ESTA TERRA É NOSSA! VI ENCONTRÃO DA TEIA DE POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS DO MARANHÃO

 Por Ana Mendes, colaboração para a Assessoria de Comunicação – Cimi | De Cidade de Brejo, Maranhão Choveu a cântaros no dia 26 de maio no Quilombo Alto Bonito, Cidade de Brejo, no Maranhão. “O dia amanheceu mais leve”, comenta feliz um indígena que teve o sono interrompido por causa do temporal na madrugada. Mais leve o dia, mais forte o tecido da Teia de Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão que realizou o VI Encontrão de Povos e Comunidades Tradicionais entre os dias 25 e 28 de maio de 2017, sob o tema “Não estamos extintos, estamos de pé, em luta. Essa terra é nossa!”. A Teia Maranhense, formada oficialmente em 2013, tem o intuito de discutir demandas comuns às diversas populações tradicionais do estado. O Encontrão que acontece semestralmente conta, por enquanto, com a articulação de camponeses, sertanejos, quilombolas, indígenas, geraizeiros, pescadores artesanais, quebradeiras de coco e povo de terreiro. Possuem, respectivamente, suas próprias teias. O movimento tem um caráter pioneiro no Brasil, ao menos outros quatro estados brasileiros já têm composições neste mesmo formato, como por exemplo a Bahia e o Sergipe. A tendência é crescer. O nome do grupo é autoexplicativo: os povos e comunidades são os fios de uma teia tridimensional. Fios entrecruzados, compartilhando pontos em comum, mas mantendo trajetórias autônomas. A ‘diferença’ é a essência das teias. Entretanto, há muito em comum entre as cerca de 600 pessoas reunidas no Quilombo Alto Alegre. A principal delas é o combate ao modelo desenvolvimentista imposto aos territórios tradicionais pelo binômio Capital-Estado. Conforme o relatório da Comissão Pastoral da Terra (CPT) com dados sistematizados de 2016 – lançado neste mês de maio – houve 194 conflitos no campo maranhense. O estado lidera este ranking há pelo menos seis anos. O número de ameaçados de morte atingiu a marca de 72 casos. A violência inerente a estes dados decorre da impossibilidade de acesso ao território. A proteção oferecida por parte dos órgãos governamentais durante os ataques é parca – e até mesmo nula em alguns casos. O recente massacre sofrido pelo povo AkroáGamella, no município de Viana, reforça tal argumento: 22 indígenas gravemente feridos, uns com requinte de crueldade, sob o olhar passivo da Polícia Militar.   Além disso, no caso dos Gamella, a ausência do Estado é ampla: o procedimento demarcatório está parado na qualificação de demanda, não há atendimento de saúde e educação diferenciadas e os indígenas acessam apenas políticas públicas assistenciais comuns à sociedade envolvente. Izabel Gamella conta: “A gente está se organizando do nosso jeito. A Funai vai lá, dá doação e pronto esquece de nós. O que a Funai deveria fazer é dar andamento. Várias denúncias a gente já fez, vários boletins de ocorrência nós já registramos, mas eles esperaram acontecer o massacre pra poder aparecer. E se a gente tivesse morrido? Não é que a gente não tenha medo, mas recuar agora seria dizer: estamos no fundo da sepultura”.  A Teia, portanto, serve também como proteção coletiva, apoio e reforço aos povos ameaçados física e simbolicamente. Conforme Chico Severo, pedagogo e camponês da Comunidade Santo Antônio, de Pedro Rosário, o importante da Teia é que “aqui não se identifica o sujeito. O quilombola, o trabalhador rural e o indígena é um conjunto de gente de todas as categorias. Para você trabalhar a abelha tem que conhecer a rainha. Sem identificar o sujeito, a gente poupa vida. Aqui não se conhece nem o zangão nem a rainha”.

Esta edição do encontro foi premiada com a presença de Osmarino Amâncio (na foto ao lado/crédito: Ana Mendes), líder seringueiro que ao lado de Chico Mendes lutou pela sobrevivência da Floresta Amazônica. Osmarino vive no Acre e completou 60 anos de vida em terras maranhenses, durante o encontro. Ele veio com a missão de ver de perto a mobilização da Teia que, para ele, se assemelha à união dos povos da floresta no período em que cerca de 40 mil pessoas foram expulsas dos seringais por projetos madeireiros e pecuários. “Nós perdemos lá nessa guerra 172 pessoas que foram assassinadas. Foram incendiadas 3.992 casas no meio daquela floresta. Foram expulsas milhares de pessoas pra Bolívia e pessoas para as periferias do estado do Acre, mas esse povo se levantou contra tudo isso. A casa do meu pai foi incendiada 3 vezes. Eu sobrevivi a seis atentados. Se eu tirar minha blusa vocês vão ver as marcas de toda aquela luta”, diz. A violência empregada contra os seringueiros e demais lutadores levou a mortes, caso do assassinato de Chico Mendes, em 22 de dezembro de 1988 na cidade de Xapuri.    Com tamanha experiência, Amâncio ressalta que não adianta “a gente fazer um encontro belíssimo desse e deixar o Inaldo [Gamella] ser assassinado. Nós lá dissemos chega de velório, chega de missa e de a gente levar pras estatísticas os companheiros e a gente ver eles tombando. A gente não tinha força política, não tinha entidade sindical, associação, cooperativa e mesmo assim esse povo pra defender seu território se juntou e disse: É muito melhor a gente morrer no enfrentamento do que morrer ajoelhado na cidade pedindo esmola”.

Teias compartilhadas Não apenas do Acre, mas também da Bahia se deslocaram representantes de povos e comunidades tradicionais. A Teia baiana enviou integrantes para o Encontrão dando seguimento às articulações entre as experiências. Em abril, representantes da Teia maranhense estiveram em Porto Seguro e na Terra Indígena Tupinambá de Olivença, próxima a Ilhéus, por ocasião de um encontro de agroecologia. Na aldeia Serra do Padeiro, ouviram a experiência de indígenas ameaçados, que contabilizam parentes assassinados, sofreram tortura e todo tipo de viol6encia estatal. O agricultor Joelson Ferreira, que veio acompanhado do cacique Nailton Pataxó Hã-hã-hãe, vive no Assentamento Terra Vista, em Arataca, na Bahia, pontua a importância da terra livre: “Para o quilombola viver, o latifúndio tem que morrer. Dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço. O transgênico, por exemplo, vai ter um dia que ninguém mais vai conseguir colher. E o agrotóxico vai matar nossas áreas, nossos rios. Você tem coragem de envenenar a sua mãe? A terra é nossa mãe. E quem sabe disso muito bem é o povo indígena e o povo preto. A terra não é nossa, estamos aqui de passagem”. Guiada pelo princípio do Bem Viver, a Teia acredita que com base na educação, agroecologia e espiritualidade pode-se construir modelos de vida que garantam autonomia e soberania alimentar. Um pensamento que perpassa a atuação das experi6encia em Teia país afora. Cacique Nailton Pataxó Hã-hã-hãe afirma que os povos e comunidades tradicionais precisam plantar. Para a experiente liderança, o problema de todo o dia é a comida – inclusive para que os grupos estejam preparados para os desafios da luta pela terra.   “Temos que estar preparados. Porque do jeito que está andando as coisas no país é o caminho de uma revolução. E guerra não é brincadeira. Esse encontro aqui é o caminho que nós temos para iniciar uma nova cara de luta. Isso que está acontecendo aqui é muito rico. Vamos nos preparar para dar uma resposta pra as pessoas que fizeram aquilo com os Gamella. O que fizeram com eles hoje, fazem amanhã com qualquer um de nós. Vamos nos organizar”, enfatiza cacique Nailton.

Experiências de vida

Entre trocas e toques de sementes e tambor, rezas e danças/rituais algumas experiências positivas nas terras tradicionais foram apresentadas. O projeto de educação do Quilombo Nazaré, em Serrano do Maranhão, é um exemplo de mudança metodológica que deu certo por persistência de professores e integrantes das comunidades. Em 2014, eles impediram que as crianças do 6º ano saíssem do território para estudar na cidade. Quatro professores quilombolas fundaram uma turma e começaram a trabalhar, sem salários, colocando em prática a lei 11.645, que inclui o conteúdo de história afro e indígena no currículo. Um ano depois, o município os contratou. “A gente tem que se impor, e não ficar com medo, para desconstruir a ideologia racista dos livros didáticos. Esses livros ferem a nossa cultura”, afirma Gil Quilombola. Ao final do encontro, foi aprovada uma moçâo de repudio ao massacre de dez trabalhadores rurais,  no município de Pau D’arco (PA), ocorrido em 24 de maio, na fazenda Santa Luzia, assassinados pelas polícias Militar e Civil que ainda deixou dezenas de feridos. Além da moção, os participantes leram a Carta Final do VI Encontrão da Teia. Confira a carta na íntegra:     VI ENCONTRÃO DA TEIA DE POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS DO MARANHÃO   Território Quilombola Alto Bonito, 25 a 28 de maio de 2017. DOCUMENTO FINAL “NÃO ESTAMOS EXTINTOS. ESTAMOS DE PÉ, EM LUTA. ESTA TERRA É NOSSA! Nós, povos indígenas AkroáGamella, Krenyê, Krikati, Gavião, KrepymKatejê, Pataxó HãHãHãe da Bahia, comunidades quilombolas, quebradeiras de coco, sertanejos, geraizeiros, pescadores artesanais, ribeirinhos, camponeses e seringueiros do Acre, com o apoio solidário e militante da Comissão Pastoral da Terra/CPT, do Conselho Indigenista Missionário/CIMI, do Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco/MIQCB, Irmãs de NotreDame, Movimento de Comunidades Populares/MCP, Teia de Povos da Bahia, Diocese de Brejo, Núcleo de Estudos e Pesquisa em questão Agrária/NERA, CSP Conlutas, Coletivo Nódua, Centro de Defesa de Açailândia, Grupo de Estudo em Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente/GEDMMA, Núcleo de Estudos Geográficos/UFMA, Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia/Campus Pinheiro, Rede de Agroecologia do Maranhão/RAMA, nos reunimos no território quilombola Alto Bonito, Brejo/MA, nos dias 25 a 28 de maio de 2017, para o VI Encontro da Teia de Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão. Bebendo da experiência dos seringueiros de Xapuri (Acre), dos povos da Bahia, e dos muitos relatos da nossa gente, afirmamos a nossa autonomia na segurança, na educação, na produção, na autogestão e no Bem Viver! Denunciamos o modelo de desenvolvimento que tem se perpetuado no Brasil, explorador e concentrador de riquezas que, para alcançar o máximo de exploração da natureza precisa negar nossa existência, nossa cultura e nossos modos de vida, atuando violentamente no extermínio de povos e comunidades, como ocorrera com camponeses em Colniza no Mato Grosso, com o Povo Akroá-Gamella no Maranhão e com os camponeses em Pau D’arco, no Pará. Reafirmamos a luta no enfrentamento com o agro-hidro-minero-negócio, o Parque Eólico nos Lençóis Maranhenses, gaúchos, fazendeiros, madeireiros, empresas nacionais e internacionais (mineradora Vale, Suzano Papel e Celulose S. A., WPR Gestão de Portos e Logísticas de São Luís, WTorre, Grupo Maratá, Grupo FC Oliveira, e outras). Nossos inimigos contam o aparato do Estado brasileiro, tais como o Executivo, Legislativo e Judiciário, o ICMBio, em todas suas esferas, além do braço armado do Estado – Polícia Militar, Civil e Federal -, que historicamente são instrumentos de repressão de nossos povos e a criminalização de nossas lutas, além da uso permanente de jagunços e pistoleiros. Reafirmamos os princípios do Bem Viver, que passa pela retomada dos nossos territórios, da nossa autonomia, pela garantia da soberania alimentar, manutenção da nossa cultura e modo de vida.  Nossa força vem dos encantados, vem dos nossos antepassados, vem dos nossos mártires, de sentir a força da mãe-terra quando pisamos em nosso chão. É uma força que jamais será silenciada, que permanece sempre viva quando nos encontramos e nos sentimos. A partilha das experiências de insurgências alimenta o nosso espírito e reafirma a luta pela terra e pelo território e os laços entre povos estabelece novos vínculos históricos de resistência. Esse governo que está destruindo o Brasil não nos representa! Fora Temer! Fora todos eles!

 ESTA TERRA TEM DONO! (Sepé Tiaraju)

 Quilombo Alto Bonito, Brejo dos Maypurá, 28 de maio de 2017 fonte:http://cimi.org.br