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As virtudes femininas da Romaria da terra. 41ª Romaria da Terra RS. Por Jacques Távora Alfonsin

Três virtudes tipicamente femininas inspiram a Romaria da Terra do Rio Grande do Sul deste ano de 2018.  Realizada, como sempre acontece, na terça feira de carnaval, dia 13 de fevereiro, terá como lema “resistência, cuidado e diversidade.”

Graças à resistência, a primeira dessas virtudes –  de lembrança extraordinariamente oportuna para o momento que o Brasil vive – os direitos civis e políticos, como o do voto, por  exemplo, e os sociais, como o da licença maternidade, não lhes foram reconhecidos de graça. Resultaram de campanhas organizadas por elas, durante décadas, ao custo de muito sofrimento, da humilhação e do deboche masculino, prevalentes na elaboração das leis, nas administrações públicas, nos tribunais e nos púlpitos.

Foram vencendo essas travas obscurantistas através da história, os preconceitos culturais e ideológicos que marcaram a imposição da superioridade machista, cujos desdobramentos ainda persistem hoje, em grande parte, como na persistência, para  muitas, em cumprirem dupla e até tripla jornada de trabalho;  de receberem salário de valor inferior ao dos homens, mesmo prestando trabalho igual ao deles; de suportarem a barreira da sua admissão ao emprego escondida em preferências sujeitas à beleza, ao seu endereço de residência, de etnia, de serem vítimas frequentes  de assédio sexual ou reduzidas a escravas por cafetões e traficantes, por exemplo.

A coragem de resistir a todo esse mal, entretanto, individual ou coletivamente, desde séculos passados, até hoje inspira mulheres de firme determinação e perseverança para enfrentar a opressão e a injustiça, até mesmo quando a violência se mostrou necessária, urgente e, por isso, legítima. Na bíblia lê-se: Judit degolou Holofernes, salvando o povo judeu da perseguição que ele liderava; Ester sabia do risco que ela, seu pai Mardoqueu e todo o seu povo corriam, pelas intrigas de Hamã, na corte do rei Assuero. Mesmo assim, também salvou seu povo, convencendo o rei a não se deixar influenciar por fofocas; por outro lado e outro tipo de violência, aqui no Brasil, se forem lembradas apenas algumas militantes da causa das/os sem-terra, o país não tem como pagar suas dívidas históricas a mulheres pobres e simples como Margarida Alves, Roseli Nunes, Dorothy Stang, entre tantas mártires que deram suas vidas em defesa do direito de acesso à terra de todo um povo que só vive de promessas constitucionais sucessivas mas jamais cumpridas.

E o que se dizer da virtude do cuidado? Como o ventre da terra, há um poder inapropriável na mulher, de fecundidade, de dignidade humana amorosa, incomparável, gratuita,  de parir novas vidas, de alimentar com seu próprio sangue e leite o gênero humano, doar-se sem reservas às gerações futuras.

Se a palavra patri-mônio é machista, nos fez entender o domínio sobre coisas, matri-mônio é de raiz feminina, materna, nos faz compreender melhor a razão de antecipar a condição essencial da reciprocidade amorosa entre os sexos, a alegria, a  fé, a esperança confiante e o  prazer da reproduzir a vida.

Alguém já disse que, em todas as línguas, não por acaso, a palavra mãe reproduz o primeiro gesto da/o recém nascida/o, buscando e sugando o leite no seio da mãe (madre em espanhol,, mama em italiano, mother em inglês, mère em francês, etc…), como se a natureza se encarregasse de mostrar que a sobrevivência da humanidade toda  nasce dessa alimentação, independentemente das pessoas e do lugar onde ela se dá,  à semelhança da terra como fonte de toda a vida.

As/os índias/os, diferentemente das/os brancas/os, compreenderam muito melhor a condição da terra como mãe (pacha mama). Ela e a gente toda sua filha, merecedoras do cuidado próprio do “bem viver”, totalmente incompatível com a submissão ao arbítrio e à ganância do agronegócio predador. Esse agride tanto a terra como a gente que tem direito de acesso a ela, confirmando, de modo inequívoco, a palavra do Papa Francisco, na encíclica Laudato Si, quando ele identifica a crise ambiental e a crise social como uma e a mesma realidade. A romaria da terra deste ano certamente vai lembrar essa lição, fortalecendo, empoderando a militância feminina em defesa dos direitos das mulheres.

Daí a íntima relação da virtude do cuidado com a da  diversidade. A cultura e a ideologia machista não discernem como as mulheres, respeitadas naturalmente as exceções, as diferenças próprias de um pluralismo de etnias, de condições de vida, de nacionalidade e de renda. Isso é bem melhor percebido por elas, inclusive quando a injustiça social é motivada por essas diferenças, bastando lembrar aqui o quanto gente pobre, quilombolas, índias/os, pardas/os, refugiadas/os, estrangeiras/os sem-terra e sem-teto, são discriminadas/os sem outras razões do que a do puro preconceito, e nelas quase sempre encontram a primeira compreensão e ajuda

Terra, verdade, justiça, paz, fidelidade, prudência, sabedoria, fé, esperança, caridade, são palavras femininas, nenhum sentido ou referência delas podendo ser cogitados sem o reconhecimento de sua permanente incompletude, aquilo que, especialmente na mulher, reflete a consciência da alteridade, da/o outra/o, da/o próxima/o, da necessidade de convivência fraterna, amorosa, permanente e constante. Tudo refletido em novos “partos”, novas mudanças de comportamento humano e de vida, outra palavra feminina.

Nada do que a romaria vai rezar, portanto, pensar, programar e estimular ao desejado e urgente agir, tem a ingenuidade de imaginar que as mulheres só sejam dotadas de virtudes e de nenhum defeito. O que parece motivar, porém, esse encontro tradicional e massivo de pessoas humanas este ano, lá em Rio de dentro, Mampituba, Rio Grande do Sul, é uma pretensão saudável de valorizar e homenagear um ser humano cuja história comprova ainda estar conquistando direitos humanos fundamentais sociais, mesmo à revelia da lei e do Estado, particularmente quando uma e outra, como acontece atualmente no Brasil, estão traindo o povo em função do qual devem a sua própria existência.

Fonte: www.domtotal.com

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