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A Guerra Camponesa do Contestado- Desafios da resistência. Estudar o passado, compreender o presente e preparar o futuro.

          “Só me resta recordar, com o coração vibrando, uma página grandiosa de brasileiros para brasileiros, uma heroica resistência camponesa ao coronelismo e à ação dos trustes estrangeiros, a gloriosa guerra cabocla”.

Esse texto faz parte de material de estudo do MCP sobre a rica história do povo brasileiro. República de Palmares, República Guarani, Canudos, Caldeirão, Mina do Morro Velho…

Entendo que, ao abrigar uma edição do maior Encontro das CEBs, seus membros, em especial, paranaenses e catarinenses, não podiam perder a oportunidade de fazer uma ligação reflexiva da experiência dos “pelados” com a realidade que vive o povo brasileiro hoje, em pleno século 21. Precisamos estudar o passado para compreender o presente e preparar o futuro. ( Chico Malta)

A Guerra Camponesa do Contestado

A lembrança de Canudos ainda estava muito viva e, frequentemente, artigos na imprensa comentavam aquela epopeia nordestina. Pondo por terra a teoria do determinismo geográfico, que atribuía à rebelião de Belo Monte às intempéries dos sertões do Nordeste, irrompe outra insurreição camponesa, num lugar inteiramente diferente, o oposto. “Aqui nos encontramos numa zona temperada, numa das áreas mais frias do país. Ninguém padece de sede, nada morre pela falta d’água, nem as gentes, nem as plantas, nem o gado”. Esta região, de 48.000 Km², situava-se no sul do país e era reclamada por dois Estados: Paraná e Santa Catarina. Por isso, o nome Contestado. A disputa foi para a via judicial e o Supremo Tribunal Federal (STF) só decidiu o litígio em 1916, concedendo ao Paraná 28.000 Km² e a Santa Catarina 20.000 Km². Mas não foi a disputa de limites que provocou a guerra camponesa do Contestado, que durou quatro anos: 1912 a 1916.

As Razões da Guerra

            Como em todo o país, as terras estavam nas mãos de poucos, apesar de serem devolutas. Havia alguns grandes fazendeiros, assim considerados os que tinham centenas de alqueires de terra e de cabeças de gado. O mais poderoso deles recebia o título de coronel e era chefe político do Município. Abaixo deles, os criadores, médios fazendeiros. Em seguida, os lavradores, pequenos posseiros, que viviam de roças de subsistência. Depois, os agregados, que trabalhavam gratuitamente nas roças, em troca de moradia e plantio de uma pequena roça para sua família. Por último, os peões, que alugavam a sua força de trabalho por salários irrisórios, muitas vezes por comida e pousada, apenas.

O papel dos Monges

O  povo tinha formação cristã, de predominância católica, fruto da colonização portuguesa. Mas os padres mantinham-se próximos dos fazendeiros e coronéis, cobravam para ministrar os sacramentos, como o batizado e o casamento. O vazio pastoral no meio do campesinato era preenchido pelos monges, semelhantes aos beatos nordestinos. Eram pobres, como os camponeses, peregrinavam sem nenhum pertence e, quando aceitavam algum donativo, repartiam-no com as pessoas mais necessitadas. Pregavam o evangelho, rezavam, benziam os doentes, receitavam remédios naturais, conseguindo curar muitas doenças, fato que era considerado milagre. Eram venerados como santos.

República dos Coronéis

            O governo da República, proclamada em 1889, transferiu para os Estados o controle das terras devolutas. Com isso, os coronéis e grandes fazendeiros tiveram facilidade de conseguir títulos falsos de propriedade nos cartórios locais e expulsar os pequenos e até médios posseiros das terras que ocupavam há anos. Os camponeses pobres – deserdados da terra, agregados, pequenos posseiros -, foram a base principal das lutas do Contestado. Eles não eram monarquistas. Não defendiam conscientemente a monarquia como forma de governo. Quando gritavam “viva o rei”, estavam se opondo à República, que veio agravar sua situação de pobreza, de penúria. Os monges reforçaram o sentimento antirrepublicano, pois consideravam a República “a lei do diabo”, por ter separado a Igreja do Estado e instituído o casamento civil.

            A expulsão dos posseiros e agregados tornou-se dramática a partir de 1906, com a chegada da Brazil Railway Company, do grupo Farquhar (Pensilvânia, Estados Unidos), que ganhou a concessão para construir a estrada de ferro São Paulo – Rio Grande do Sul. O Governo Federal doou à Railway 15 km de cada lado da estrada.

            Com a ferrovia, vieram as multinacionais madeireiras, que compraram terras aos grandes fazendeiros. Estes afastavam os camponeses, apresentando títulos falsos, e vendiam a terra às multinacionais estrangeiras: Southern Brazil Lumber, Hasa, Picoli, Hacker e outras; tudo isso com o apoio das autoridades brasileiras.  Um sentimento de revolta se desenvolveu entre os camponeses, como retrata uma inscrição na parede da estação ferroviária São João: “O Governo da República toca os filhos brasileiros dos terrenos que pertencem à Nação e vende para os estrangeiros. Nós, agora estamos dispostos a fazer prevalecer os nossos direitos”.

Do Rosário ao Bacamarte

Primeiro, eles se juntaram em torno do monge José Maria, numa área que Santa Catarina considerava como sua. O Governo aproveitou o pretexto da disputa territorial e anunciou que se tratava de uma invasão paranaense, para justificar a intervenção. O primeiro enfrentamento ocorreu no dia 22 de outubro de 1912 e resultou na morte dos chefes de ambos os lados: o monge José Maria e o coronel João Gualberto. Os camponeses não desanimaram, pois o monge havia anunciado sua morte e ressurreição. Dispersaram-se e se reuniram em outro local, em torno dos discípulos mais próximos de Zé Maria. Foram criando e multiplicando os chamados redutos, comunidades autônomas que seguiam as suas próprias leis.

A Vida Comunitária

            Quando iam para os redutos, os camponeses levavam o que tinham e colocavam à disposição de todos. Quem nada tinha não se sentia constrangido; participava igualmente da partilha dos mantimentos. “Do que um comia, tudo tinha que comer, tudo tinha que beber, todos eram irmãos”. Ninguém tinha o direito de vender nada para outro. Só as armas e montarias eram consideradas propriedades individuais. Podiam ser trocadas, nunca vendidas. Qualquer operação de compra e venda era reprimida severamente, até com a pena de morte.

            As lideranças não eram impostas. Assumiam o comando aqueles que melhor atendiam às necessidades concretas das comunidades. No início, os que sabiam rezar, benzer, indicar receitas eficientes, tinham carisma: Teodora, Manuel Ferreira dos Santos, Maria Rosa. À medida que se sucederam os ataques, a liderança foi assumida pelos mais dispostos, mais aguerridos, de maior criatividade na definição da estratégia e táticas de combate: Francisco Alonso, Adeodato Ramos.

O Fraco ia Vencendo o Forte

            Os redutos camponeses não tiveram paz. Os coronéis e os governos de Santa Catarina e do Paraná pediram a intervenção das tropas federais. A ordem foi exterminar os “pelados” (apelido pejorativo dado aos moradores dos redutos), que chegaram a ocupar 28.000 km² do Contestado, reunindo 20 mil pessoas. Os “pelados” derrotaram várias expedições do Exército, adotando a estratégia de guerra de guerrilhas e a tática das emboscadas. Quando havia enfrentamento direto, preferiam o uso dos facões. Oficiais do Exército comentaram as formas de luta dos camponeses. Setembrino de Carvalho, general que comandou o cerco final, comentou que “os revoltosos possuíam armas obsoletas e pouca munição para o exercício de tiros, por isso não atiravam bem. Mas eram muito hábeis no manejo do facão e sabiam aproveitar, como defesa, os acidentes do terreno, fazendo emboscadas e promovendo ataques pelos flancos”.

            Demerval Peixoto, companheiro de Setembrino, escreveu: “Eles não enfrentavam, senão quando certas condições os facilitassem ou forçassem a tanto. Naquele vaivém de avanços e recuos, pelas dobras caprichosas das selvas, varando florestas e atravessando rios, eram insensíveis ao fogo poderoso das Mauser magnificas. Enquanto cada disparo isolado de bacamarte alijava um soldado, os feixes de projéteis das descargas cerradas da tropa tinham como para-balas os troncos seculares das imbuias e dos pinheiros. Era um sistema singular de luta em que o fraco ia vencendo o forte”.

O Cerco Final

            Com os camponeses obtendo novas vitórias e cada vez um número maior de adesões, os latifundiários, as multinacionais e os Governos Estaduais e Federal se apavoraram. Chamaram um general experiente, Setembrino de Carvalho, que assumiu o comando das tropas em agosto de 1914, com sete mil homens à disposição, metralhadoras, armas pesadas e leves, munição à vontade. Setembrino não  expôs seus homens às emboscadas. Planejou um cerco lento, o isolamento da área liberada, pelos quatro pontos cardeais, com o fim de cansar os camponeses pela fome e impedir que entrasse qualquer ajuda em alimentos ou armas. Não tinha pressa; pela primeira vez no continente americano, utilizou aviões para fazer um levantamento aéreo da região. Periodicamente, lançava comunicados propondo a rendição, garantindo em troca a subsistência e depois a doação de terras, com títulos de propriedade.

    

Foi um ano e meio de cerco, ataques parciais e campanha pela rendição.  Atingidos pela fome, pelo isolamento, sem conseguir expandir seus domínios, a capacidade de resistência enfraqueceu e os camponeses foram aceitando a rendição. Os últimos redutos, Caçador e Santa Maria, ainda contavam com quatro mil pessoas que resistiram bravamente, mas foram derrotadas. Avalia-se em três mil o número de mortos, cinco mil casebres incendiados. Era o mês de dezembro de 1915. A guerra foi dada oficialmente como finda no início de 1916.

Promessas Falsas e Crueldade

            Quanto à promessa de terras para os que depusessem as armas, seu cumprimento foi exceção à regra. A maioria foi aprisionada e muitos assassinados de forma selvagem e covarde. O Jornal O Estado,  de Florianópolis, edição do dia 18.05.1915, relata: “Da cadeia de Canoinhas, eram retiradas diariamente levas de desgraçados que se tinham apresentado voluntariamente. Pedro Ruivo conduzia as vítimas para  fora da vila e na primeira curva do caminho, degolava-as. Os cadáveres ficavam insepultos. Os porcos e corvos tinham fome”.

Gloriosa Guerra Cabocla

            Assim como Canudos, Contestado provou a possibilidade de se construir uma sociedade diferente do capitalismo, que coloca como seu fim, o lucro máximo e como seu deus, o mercado.

            Pelo seu heroísmo, por sua bravura e determinação, os camponeses poderiam ter ganhado a guerra, como venceram várias batalhas. Isto não foi possível, dados os seus limites. O maior de todos, seu confinamento à uma região e a ausência de uma organização política capaz de conduzir o movimento de massas, definindo uma estratégia nacional de luta pela terra para quem nela trabalha, estabelecendo os avanços e recuos, a superação de princípios ingênuos, como os de não perseguir os inimigos em fuga, limitando-se à defesa por ocasião dos ataques, e de não utilizar armas do inimigo. Inúmeras metralhadoras tomadas das tropas ou por elas abandonadas, foram simplesmente destruídas.

            Difícil concluir de outra forma um texto sobre a guerra camponesa do Contestado, tendo lido o louvor escrito por Noel Nascimento, em sua obra A Casa Verde: “Só me resta recordar, com o coração vibrando, uma pagina grandiosa de brasileiros para brasileiros, uma heroica resistência camponesa ao coronelismo e à ação dos trustes estrangeiros, a gloriosa guerra cabocla”.

  • O que entendemos da experiência de Contestado?
  • Que lições tiramos para nossa prática nas Comunidades de Base?

Contribuição: Francisco de Assis Gomes ( Chico Malta)

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