Shadow

Sobre os silêncios da Conferência Episcopal Latino-americana de Puebla, em 1979

“Não optar no momento em que se deve fazê-lo, silenciando-se, omitindo-se, configura-se verdadeira opção.”

A Igreja conheceu, ao longo dos séculos, o testemunho de filhos que deram a vida pela fé, tanto nas missões quanto em momentos conflituosos nos próprios países cristãos. Toda vez em que entravam em jogo explicitamente a defesa da Igreja ou de algum de seus dogmas, a clara perseguição ao fato de ser cristão, a reação violenta contra a evangelização e casos semelhantes, Roma não hesitou em considerar as vítimas de tal situação como mártires e canonizou não poucas delas.

A América Latina viveu situação única. Implantaram-se regimes repressivos e criminosos para defender o capitalismo na fase furiosa da implantação e desenvolvimento. Alguns ousaram invocar, no jogo ideológico, defesa da “civilização cristã”, como se o ataque ao capitalismo viesse do socialismo enquanto ateu. Gerou-se ambiguidade semântica no jogo das palavras.

Agentes de pastoral leigos ou religiosos/as, sacerdotes e alguns bispos assumiram atitudes proféticas de crítica ao sistema vigente. E pagaram com a vida tal ousadia. Entretanto, insinuava-se em meios eclesiásticos, por influência ideológica da direita, que essas pessoas foram perseguidas por razões e opções políticas e ideológicas marxistas. E, portanto, não passavam no exame dos critérios de martírio. Chocante parecia conferir-lhes o título de mártir já que tal acontecia em países católicos.

Por sua vez, outros reconheciam neles verdadeiros mártires. Em torno de suas pessoas, elaborou-se verdadeiro martirológio. As agendas latino-americanas, editadas sob a orientação do claretiano José María Vigil, divulgam amplamente a lista do “martirológio latino- americano”. As celebrações das CEBs voltam inúmeras vezes ao tema dos mártires na América Latina. Teólogos trabalharam tal tema. Leonardo Boff ampliou o quadro também para aqueles que não participavam da mesma fé cristã, chamando-os mártires do Reino de Deus.

A fim de valorizar tal realidade fundamental para a fé cristã, esperava-se que Puebla reconhecesse com gratidão, esperança e coragem o testemunho martirial de tantos cristãos do Continente que morreram por amor à justiça, na defesa do pobres. Teria a força profética de desmascarar o discurso dos regimes militares que se arvoravam em defensores da fé cristã. Mais: acusá-los-ia de ímpios, porque assassinavam cristãos, assemelhando-se aos inimigos da fé ao longo da história.

Puebla não fez tal opção. Preferiu o silêncio. Aludiu ao fato de os governos se confessarem cristãos e mesmo assim abusarem do poder repressivo e da força (Puebla, n. 42). Assinala o fato da perseguição que a Igreja sofreu por causa do testemunho de sua missão profética até a morte de alguns membros.

Também o documento de Aparecida não ultrapassou a barreira do som. Refere-se ao “testemunho de mártires de ontem e de hoje em nossos povos” (Aparecida, n. 140). Outras menções são genéricas (Aparecida, nn. 220, 275) ou propositivas (Aparecida, n. 396). Falta-nos ainda reconciliar-nos com a memória dos nossos verdadeiros mártires que empurpuraram o Continente, explicitando-lhes os nomes e o contexto histórico em que testemunharam a fé e o amor aos pobres por sua libertação.

José Comblin vê, nesse ocultamento do martírio, o fato de as elites quererem desfazer-se da responsabilidade histórica em face dos crimes que cometeram. Só lembrá-los ofende as classes dirigentes de muitas nações.

Choca-nos ainda mais o pesado silêncio sobre a teologia latino-americana da libertação. Depois de séculos cultivando uma teologia-reflexo, a América Latina produz teologia própria, original, encarnada no contexto continental, escrita com vigor em obras de valor, reconhecidas pela teologia mundial. E o episcopado do Continente a desconhece como se não existisse. Beira o escandaloso, se não houvesse razões vindas, não do horizonte da verdade nem da objetividade, mas dos receios, das pressões superiores, da pecha de marxista, da reação negativa de muitos bispos e de dicastérios romanos.

Nem Aparecida conseguiu superar tal tabu de usar a expressão “Teologia da Libertação”. No entanto, o conjunto da Conferência, diferentemente de Puebla, mostrou-se aberto à sua contribuição por meio de dois sinais. A presença do Grupo Ameríndia, que organizou a presença dos teólogos da libertação, atuou em clima favorável de conhecimento e consentimento do Celam, prestando serviços a muitos bispos e a outros participantes da Conferência com “legitimidade e visibilidade”, embora com “papel muito discreto, secundário”, na linguagem do coordenador do grupo, Sérgio Torres. E outro sinal foi a realização de um Seminário latino-americano de Teologia na cidade circunvizinha de Pindamonhangaba promovido pelo Conselho Nacional do Laicato do Brasil. Com mais de 200 participantes, nele estiveram presentes teólogos/as ligados à linha da libertação.

Voltando aos anos de Puebla, o Continente latino-americano ardia, naquelas décadas, em lutas violentas entre a repressão do Estado e os movimentos sociais. Aí estava grande parte do melhor de nossa juventude. Não faltaram movimentos que nasceram à sombra da Igreja no mundo estudantil, operário e rural. Na dificuldade de discernir entre os movimentos que optaram pela via armada revolucionária de clara conotação marxista e os que carregavam em si os germes da futura sociedade solidária, o documento fechou-se em comprometido silêncio. Puebla refere-se vagamente “a criar livremente organizações para defender, promover seus interesses, para contribuir responsavelmente para o bem comum”, citando João Paulo II (Puebla, n. 1244). Não toca realmente no problema dos movimentos sociais, populares e não populares. Vários deles estavam então bem próximos da pastoral da Igreja.

 João Batista Libanio

Fonte:
LIBANIO, João Batista. Nas pegadas de Medellín: as opções de Puebla. Cadernos Teologia Pública, IHU on line, Ano V, Nº 37, 2008

Fonte: www.ihu.unisinos.br

Contribuição Edward Guimarães

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