

Hoje a problemática mundial sofreu mutações profundas. Assim, a Igreja retomou importantes imperativos da missão da Igreja, como: a recuperação da espiritualidade (e aí entra a “Renovação Carismática”), a “nova evangelização” (aí se situam as “missões populares”), a atenção às diferentes culturas (“inculturação”) e ainda outros.

O certo é que o problema dos “fundamentos” da missão social da Igreja, que era dado por descontado nos tempos de Medellín, já hoje não pode se simplesmente pressuposto, necessitando ser recolocado e novamente garantido em teologia, pastoral e mais ainda na espiritualidade, sob pena de se pôrem em risco os grandes ganhos acima apontados. De fato, sem assentar as bases – a fé em Cristo – ficam comprometidos tanto os “pobres”, como a “libertação” e as “comunidades”.

Seja como for, “o que está escrito” em Medellín “está escrito”. Com os Documentos de Medellín, reafirmados sobre seus fundamentos, a Igreja da AL certamente entrará no III Milênio bem acompanhada.

 Fonte: http://servicioskoinonia.org/relat/203p.htm

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