Cristiane Costa, autora deste artigo, na Marcha das Águas, em Brasília, na finalização do FAMA.

“É preciso que toda a nação se una para defender a água.” (Kamuu Dan Wapixana, liderança indígena do povo Wapixana, que habita o leste de de Roraima, durante o FAMA 2018)

 

O Fórum Alternativo Mundial da Água (FAMA) ocorreu entre 17 e 22 de março em Brasília e reuniu comunidades, movimentos sociais, povos tradicionais, movimentos sindicais, ambientalistas e ativistas autorais para construir um caminho de resistência. Também teve a representação de 31 países que enfrentam as mesmas situações que o povo brasileiro para ter o direito à água, como rege a lei.

No mesmo período, simultaneamente, aconteceu o Fórum Mundial das Águas, proposto e organizado pelas grandes corporações, por governos e empresas interessadas na gestão dos recursos hídricos, entre elas a Ambev, a Nestlé e a Coca-Cola.

 

Testemunhos e denúncias

O FAMA foi a grande oportunidade para que as vozes que lutam pela água como um direito e não uma mercadoria (lema do evento) pudessem ser ouvidas. O evento começou na UnB e na segunda-feira (19) passou a ser no Parque das Cidades.

As atividades tiveram início no dia 17 na UnB), com a Assembleia Popular das Águas, que reuniu povos de muitas partes do mundo, que  apresentaram testemunhos de violações do direito à água. Um deles foi o que vem acontecendo com os povos afetados pelo desastre do Rio Doce (MG). A tragédia do derramamento de lama da Samarco destruiu o modo de vida do povo Krenak, que está sem moradia, doente, sem auxílio do Estado e nem dos responsáveis, tendo que lutar dia a dia para garantir os seus direitos.

Houve também dos desabafos e denúncias de como a produção de energia vem atingindo muitas comunidades.Os pescadores, indígenas e quilombolas denunciaram as hidroelétricas e a exploração de petróleo. O Ceará denunciou a exploração de 200 litros por segundo das águas do Rio Cauípe para um complexo industrial enquanto a comunidade não tem sequer água encanada.

E em Mato Grosso pontuaram as bacias do Pantanal e do Cerrado, que estão sendo atingidas pela hidroelétrica, em especial no Rio Xingu e Juruena. Essa tem sido uma luta de resistência e enfrentamento para barrar os projetos de lei e liminares contra o povo e em favor das grandes empresas.

 

Vaias e “Fora, Temer!”

O Ministério Público Federal estava presente na Assembleia Popular através da procuradora-geral da República, Raquel Dodge, acompanhada pelo ministro do Supremo Tribunal de Justiça, Herman Benjamim. Ela começou sua fala dizendo: “Estou aqui para ouvir a sociedade civil nas suas pretensões em relação à água”.

Plenária das Águas.

No entanto, foi interrompida algumas vezes por vaias e gritos de “Fora, Temer!”. A assembleia deixou bem claro o povo não irá parar de lutar por um direito natural e constitucional, que é o direito e o acesso à água.

Entre os dias 17 e 18 na UnB aconteceram as atividades políticas e culturais dos povos e lutas de resistência em todo o mundo. Esse momento foi chamado de “Atividades autogestionadas”, com organização e metodologia a critério das instituições que o organizaram.

 

Impactos de hidroelétricas em Mato Grosso

A atividade autogestionada sobre os Comitês de Bacias Hidrográficas, como espaço de controle popular e resistência frente às políticas desenvolvimentistas, contou com animação e canto das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) da diocese de Cáceres/MT, e coordenação do Fórum Mato-grossense de Meio Ambiente e Desenvolvimento (FORMAD).

Nesta atividade se pontuou as problemáticas do Rio Juruena, Rio Madeira, Rio Xingu, todos impactados pelas hidroelétricas em favor do setor financeiro. Também houve denúncia de que em alguns estados o poder judiciário está a favor dos grandes empresários. Identificou-se que muitas lideranças estão com medidas protetivas e proibidas de chegar próximo às obras/aos campos das hidroelétricas para manifestarem e exigirem o direito à água, o direito  à vida.

 

Água, elemento sagrado

Dentre as temáticas propostas no FAMA, houve a Tenda Inter-Religiosa, organizada pelo Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC). A coordenação foi da pastora luterana Romi Bencke. No domingo (18) o tema discutido foi o seminário “Água como elemento sagrado: a crise hídrica e a vocação profética das tradições de fé”.

Entre os debatedores estavam Riccardo Petrella, economista e fundador do Comitê Internacional pelo Contrato Mundial da Água; Dinesh Suna, coordenador da Rede Ecumênica da Água do Conselho Mundial de Igrejas (CMI); Vicenta Mamani, teóloga aymara; Marcelo Barros, biblista, escritor e teólogo que, na oportunidade, lançou o livro “Água nossa de cada dia”; Francisco Ngunzetala, representante do candomblé; e Léo Heller, relator especial das Nações Unidas para o direito humano à água e ao saneamento.

Tenda Inter-religiosa.

Vicenta Mamani apresentou a cosmovisão dos povos andinos em relação à água. “Consideramos a água como algo sagrado, ela tem vida.” Já o biblista Marcelo Barros fez uma analogia etimológica da palavra resistência. “A palavra de ordem nesse Fórum tem sido resistência que, etimologicamente pode ser re-existência, voltar a existir, como se tivéssemos saído da vida e, agora, queremos voltar. Isso no cristianismo se chama conversão”.

E acrescentou: “Nesse sentido, temos muito a aprender com as religiões tradicionais indígenas e africanas. Elas estão há 500 anos no Brasil resistindo a todo um processo de opressão e dominação. Elas não têm sido outra coisa que não resistência”.

E ainda salientou que as religiões tradicionais podem ensinar muito sobre a água, mas que é preciso abertura para o ecumenismo de fato acontecer. “Enquanto cristão eu preciso estar atento ao que o outro me diz. Precisamos, portanto, estar abertos ao que essas tradições de fé têm a nos ensinar”.

Entre os temas levantados na tenda, destaque para a democratização do acesso à água; mudanças climáticas; e água como direito, não mercadoria.

 

Luta pela água sob viés feminista

De fato, precisamos nos organizar e nos engajar na luta pela água. Hoje alguns de nós achamos que temos agua em abundância. Não nos enganemos. Em Cuiabá (capital de Mato Grosso), por exemplo, para termos o acesso à agua devemos pagar por ela. Já transformamos nossa água em produto de venda e aceitamos sem sequer brigar por esse direito.

E até quando vamos permanecer nessa inércia? Hoje nos vendem água, que é um bem natural e comum para os povos; daqui a pouco teremos que pagar pelo ar que respiramos, pois até nosso Aquífero Guarani, nosso maior reservatório de água doce, o presidente ilegítimo pretende vender.

 

Em todos os momentos do FAMA recordou-se dos assassinatos políticos de Marielle Franco e Anderson Gomes, recordando também todas as mulheres e homens que tombaram na luta pela terra, pela água, pela vida, pelos DIREITOS HUMANOS. Houve presença expressiva de mulheres, que também realizaram durante o evento a Assembleia das Mulheres, na qual afirmaram a importância do seu protagonismo na luta contra a mercantilização da água e a necessidade de se pensar este tema com um viés feminista.

Uma mística em memória de diversas mulheres lutadoras assassinadas deu o tom para o início da assembleia. Entre as homenageadas estavam Marielle Franco, Berta Cáceres, Margarida Maria Alves e tantas outras. As mulheres ressaltaram a importância de sua presença na luta em defesa da água, mas também pautaram a importância da construção de um novo projeto de sociedade, que se contraponha às propostas do capital e considere a dimensão do trabalho reprodutivo, aliando a perspectiva anticapitalista à visão feminista.

 

A profecia continua de pé

No último dia o evento encerrou-se com a Marcha pelas Águas, que percorreu as ruas de Brasília, onde se fez uma parada na Torre de TV. Em seguida na sede da TV Globo e, por fim, a última intervenção da marcha foi feita em frente ao centro de eventos de Brasília, no qual acontecia o fórum das grandes corporações. Lá o recado foi dado: “A luta continua! Nossa água não é mercadoria, é vida”.

Toda a marcha foi seguida por um grande aparato policial e a cavalaria de Brasília. Uma marcha bem organizada e uma marcha somente com pessoas e famílias de bem. Aí me pergunto: “Era necessário deslocar tantos policiais para intimidar o povo brasileiro?”. Só esqueceram que o povo brasileiro é lutador e, como dizia dom Hélder Câmara, “Não deixei cair a profecia”. E assim estamos fazendo.

Para concluir, o evento foi belíssimo, com muitas mesas de discussão, denúncias, testemunhos. No entanto, faltou pensar estratégias para dialogar, mas também para fazer o enfrentamento direto de forma organizada contra um Estado que não representa o povo brasileiro.

Que a luta pela água e pela vida avance! 

Por Cristiane Costa, coordenadora do programa de Formação Política Cidadã do Centro Burnier Fé e Justiça (Cuiabá, MT)