Shadow

O PREGADOR MALUCO E A MORTE DE DEUS

Por Antonio Salustiano Filho*

Dormi[1] um sono profundo e sonhei que estava num lugar parecido com a Praça da Sé em São Paulo onde um desses pregadores anônimos pregava alto e em bom tom dizendo o seguinte: “Veja quanta miséria, quanta gente infeliz! Vocês mesmos, olhem para dentro de si e sintam a ausência de um sentido para continuar a viver com a decência e dignidade que o Criador os outorgou no ato da criação! Quantas frustrações, tristezas e infelicidades acumuladas no decorrer desse tempo que vai do dia, que vieram à luz até aqui e, para a maioria até o momento derradeiro, pois muitos vão continuar sendo o que são: NADA, NADA, NADA até que a morte os levem desta vida! Cada um dos que estão aqui é o protótipo ambulante da miséria humana, em marcha fúnebre para fim da espécie”, dizia ele.

Eu sempre tive ojerizas por esses pregadores ambulantes ou fixos, porém, aquele pregador e a sua conversa me fascinavam.  

Enquanto o pregador dava um tempo para retomar sua fala, eu, entre o estar intrigado por aquela situação e o misterioso fascínio pelo que inicialmente ouvia, concluí que aquelas palavras eram exatamente as de um discurso conhecido e relegado à zona do esquecimento onde deixamos tudo que possa ser um antídoto ao sistema. No auditório do pregador não tinha nenhuma outra figura que tivesse a mesma posição que eu, porém, aquele era um discurso que estava guardado dentro de mim. Talvez seja por isso meu encantamento por aquela fala. Uma espécie de narcisismo que se encanta com que vê porque o que está vendo é o reflexo de si.  

Fiquei observando e, no silêncio de um observador solitário, pensava e tecia conjecturas a respeito do tal pregador. O sujeito era, aparentemente, uma figura estranha, dessas que não merecem, sequer, um minuto do tempo de um “homem bem sucedido”. No entanto, ao ouvir suas primeiras palavras, percebi que era um sujeito inteligente.

As pessoas da rua a quem ele falava, com exceção de uns poucos, não lhe davam ouvidos. Afinal, nessa correria enfadonha, quem tem tempo para ouvir um pregador maluco que despeja em seus ouvidos os males que se têm e dos quais se quer livrar milagrosamente como mensagens abstratas de esperanças? Também quisera fazer o mesmo, dada minha aversão por qualquer tipo desses mensageiros/pregadores. No contexto da racionalidade que alimentava, esses tipos não passavam de vagabundos. Eram loucos que deveriam estar internados nos hospícios/sanatórios, excluídos da sociedade dos “normais” para não importunar a vida agitada e produtiva dos homens úteis à sociedade. Mas, o tal sujeito era a promessa de uma fala que eu desejava ouvir porque parecia ser ressonância do meu discurso silenciado em tempos de servidão.

 “O que há de comum entre eu e ele, para que eu gaste meu tempo ouvindo-o?” — perguntei a mim mesmo e ele, o pregador, ignorando minha inquietação, prosseguiu falando como sábio e adivinho:

“Não, não e não! Não pense que sou um vagabundo, desses que não têm compromisso com nada, além viver vadio de um pregador itinerante! Pelo contrário, sou um cidadão do mundo. Um sujeito cosmopolita em busca da concretização do desejo do ontológico de “ser mais” imprimido nas profundezas de cada uma das criaturas perdidas nesse anonimato coletivo de gente que caminha sem certeza para onde vai. Minha tarefa é contribuir para o resgate de seres humanos, mesmo que seja somente um, desses tantos que foram reduzidos a nada e, inconscientemente, ainda querem sair do seu estado de nulidade absoluta”.

“Tenho como missão — recomeçou — dizer aos insatisfeitos dessa sociedade de infelizes que há uma proposta de felicidade que foi esquecida em algum lugar do ser de cada sujeito infeliz dessa multidão. Posso até ser considerado um ser humano anormal igual aquele personagem da parábola de Nietzsche que corria pela praça da aldeia anunciando a morte de Deus. Este é o meu papel, anunciar a morte do Divino na balbúrdia de uma “civilização” que justifica tudo como vontade desse Deus que é o fundamento das razões de ser da humanidade. Estamos mortos porque acreditamos num Deus morto. Até o nosso Cristo é um Cristo morte pendurado numa cruz, ou um defunto dormindo num sepulcro fechado. Lembramos muito pouco que Ele ressuscitou”.

Eu lembrei da filosofia de Nietzsche em que o louco pregava a morte de Deus a uma gente que estava morta porque havia banido Deus da sua existência.

Na história do filósofo, o povo zombava do louco dizendo que Deus havia migrado, ou saído de viagem. E o louco então perguntava para onde Deus tinha ido. Como àquela gente não sabia lhe dizer, ele mesmo respondia, dizendo: “Deus está morto, porque nós O matamos, vocês e eu. Somos os assassinos de Deus” (Nietzsche, A Gaia Ciência, § 125).

“Pois bem — prosseguiu o pregador de meu sonho — isso se repete nos tempos atuais: Deus está morto! Você e essa multidão de alienados, juntamente com os pregadores de todas as religiões oficiais ou oficiosas mataram-No! Esse vazio que existe dentro de vocês é o lugar de Deus e que jamais será preenchido, pois as coisas com as quais pretendem preencher o vácuo sem Deus estão destituídas do sagrado[2].

Vejam o céu desta cidade! Não é mais o céu azul anil como era céu o da nossa infância. A fumaça dos escapamentos, das máquinas que circulam pelas ruas e  avenidas e das chaminés do progresso profanou o límpido e cristalino azul-celeste que nos encantava porque continha a presença do sagrado em sua pureza.

Vejam o ar que outrora o Criador soprou nas narinas do ser humano no ato da criação para lhes dar vida! Já não é mais o ar generativo do ato criador originário, a brisa sagrada sobre a qual Deus passeava no Jardim do Éden (Gn 3, 8), mas é um ar profanado com o veneno dos gases tóxicos produzidos pelo homem e que mata a vida sob todos os aspectos.

Vejam a água! Não é mais a água que corria pelos rios e riachos que banhavam o Éden (Gn 2, 10-14) e que também corria pelos rios e riachos da nossa terra nos tempos da nossa infância (para aqueles que viveram no campo) na qual banhávamos sem medo de contaminação.  Já não é mais a água pura cristalina, símbolo da fertilidade; água que mata a sede e faz florescer a vida das mais variadas espécies, mas uma água contaminada com todo tipo de dejetos que produzimos e que exala o cheiro da morte e mata os seres que nela habita.

Já não temos mais a exuberante natureza caracterizada pelas densas florestas onde a biodiversidade das espécies, fauna, flora e micro-organismos, simbolizavam o grande santuário da vida numa sinfonia universal com o Criador e o ser humano. Tudo foi reduzido, pelo agronegócio, a um deserto verde com poucas possibilidades de vida.

Vejam quantos produtos para o consumo! Mercadorias criadas e lançadas no mercado com o apelo ser bens destinado à felicidade dos que as consomem e que não faz ninguém feliz! Por quê? — indagou o pregador gritando para que sua indagação calasse profundo nas mentes dos ouvintes.

Ao grito indignado do pregador que sabia o que dizia, um silêncio perturbador invadiu o local. Aquele instante pareceu-me uma eternidade de angústia por não achar uma resposta que calasse a pergunta que ecoava pela imensidão do momento e do ser.

“Movidos pelo individualismo exacerbado de cada um de nós, matamos Deus em nossa aventura humana porque O expulsamos da nossa relação com a natureza e o universo. Inventamos um céu distante e inacessível e para lá despachamos Deus a quem invocamos em nossos rituais e celebrações aos gritos, porque um Deus-morto ou ausente não ouve.   

Deus é um Espírito de cooperação e amorosidade que perpassa todo o universo, inclusive nosso ser, mas nós, com a imbecilidade dos tempos modernos, O banimos de nossas vidas, da natureza e do universo. Tudo parece destituído de Deus! Dentro de cada um de nós não existe lugar para o sentimento amoroso e de cooperação. Tudo à nossa volta é fruto do desamor do ser humano. Cada conquista do homem, a maioria dos produtos inventados, quase tudo tem as marcas da morte de Deus, pois são coisas produzidas com a matéria prima extraída de forma predatória da natureza que demorou milhões de anos para produzi-la e com o sangue e suor do(a)s trabalhadore(a)s explorado(a)s pela ganância e retenção da mais-valia.”

“Matamos Deus quando destruímos a natureza em nome do progresso e do avanço tecnológico da ciência a serviço da morte e do lucro para poucos que esse processo promove. Matamos Deus quando emitimos toneladas de poluentes na atmosfera, nos solos e nos rios e oceanos. Matamos Deus quando fazemos, apoiamos e torcemos pela guerra que mata nossos semelhantes. Matamos Deus quando elegemos e, uma vez eleito, oramos, rezamos e mantemos governos psicopatas, negacionista e ‘genocidas’”.

“Estamos, talvez sem o saber, em guerra com o Criador. E essa guerra, de cunho androcêntrica com Deus começa com a natureza, nossa primeira experiência de relação com o Espírito Criador. Esquecemos, ou nunca soubemos que o ser humano não é o primeiro elo que se liga à Fonte Originária da Vida. Ele foi precedido por tudo que existe de bom e belo, obra da criação/evolução. O Ser humano apareceu por último, no ato derradeiro do processo de formação do universo e na história da vida. Isso diz as religiões e a ciência. O homem é a mais recente invenção do processo evolutivo e criativo” — falou.

Ao ouvir a história do louco que vaticinava a morte de Deus, um estado de perplexidade, fascínio, curiosidade, tristeza e esperança aninhava em meu ser. Era impossível ignorar o pregador e o que ele dizia. Um desejo estranho levou-me, pela primeira vez, a deixar de lado a racionalidade cartesiana e a interessar-me por aquele tipo falante e sua conversa.

Movido pelas lembranças de um discurso esquecido decidi ouvi-lo um pouco mais. As palavras do pregador pareciam ter ressonância na alma. Gostava da ideia de estar diante de um sábio, profeta, ou coisa que o valha. Alguém que parecia entender meu dilema naquele momento confuso da vida. Coincidência, ou não, o louco dizia o que eu precisava ouvir ou dizer, se não fosse servidor da sociedade que matava Deus.

O pregador percebendo-me, um ouvinte atento, continuou sua fala, desta feita, mais animado. Começava a ficar mais interessado no ele dizia. Por um instante senti-me um discípulo diante do mestre. Depois de julgá-lo um profeta inútil, eu era todo ouvido e deleitava-me com as palavras de sabedoria pronunciadas com a eloquência por aquele sujeito louco e sábio.

O pregador se dirigiu a mim e disse baixinho aos meus ouvidos: “Deus está morto para essa gente do mercado, para os pregadores das religiões institucionalizadas de todos os matizes que pregam um Deus distante das mazelas humanas e para aqueles que rezam, oram e louvam esse Deus morto. Para os que pensam segundo o sentimento do sagrado que subjaz dentro de cada um de nós, Deus está vivo e viverá na prática de uma religiosidade libertadora onde Ele se faz presente em cada criatura do universo. Pense nisso!” – Concluiu ele.

Quando o pregador terminou a sua preleção e retirou-se para falar a outro público, eu acordei. Aconselhava-me a razão cartesiana, potencializada pela ideologia dos tempos atuais, que devemos estar acordados e não acreditar nas utopias subjacentes no inconsciente coletivo, nas fantasias de nossos desejos subversivos adormecidos em algum lugar do ser e vindo à tona em nossos sonhos noturnos.

Porém, o discurso do pregador fazia eco em minhas entranhas. Retornaremos ao assunto.

*ANTONIO SALUSTIANO FILHO, advogado, ambientalista e militante dos movimentos sociais e das CEBs.


[1] Estou escrevendo na primeira pessoa de um personagem fictício e anônimo que criei para contar uma história.

[2] Sagrado aqui não é no termo metafísico, distante, inacessível, coisa de santo, na velha concepção de santidade. Sagrado aqui é tudo aquilo que é verdadeiramente humano e imanente e traz em si o sinal de Deus.

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