Para Deus não há marginalizados, excluídos, indignos, desclassificados…, há homens e mulheres – todos seus filhos, independentemente da cor da pele, da nacionalidade, da classe social – a quem Ele ama, a quem Ele quer oferecer a salvação e a quem Ele convida para trabalhar na sua vinha.
25º DomTempo Comum – Mt 20, 1-16a-Ano A-24-09-17
Certamente, essa parábola serviu para clarear a posição que vocês e Jesus tomaram com relação aos não judeus. Na Bíblia, “a vinha” é uma imagem clássica do povo de Deus e da obra que Deus faz conosco (cf. Isaías 5,1-7 e Salmo 80,9-17).
Nessa história, os “operários que trabalharam o dia inteiro na lavoura” significam o povo judeu. Os trabalhadores da última hora são os não judeus, os povos (goyim) da gentilidade. Para nós, que vivemos num país no qual ainda é normal o trabalho diário dos assalariados volantes (boias-frias), parece familiar o fato de Jesus e vocês descreverem a realidade social da Judeia como sendo de desemprego e de trabalhos por contrato diário.
Conhecemos ainda hoje essa realidade de pessoas sem emprego, aceitando qualquer oferta que lhe façam. Diferente é esse patrão que age completamente fora das leis sociais vigentes em qualquer sociedade. A maioria dos comentadores chama essa história de “parábola dos trabalhadores da vinha“. No entanto, um título mais adequado seria “Parábola do patrão original ou diferente“.
A parábola é sobre o comportamento dele. Todo o problema para os primeiros contratados é que ele, além de começar a pagar pelos últimos, iguala-os aos primeiros que suportaram o peso e o calor do dia. A parábola é sobre “os direitos” iguais que todas as pessoas têm diante do convite de Deus e da recompensa que ele promete.
O que os judeus retratados na parábola não aceitam é que “ele os equiparou a nós“. No tempo de Mateus, o Talmud já dizia:
“um pagão que retorna ao Senhor é maior do que o sumo-sacerdote do santuário” (*).
O judaísmo oficial aceitava com tranquilidade que os pagãos podem ser salvos, e que Deus oferece os bens da Aliança a todas as pessoas e povos. Isso, os rabinos aceitavam sem problemas. Mas, não podiam compreender a igualdade de condições entre Israel e os gentios. Paulo e até mesmo Jesus diziam claramente:
“primeiramente os judeus e depois os outros” (Marcos 7,27; Romanos 1,16; 2,9).
Aqui, no entanto, Jesus dá um passo adiante e diz que Deus começa pelos últimos e dá a estes o mesmo que dá aos primeiros. Os rabinos diziam que:
“quando Deus promulgou a Torá, ofereceu-a a todas as nações (goyim) e somente Israel a aceitou. Por isso, cada israelita tem tanta importância para Deus quanto têm todos os outros povos do mundo. Todos os dias, o judeu piedoso deve agradecer a Deus por não ter nascido ‘goyim’. Só Israel foi capaz de observar a lei”.
Na própria tradição bíblica, os profetas já insistiam na universalidade do amor de Deus e na igualdade de todos perante o Senhor. Em nome de Deus, o profeta Amós chega a dizer:
“Por acaso, não sois vós para mim, filhos de Israel, iguais aos filhos dos etíopes? Acaso, não fiz subir Israel da terra do Egito, do mesmo modo como fiz os filisteus virem de Caftor e os sírios de Quir?” (Amós 9,7). De fato, “Deus não faz acepção de pessoas e não aceita suborno” (Deuteronômio 10,17).
Hoje, numa sociedade marcada pela desigualdade social, essa parábola não deixa de lembrar-nos que Deus propõe igualdade. O fato é que, mesmo no plano social, se não se aceita partir dos últimos e dar a eles tanto quanto aos que são considerados “primeiros“, nunca haverá justiça. Pergunta à comunidade de Mateus:
Será que vocês se inspiraram numa parábola do Talmud e a puseram na boca de Jesus, o rabino da comunidade cristã?
(*) Eis a parábola do Talmud
(são as tradições e os comentários, complementares às Escrituras judaicas, escritos nos anos entre 200 a.E.C. e 500 E.C.):
“Um rei contratou muitos operários. Um deles teve dificuldade de suportar o trabalho. O rei o levou para passear com ele. Quando chegou a tarde, os operários vieram receber o salário e o rei pagou ao operário que tinha passeado tanto quanto aos outros. Estes se queixaram dizendo: “Trabalhamos o dia inteiro enquanto este só trabalhou duas horas e lhe dás um salário completo como a nós”. O rei respondeu: “Este se cansou em duas horas mais do que vocês durante todo o dia” (Jr. Berkhot II, 8, 5c 83).
De qualquer modo, Jesus não favorece qualquer interpretação no sentido dos rabinos de que o motivo do senhor igualar os salários é o fato de que os últimos se cansaram em menos tempo tanto quanto os primeiros. Jesus insiste que Deus faz isso de graça e não pelo mérito dos operários.
A liturgia do 25º Domingo do Tempo Comum convida-nos a descobrir um Deus cujos caminhos e cujos pensamentos estão acima dos caminhos e dos pensamentos dos homens, quanto o céu está acima da terra. Sugere-nos, em consequência, a renúncia aos esquemas do mundo e a conversão aos esquemas de Deus.
A primeira leitura pede aos crentes que voltem para Deus. “Voltar para Deus” é um movimento que exige uma transformação radical do homem, de forma a que os seus pensamentos e ações reflitam a lógica, as perspectivas e os valores de Deus.
O Evangelho diz-nos que Deus chama à salvação todos os homens, sem considerar a antiguidade na fé, os créditos, as qualidades ou os comportamentos anteriormente assumidos. A Deus interessa apenas a forma como se acolhe o seu convite. Pede-nos uma transformação da nossa mentalidade, de forma a que a nossa relação com Deus não seja marcada pelo interesse, mas pelo amor e pela gratuidade.
A segunda leitura apresenta-nos o exemplo de um cristão (Paulo) que abraçou, de forma exemplar, a lógica de Deus. Renunciou aos interesses pessoais e aos esquemas de egoísmo e de comodismo, e colocou no centro da sua existência Cristo, os seus valores, o seu projeto.
EVANGELHO – Mt 20,1-16a
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus
Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos a seguinte parábola: «O reino dos Céus pode comparar-se a um proprietário, que saiu muito cedo a contratar trabalhadores para a sua vinha. Ajustou com eles um denário por dia e mandou-os para a sua vinha.
Saiu a meio da manhã, viu outros que estavam na praça ociosos e disse-lhes: ‘Ide vós também para a minha vinha e dar-vos-ei o que for justo’. E eles foram. Voltou a sair, por volta do meio-dia e pelas três horas da tarde, e fez o mesmo.
Saindo ao cair da tarde, encontrou ainda outros que estavam parados e disse-lhes: ‘Porque ficais aqui todo o dia sem trabalhar?’ Eles responderam-lhe: ‘Ninguém nos contratou’. Ele disse-lhes: ‘Ide vós também para a minha vinha’. Ao anoitecer, o dono da vinha disse ao capataz: «Chama os trabalhadores e paga-lhes o salário, a começar pelos últimos e a acabar nos primeiros’. Vieram os do entardecer e receberam um denário cada um.
Quando vieram os primeiros, julgaram que iam receber mais, mas receberam também um denário cada um. Depois de o terem recebido, começaram a murmurar contra o proprietário, dizendo: ‘Estes últimos trabalharam só uma hora e deste-lhes a mesma paga que a nós, que suportámos o peso do dia e o calor’.
Mas o proprietário respondeu a um deles: ‘Amigo, em nada te prejudico. Não foi um denário que ajustaste comigo? Leva o que é teu e segue o teu caminho. Eu quero dar a este último tanto como a ti. Não me será permitido fazer o que eu quero do que é meu? Ou serão maus os teus olhos porque eu sou bom?’ Assim, os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos».
No texto que nos é proposto, Jesus continua a instruir os discípulos, a fim de que eles compreendam a realidade do Reino e, após a partida de Jesus, a testemunhem. Trata-se de mais uma “parábola do Reino”. O quadro que a parábola nos apresenta reflete bastante bem a realidade social e económica dos tempos de Jesus. A Galileia estava cheia de camponeses que, por causa da pressão fiscal ou de anos contínuos de más colheitas, tinham perdido as terras que pertenciam à sua família. Para sobreviver, esses camponeses sem terra alugavam a sua força de trabalho. Juntavam-se na praça da cidade e esperavam que os grandes latifundiários os contratassem para trabalhar nos seus campos ou nas suas vinhas. Normalmente, cada “patrão” tinha os seus “clientes” – isto é, homens em quem ele confiava e a quem contratava regularmente. Naturalmente, esses trabalhadores “de confiança” recebiam um tratamento de favor. Esse tratamento de favor implicava, nomeadamente, que esses “clientes” fossem sempre os primeiros a ser contratados, a fim de que pudessem ganhar uma “jorna” completa (um “denário”, que era o pagamento diário habitual de um trabalhador não especializado).
A parábola refere-se, portanto, a um dono de uma vinha que, ao romper da manhã, se dirigiu à praça e chamou os seus “clientes” para trabalhar na sua vinha, ajustando com eles o preço habitual: um denário. O volume de tarefas a realizar na vinha fez com que este patrão voltasse a sair a meio da manhã, ao meio-dia, às três da tarde e ao cair da tarde e que trouxesse, de cada vez, novas levas de trabalhadores. O trabalho decorreu sem incidentes, até ao final do dia.
Ao anoitecer, os trabalhadores foram chamados diante do senhor, a fim de receberem a paga do trabalho. Todos – quer os que só tinham trabalhado uma hora, quer os que tinham trabalhado todo o dia – receberam a mesma paga: um denário. Contudo, os trabalhadores da primeira hora (os “clientes” habituais do dono da vinha) manifestaram a sua surpresa e o seu desconcerto por, desta vez, não terem recebido um tratamento “de favor”.
A resposta final do dono da vinha afirma que ninguém tem nada a reclamar se ele decide derramar a sua justiça e a sua misericórdia sobre todos, sem excepção. Ele cumpre as suas obrigações para com aqueles que trabalham com ele desde o início; não poderá ser bondoso e misericordioso para com aqueles que só chegam no fim? Isso em nada deveria afetar os outro.
Muito provavelmente, a parábola serviu primariamente a Jesus para responder às críticas dos adversários, que O acusavam de estar demasiado próximo dos pecadores (os trabalhadores da última hora). Através dela, Jesus mostra que o amor do Pai se derrama sobre todos os seus filhos, sem excepção e por igual. Para Deus, não é decisiva a hora a que se respondeu ao seu apelo; o que é decisivo é que se tenha respondido ao seu convite para trabalhar na vinha do Reino. Para Deus, não há tratamento “especial” por antiguidade; para Deus, todos os seus filhos são iguais e merecem o seu amor.
A parábola serviu a Jesus, também, para denunciar a concepção que os teólogos de Israel tinham de Deus e da salvação. Para os fariseus, sobretudo, Deus era um “patrão” que pagava conforme as ações do homem. Se o homem cumprisse escrupulosamente a Lei, conquistaria determinados méritos e Deus pagar-lhe-ia convenientemente. Segundo esta perspectiva, Deus não dá nada; é o homem que conquista tudo. O “deus” dos fariseus é uma espécie de comerciante, que todos os dias aponta no seu livro de registos as dívidas e os créditos do homem, que um dia faz as contas finais, vê o saldo e dá a recompensa ou aplica o castigo.
Para Jesus, no entanto, Deus não é um contabilista, sempre de lápis na mão a fazer as contas dos homens para lhes pagar conforme os seus merecimentos; mas é um pai, cheio de bondade, que ama todos os seus filhos por igual e que derrama sobre todos, sem excepção, o seu amor.
A parábola foi, depois, proposta por Mateus à sua comunidade (provavelmente a comunidade cristã de Antioquia da Síria) para iluminar a situação concreta que a comunidade estava a viver com a entrada maciça de pagãos na Igreja. Alguns cristãos de origem judaica não conseguiam entender que os pagãos, vindos mais tarde, estivessem em pé de igualdade com aqueles que tinham acolhido a proposta do Reino desde a primeira hora. Mateus deixa, no entanto, claro que o Reino é um dom oferecido por Deus a todos os seus filhos, sem qualquer excepção. Judeus ou gregos, escravos ou livres, cristãos da primeira hora ou da última hora, todos são filhos amados do mesmo Pai. Na comunidade de Jesus não há graus de antiguidade, de raça, de classe social, de merecimento, dom de Deus destina-se a todos, por igual.
Conclusão: A parábola convida-nos a perceber que o nosso Deus é o Deus que oferece gratuitamente a salvação a todos os seus filhos, independentemente da sua antiguidade, créditos, qualidades ou comportamentos. Os membros da comunidade do Reino não devem, por isso, fazer o bem em vista de uma determinada recompensa, mas para encontrarem a felicidade, a vida verdadeira e eterna.
- O texto deixa claro que o Reino de Deus (esse mundo novo de salvação e de vida plena) é para todos sem excepção. Para Deus não há marginalizados, excluídos, indignos, desclassificados… Para Deus, há homens e mulheres – todos seus filhos, independentemente da cor da pele, da nacionalidade, da classe social – a quem Ele ama, a quem Ele quer oferecer a salvação e a quem Ele convida para trabalhar na sua vinha. A única coisa verdadeiramente decisiva é se os interpelados aceitam ou não trabalhar na vinha de Deus. Fazer parte da Igreja de Jesus é fazer uma experiência radical de comunhão universal.
- Todos têm lugar na Igreja de Jesus, mas todos terão a mesma dignidade e importância? Jesus garante que sim. Não há trabalhadores mais importantes do que os outros, não há trabalhadores de primeira e de segunda classe. O que há é homens e mulheres que aceitaram o convite do Senhor – tarde ou cedo, não interessa – e foram trabalhar para a sua vinha. Dentro desta lógica, que sentido é que fazem certas atitudes de quem se sente dono da comunidade porque “estou aqui há mais tempo do que os outros”, ou porque “tenho contribuído para a comunidade mais do que os outros”? Na comunidade de Jesus, a idade, o tempo de serviço, a cor da pele, a posição social, a posição hierárquica, não servem para fundamentar qualquer tipo de privilégios ou qualquer superioridade sobre os outros irmãos. Embora com funções diversas, todos são iguais em dignidade e todos devem ser acolhidos, amados e considerados de igual forma.
- O texto denuncia ainda essa concepção de Deus como um “negociante”, que contabiliza os créditos dos homens e lhes paga em consequência. Deus não faz negócio com os homens: Ele não precisa da mercadoria que temos para Lhe oferecer. O Deus que Jesus anuncia é o Pai que quer ver os seus filhos livres e felizes e que, por isso, derrama o seu amor, de forma gratuita e incondicional, sobre todos eles. Sendo assim que sentido fazem certas expressões da vivência religiosa que são autênticas negociatas com Deus (“se tu me fizeres isto, prometo-te aquilo”; “se tu me deres isto, pago-te com aquilo”)?
- Entender que Deus não é um negociante, mas um Pai cheio de amor pelos seus filhos, significa também renunciar a uma lógica interesseira no nosso relacionamento com ele. O cristão não faz as coisas por interesse, ou de olhos postos numa recompensa (o céu, a “sorte” na vida, a eliminação da doença, o adivinhar a chave da lotaria), mas porque está convicto de que esse comportamento que Deus lhe propõe é o caminho para a verdadeira vida. Quem segue o caminho certo, é feliz, encontra a paz e a serenidade e colhe, logo aí, a sua recompensa.
- Com alguma frequência encontramos cristãos que não entendem porque é que Deus ama e aceita na sua família, em pé de igualdade com os filhos da primeira hora, esses que só tardiamente responderam ao apelo do Reino. Sentem-se injustiçados, incompreendidos, ciumentos, invejosos e condenam, mais ou menos veladamente, essa lógica de misericórdia que, à luz dos critérios humanos, lhes parece muito injusta. Na sua perspectiva, a fidelidade a Deus e aos seus mandamentos merece uma recompensa e esta deve ser tanto maior quanto maior a antiguidade e a qualidade dos “serviços” prestados a Deus. Que sentido faz esta lógica à luz dos ensinamentos de Jesus?
Por Marcelo Barros
Enviado por Magda Mello – GT Comunicação das CEBs do Brasil Regional Leste
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