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Mãe Abadia e água suja com a XXII Romaria das Águas e da Terra de MG Por Gilvander Moreira

“Com a Mãe Abadia, as filhas e filhos e toda a natureza clamam em dores de parto!”

“Das águas sujas, em Romaria, na luta pela terra e pelas águas, fontes de vida!”.

De 1º a 15 de agosto de 2019, está acontecendo a 149ª Festa de Nossa Senhora da Abadia em Romaria, uma Nazaré brasileira de apenas 4 mil habitantes, na região do Alto Paranaíba, Arquidiocese de Uberaba, MG. Milhares de pessoas, romeiras e romeiros da Mãe Abadia, imbuídas de muita fé em Nossa Senhora da Abadia, marcham a pé 70, 80 ou até mais de 100 quilômetros para chegar aos pés da imagem da Mãe Abadia no Santuário em Romaria. Muita gente que não vai a pé se faz solidária dando apoio às pessoas que vão peregrinando ao longo das estradas. Pontos de apoio são organizados e uma rede de solidariedade se constitui oferecendo água, pão, café, suco, um aperto de mão, um sorriso, oração etc. Enquanto caminham, as pessoas devotas da Mãe Abadia vão rezando, meditando, refletindo sobre a vida e a realidade. Uns caminham pagando promessas por uma graça alcançada; outros simplesmente, para agradecer à Mãe Abadia.

Antes de se tornar município, em 1967, Água Suja era um distrito que acolhia anualmente a famosa Festa de Nossa Senhora da Abadia. O nome “água suja” faz referência à exploração de diamante na região que acabava por sujar e contaminar as águas. Atualmente se vê ao lado da cidadezinha de Romaria imensas pilhas de rejeitos de mineração de diamante que nos últimos anos têm causado uma imensa devastação ambiental: um córrego foi secado, quatro nascentes dizimadas, o lençol freático já foi atingido e o povo já sente a falta d’água e, pior, sua contaminação. Entre os maiores clamores do povo que vive em Romaria estão: a) a preocupação com a falta de água tratada, que ainda não é oferecida pela prefeitura e nem pela COPASA ; b) o adoecimento de muitas pessoas pela falta de água tratada e também pelo exagero de agrotóxicos usados nas lavouras do agronegócio na região; c) a devastação que a mineração está causando na região.

Informações históricas dizem que a origem da devoção a Nossa Senhora da Abadia no local que se tornou Água Suja e posteriormente cidade de Romaria iniciou com grupo de pessoas que, recrutadas para servir ao exército brasileiro, na guerra do Paraguai, se rebelaram e por objeção de consciência não aceitaram ir para a guerra contra um povo irmão. De fato, segundo Eduardo Galeano mostrou em livro, a guerra do Paraguai foi um “genocídio americano”. Ao contemplar que a imagem da Mãe Abadia era linda, a fé despertada gerou força interior para a rebeldia diante de um militarismo brasileiro que, vassalo dos interesses do Império inglês, se servia para subjugar o povo paraguaio que cultivava a democracia.

Dia 11 de agosto, durante Missa Sertaneja, celebrada na Praça diante do Santuário da Mãe Abadia, com a participação das comunidades rurais do município de Romaria e dos setores da Paróquia, foi feito o lançamento da XXII Romaria das Águas e da Terra do Estado de Minas Gerais, que acontecerá em Romaria, dia 10 de novembro próximo (2019), com o tema “Com a Mãe Abadia, as filhas e filhos e toda a natureza clamam em dores de parto!” e com lema: “Das águas sujas, em Romaria, na luta pela terra e pelas águas, fontes de vida!”.

Após a realização de dezenas de romarias da terra no Triângulo Mineiro, pela 1ª vez acontecerá Romaria das Águas e da Terra em nível de estado na Arquidiocese de Uberaba, e serão anfitriões o arcebispo Dom Paulo Peixoto e o padre Márcio Ruback, reitor do Santuário de Romaria. A Romaria das Águas e da Terra já está acontecendo em processo. A imagem de São Francisco de Assis, patrono da romaria, está peregrinando por paróquias e comunidades da arquidiocese de Uberaba. Nos mês de agosto, setembro e outubro, as comunidades de toda a arquidiocese de Uberaba, nos seus Grupos de Reflexão, serão convidadas a realizar seis Encontros/Roteiros Bíblicos a partir do Tema e do Lema da XXII Romaria. Serão abordados assuntos, tais como: A XXII Romaria das Águas e da Terra de MG e as monoculturas, o agronegócio, a mineração, a crise hídrica, a devastação ambiental, agroecologia, agricultura familiar, uso abusivo de agrotóxicos na agricultura brasileira e a organização popular, imprescindível na resistência diante de tantas amputações de direitos trabalhistas, previdenciários e sociais.
A XXII Romaria das Águas e da Terra de Minas Gerais tem como objetivo pastoral refletir, discutir e celebrar com as comunidades cristãs que lugar sagrado não são apenas os santuários e as catedrais e nem só padre, freira, pastor, bispo ou papa. A terra é sagrada, é mãe e é fonte de vida. “Água, fonte de vida” foi o tema da Campanha da Fraternidade de 2004. De fato, o “espírito de Deus está nas águas”, permeia e perpassa as águas, nos diz o segundo versículo da Bíblia. Portanto, se a humanidade continuar tratando terra e água como mercadorias, estará também acelerando o curso do fim da vida humana sobre o Planeta Terra, nossa única casa comum. Nas ondas da evolução, o Deus da vida criou toda a natureza para ser um jardim e quis que fôssemos jardineiros/as e cuidadores/ras da terra e das águas. O Paraíso terrestre não pode ser só uma coisa do passado, é preciso ser reconstruído. Entretanto, o sistema capitalista – máquina de moer vidas – insufla nas pessoas falsos valores, tais como o egoísmo, a concorrência e o acumular, o que reduz a terra e as águas a mercadorias e hipertrofia o direito de propriedade em detrimento do direito de posse dos territórios para usufruto. Realmente, com a instituição da propriedade privada dos meios de produção se instaurou um processo de confronto na dependência entre os seres humanos que passaram a viver em condições desiguais, forçados à divisão do trabalho.

No Discurso sobre a origem e fundamento da desigualdade entre os homens, Rousseau (1999) compreende a propriedade privada como causa de destruição da liberdade social e fonte de relações sociais de dominação na sociedade. Para Marcos Pereira dos Santos, interpretando Rousseau: “A propriedade privada introduz a desigualdade entre os homens, a diferença entre o rico e o pobre, o poderoso e o fraco, o senhor e o escravo, até a predominância do mais forte. O homem é corrompido pelo poder e esmagado pela violência” (SANTOS, 2013, p. 5). “O primeiro que, tendo cercado um terreno, atreveu-se a dizer: isto é meu, e encontrou pessoas simples o suficiente para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil” (ROUSSEAU, 1999, p. 203). Essa frase lapidar de Rousseau demonstra o verdadeiro início da propriedade mercantil da terra – capitalismo – através do processo de cercamento (enclosure, em inglês) de terras comuns e “os camponeses, assim privados de terras e não mais conseguindo se reproduzir enquanto tais, vieram a se tornar assalariados rurais ou urbanos” (PORTO GONÇALVES, 2004, p. 221), gerando uma sociedade capitalista, sociedade de classes com interesses antagônicos. “A terra deixava de ser uma provedora de alimento para ser uma reprodutora de capital” (MARÉS, 2003, p. 26). A terra não mais seria espaço da História, dos remédios, da vida dos seres humanos e de todos os seres vivos da biodiversidade. “A transformação da terra em propriedade privada foi um processo teórico, ideológico contrário à realidade, à sociedade e aos interesses das pessoas em geral, dos grupos humanos e dos povos, porque todos dependem da terra para viver” (MARÉS, 2003, p. 48).

Oxalá, sob a inspiração e proteção da Mãe Abadia, a mística e espiritualidade da XXII Romaria das Águas e da Terra de Minas Gerais cultive a rebeldia das primeiras pessoas que acolheram a imagem de Nossa Senhora da Abadia e com ela encontraram força para não ser cúmplices do genocídio americano que foi a Guerra do Paraguai. E contribua para se fortalecer as forças vivas da sociedade no sentido de resistir aos projetos devastadores socioambientalmente.

Referências.
MARÉS, Carlos Frederico. A função social da terra. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003.
PORTO GONÇALVES, Carlos Walter; CUIN, Danilo Pereira; LEAL, Leandro Teixeira; NUNES SILVA, Marlon. Geografia da riqueza, fome e meio ambiente: pequena contribuição crítica ao atual modelo agrário/agrícola de uso de recursos naturais. In: OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de; MARQUES, Marta Inez Medeiros (Orgs. ). O Campo no século XXI: território de vida, de luta e de construção da justiça social. São Paulo: Casa Amarela e Paz e Terra, p. 207-253, 2004.
ROUSSEAU, Jean Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

Belo Horizonte, MG, 13/8/2019.

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