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UM SÍNODO QUE INCOMODA A POUCOS E CONFIRMA A MUITOS.

 Por P. Adelson Araújo dos Santos SJ

Uma análise teológica do Instrumentum laboris, em preparação ao Sínodo especial para a região Pan-Amazônica

Às vésperas do início de um dos eventos mais importantes da Igreja Católica para este ano – O Sínodo especial sobre a Amazônia – algumas poucas vozes têm levantado dúvidas sobre a catolicidade deste sínodo, uma vez que o seu instrumento de trabalho estaria repleto de erros teológicos e de heresias. E há também quem esteja acusando O Papa Francisco de promover um evento político para atingir determinados governos.
Com o presente artigo, pretendemos demonstrar que, ao contrário, o documento preparatório ao Sínodo, traduz uma clara e límpida expressão da fé e da doutrina cristã, teologicamente fundamentadas na Sagrada Escritura e no magistério dos Papas, que perpassa todo o conteúdo desenvolvido pelos redatores pre-sinodais. Ao mesmo tempo, buscaremos mostrar que a convocação deste sínodo não é fruto de um gesto isolado do atual Papa, mas se harmoniza coerentemente com a posição que a Igreja historicamente tem assumido em favor da Amazônia, dos seus povos originários, da criação e da vida em geral e do diálogo intercultural com as diferentes realidades onde a evangelização tem chegado, como passaremos a analisar.

A ação criadora de Deus e o papel do ser humano, segundo o Instrumentum laboris Dizia o cardeal Tomás Spidlík que os antigos gregos descobriram a Deus contemplando a beleza do cosmos, de modo que pelas criaturas se chegasse ao Criador delas, sem que com isso se afirme que as criaturas são Deus. Mas, como ensina a teologia da Criação, uma vez que cada uma dessas criaturas existe pela bondade e pela beleza de quem as criou, elas expressam à sua maneira algo do seu Autor. Assim que, o nosso planeta e todos os seus habitantes são expressão viva da obra criadora de Deus e do amor que o Criador tem por cada ser criado, sem que haja confusão ou fusão entre um e outro.

Ora, não é outra a interpretação teológica que o Instrumentum laboris faz quando afirma que “ao contemplar a formosura do território amazônico, descobrimos a obra mestra da criação do Deus da Vida. Seus intermináveis horizontes de beleza sem limites são um cântico, um hino ao Criador” , para em seguida defender que a Igreja na Amazônia seja uma “Igreja com uma clara opção pelos (e com os) pobres, e pelo cuidado da criação” , levando inclusive a uma forma de “conversão ecológica”, como chama o Papa Francisco , o que implica no “reconhecimento da cumplicidade pessoal e social nas estruturas de pecado, desmascarando as ideologias que justificam um estilo de vida que agride a criação”5.
Seria, portanto, total distorção dos fatos querer enxergar alguma forma de panteísmo nestas afirmações acima recordadas. Quem assim o fizesse estaria se colocando em frontal desobediência para com a sã doutrina e o magistério da Igreja, dos quais o atual Vigário de Cristo é exímio continuador. De fato, durante o seu pontificado, também Bento XVI não deixou de alertar o mundo e a Igreja para a importância do cuidado da criação, não por querer divinizá-la, mas por saber que desse cuidado depende o próprio desenvolvimento e sobrevivência da principal das criaturas, o ser humano. Com efeito, para o Papa teólogo alemão, “a terra é um dom precioso do Criador, que delineou os ordenamentos intrínsecos, indicando-nos assim os sinais orientativos que devemos respeitar como administradores da sua criação. É precisamente a partir desta consciência, que a Igreja considera as questões ligadas ao meio ambiente e à sua salvaguarda intimamente vinculadas ao tema do desenvolvimento humano integral”. Assim, em total sintonia com o texto que seria posteriormente escrito em preparação ao Sínodo sobre a Amazônia, ensina o magistério de Bento XVI que “a Igreja não apenas está comprometida em promover a defesa da terra, da água e do ar, oferecidas pelo Criador a todos, mas sobretudo compromete-se em proteger o homem contra a destruição de si mesmo”, para concluir que “quando a ‘ecologia humana’ é respeitada dentro da sociedade, beneficia também a ‘ecologia ambiental’” .

É inequívoca, portanto, a fundamentação teológica do Instrumentum laboris quando se posiciona a favor da defesa da criação, vendo nas criaturas a presença Daquele que as criou, a começar pelo próprio ser humano, cujo coração continua sendo o centro do cosmos e da história, uma vez que somente ele foi criado à imagem e semelhança de Deus (Gn 1, 26-27). De fato, o documento recorre várias vezes à Sagrada Escritura para sustentar que a criação se apresenta como manifestação da vida, sustento, possibilidade e limite (cf. Gn 1, 1-2.4a), dentro da qual o ser humano é convidado a relacionar-se com as coisas criadas, do mesmo modo como Deus o faz, cultivando e guardando o jardim (cf. Gn 2, 4b-25). Esta relação de reciprocidade responsável entre o ser humano e a natureza, recorda o Papa Francisco , supõe uma atitude de humildade por parte do homem e da mulher, ao tomarem consciência de que não são donos absolutos da criação, mas meros administradores (cf. Gn 3, 3). São palavras que, longe de serem heréticas, nos remetem naturalmente ao ensinamento dos Padres da Igreja9, para os quais a criação é fruto da vontade divina, sendo, portanto, uma força operativa, uma energia, cabendo ao ser humano colaborar com essa força, agindo sempre em synergia com o Criador.

Voltando ao magistério do Papa Bento XVI, o mesmo confirma tudo o que acima se disse, ao afirmar que “a criação, matéria estruturada de modo inteligente por Deus, está confiada à responsabilidade do homem, que é capaz de a interpretar e de voltar a modelála ativamente, sem se considerar seu senhor absoluto. De fato, o homem é chamado a exercer um governo responsável para conservar a criação, fazê-la frutificar e cultivá-la, encontrando os recursos necessários para uma existência digna de todos” . Fiel ao Magistério da Igreja, o Instrumentum laboris retoma esse chamado à responsabilidade do ser humano para com as criaturas divinas, quando ao explicar a noção de “bem viver”, chama a atenção para a centralidade do caráter relacional-transcendente dos seres humanos e da criação, a partir da sua própria maneira de se organizar, que começa pela família e a comunidade, “abrangendo uma utilização responsável de todos os bens da criação” . Isso em nada diminui ou extingue a personalidade individual e a liberdade humana, mas apenas ressalta que “a vida é um caminho comunitário onde as tarefas e as responsabilidades se dividem e se compartilham em função do bem comum. Não há espaço para a ideia de indivíduo separado da comunidade ou de seu território” . Enfim, encontrar a Deus na natureza é perceber o mundo como criação, onde o homem contempla os traços de Deus. A criação se torna, assim, o lugar da sua busca de Deus e do seu encontro com Deus, que o conduz a seguir sua rota de peregrino, em atitude de respeito para com o Autor e toda a sua obra.

Quanto ao fato de o documento de trabalho do Sínodo acolher certas expressões da cosmovisão e espiritualidade indígena, que alguns poucos consideram apenas superstições pagãs, mais uma vez não faltam fundamentos doutrinários e históricos sólidos para justificar tal inclusão. Com efeito, quem tem um mínimo de conhecimento de história da Igreja sabe que foi conseguindo expressar-se, ao longo dos séculos, em linguagens diversas, que o cristianismo teve força para fazer-se “tudo a todos” (1Co 9, 22). A inculturação do Evangelho foi, assim, uma realidade desde o início da evangelização, enquanto “íntima transformação dos autênticos valores culturais por meio da sua integração no cristianismo e o enraizamento do cristianismo nas várias culturas” . Portanto, desde o seu nascimento o cristianismo tocou e se deixou tocar por outras culturas, colhendo dessas elementos e características, como recorda o cardeal Spidlík, ao ensinar que os antigos gregos contribuíram para que o homem fosse visto como inseparável do universo e da sua ordem, enquanto os eslavos, por sua vez, “conseguiram dar um significado cristão às velhas crenças populares sobre a Terra úmida, mãe terna de seus filhos humanos, que devem ter por ela afeto e amor” .

Presente como fato histórico e não apenas conceitual desde as comunidades cristãs primitivas, a inculturação se mostrou, assim, uma forma inteligente e experimentada de inserção da mensagem cristã em diversas áreas do globo terrestre, entendida em sentido sócio antropológico como processo de diálogo com o universo simbólico dos diferentes povos com os quais o Evangelho entrou em contato . Ora, se assim foi desde o início, sendo isso o que permitiu a expansão e solidificação do cristianismo nesses mais de dois mil anos de existência, qual o motivo de julgarmos e condenarmos os missionários que na Amazônia buscam conhecer, dialogar e integrar toda a riqueza e sabedoria milenar da religiosidade dos povos originários que ali habitam há milhares de anos?

De fato, citando a Redemptoris Missio (n. 52), São João Paulo II, quando como Papa visitou o Brasil, falando a lideranças de 37 nações indígenas, afirmou explicitamente que essa é a missão da Igreja e o ideal de todos os missionários: “Inserir a Igreja nas culturas dos povos, encarnar o Evangelho na vida e, ao mesmo tempo, introduzir a todos com as suas culturas, na própria comunidade da Igreja, transmitindo-lhes sua verdade, assumindo, sem comprometer de modo nenhum a especificidade e a integridade da fé cristã, o que de bom existe nessas culturas, e renovando-as a partir de dentro” . Impressiona a semelhança de abertura existente nas palavras do santo Papa João Paulo II e do atual sucessor de Pedro, para quem igualmente “cada cultura e cada cosmovisão que recebe o Evangelho enriquece a Igreja com a visão de uma nova faceta do rosto de Cristo”. Por isso que, ao se encontrar com os povos indígenas da Pan-Amazônia em Puerto Maldonado, o Papa Francisco reafirmou que “a Igreja não é alheia aos vossos problemas e à vossa vida, não quer ser estranha ao vosso modo de viver e de vos organizardes.
Precisamos que os povos indígenas plasmem culturalmente as Igrejas locais amazónicas”.

Como vemos, diferentemente daqueles que tratam de forma preconceituosa a cultura indígena, vendo-a apenas como mera “superstição pagã”, tanto João Paulo II como Francisco são sábios o suficiente para reconhecer a riqueza que o contato e o diálogo com outros povos e culturas não-cristãs, como são aquelas dos povos indígenas da Amazônia, não só não põe em risco a nossa identidade, como pode até mesmo fortalecê-la, ao nos recordar valores e tesouros espirituais presentes, mas muitas vezes esquecidos, dentro da nossa própria fé e experiência de Deus . Portanto, se é verdade tudo o que os Papas acima citados disseram, como de fato o é, agora dissonantes com a voz da Igreja são aqueles incapazes de acolher, dialogar e respeitar as cosmovisões e tradições religiosas dos povos indígenas pan-amazônicos, como bem faz o Instrumentum laboris.

A centralidade de Jesus Cristo na mensagem do Instrumentum laboris

Entre as vozes críticas ao documento de trabalho preparado para o Sínodo da Amazônia, se levanta também a acusação de que a figura de Jesus Cristo haveria sido praticamente esquecida pelos autores dos temas que são aí abordados. Mais uma vez, uma simples leitura acurada e imparcial do texto é suficiente para perceber que tal afirmação não se sustenta em dados verídicos. Com efeito, logo no início da redação se vê que o desejo de se iniciar um processo de escuta e discernimento dos novos caminhos para a Igreja na Amazônia visa exatamente ajudá-la a discernir como essa “anunciará o Evangelho de Jesus Cristo durante os próximos anos”19. Em seguida, ao fazer referimento ao documento conclusivo da assembleia dos bispos da América Latina, ocorrido em 2007 em Aparecida (DAp., 95), se recorda que o serviço pastoral da Igreja deve ser voltado também “à vida plena dos povos indígenas [a qual] exige que anunciemos a Jesus Cristo e a Boa Nova do Reino de Deus, denunciemos as situações de pecado, as estruturas de morte, a violência e as injustiças internas e externas, e fomentemos o diálogo intercultural, inter-religioso e ecumênico”. Mas, qual o critério que devemos usar para saber o que anunciar e denunciar? O próprio Instrumentum laboris responde afirmando: “Procuremos discernir este anúncio e esta denúncia à luz de Jesus Cristo, o Vivente (cf. Ap 1, 18), plenitude da revelação (cf. DV, 2)” . Mais cristológico do que isso, impossível!

A centralidade de Jesus Cristo no documento se faz evidente igualmente quando aborda a importância do diálogo que deve haver entre a fé cristã e outras crenças, em um mundo multiétnico, multicultural e multirreligioso como é a Amazônia. Também aqui o referencial e modelo desta práxis dialógica é sempre a pessoa de Jesus, uma vez que Nosso Senhor “foi um homem de diálogo e de encontro… A partir de sua encarnação, o encontro com Jesus Cristo se realizou sempre no horizonte de um diálogo cordial, histórico e escatológico” . De fato, diferente das posturas farisaicas de ontem e de hoje, incapazes de se relacionar sem julgar e condenar os outros, o Filho de Deus encarnado continua sendo o modelo perfeito de abertura e acolhida do outro. Sobre isso, recordemos a belíssima descrição que faz de Jesus o grande exegeta e teólogo Carlo Maria Martini, cardeal arcebispo de Milão:
“Jesus fez visível o amor de Deus através da sua vida e de suas palavras… Jesus viveu de forma muito simples para estar perto de todos. Também escolheu a vida itinerante a fim de estar disponível para todos os homens e não levantar nenhum muro em torno a si mesmo. Jesus saiu ao encontro dos estrangeiros. E o mais importante: podia dar a outros seu amor. Seu amor tomava a ofensiva. Ele não somente se sentiu bem em sua casa, mas ia de aldeia em aldeia, de cidade em cidade. Ia aos lugares onde havia conflitos, onde tinha que aplicar o seu amor para que pudesse haver paz entre pagãos e judeus, entre romanos e Israel. Ele se arriscou a entrar em conflitos e mostrou que o amor de Deus tem que modificar o mundo, modificar esses conflitos” .

Na contramão dessa práxis de Jesus estão as posturas defensivas e fechadas a qualquer diálogo, como se ele fosse incompatível com a evangelização. Por isso, criticam a abertura que o Papa Francisco tem assumido, ao conclamar que sejamos uma Igreja em saída. Para as comunidades eclesiais e os povos da Amazônia, ao contrário, é precisamente por meio do diálogo que se encurtarão as distâncias e haverá melhores dias para todos, como recorda o Instrumentum laboris: “O diálogo é o método que se deve aplicar sempre, para favorecer o bem viver de todos. As principais questões da humanidade que sobressaem na Amazônia não encontrarão soluções através da violência nem da imposição, mas sim mediante o diálogo e a comunicação”23.

Novamente, recorremos às palavras do Cardeal Martini para reafirmar que respeitar, acolher e dialogar com culturas e religiões diferentes, sejam aquelas do mundo grego do início do cristianismo ou as atuais do mundo indígena da Pan-Amazônia, em nada diminui a nossa identidade cristã, mas antes torna os cristãos mais parecidos com Aquele, de quem são chamados a serem discípulos e seguidores:
Se me sinto separado do outro e penso que ele é mal e eu bom, que ele é fraco e eu forte, então não o amo. Se sei que todos estamos no mesmo saco, essa ideia desperta em mim um sentimento de compaixão e de amor… Jesus cita a Sagrada Escritura, nosso Antigo Testamento, ao dizer: Temos que proteger os fracos, perdoar os culpados. Temos que aprender a resolver conflitos, a dissolver inimizades, a construir a paz… Todas as Igrejas, todas as religiões têm como meta fazer o bem no mundo, fazer que o mundo se torne mais luminoso. E Jesus os ajudará a realizar melhor sua missão no mundo” .

Tudo o que acima refletimos nos leva a concluir que, indubitavelmente, “o Sínodo da Amazônia é um sinal dos tempos no qual o Espírito Santo abre novos caminhos que discernimos através de um diálogo recíproco entre todo o povo de Deus”, não havendo razão para temer pela sua realização, nem muito menos combate-lo. Pois, como vimos, o documento preparatório deste encontro, por nós aqui analisado, está pautado solidamente na doutrina emanada da Sagrada Escritura, da Tradição e do Magistério da Igreja, especialmente dos nossos últimos Papas. A busca de novos caminhos de evangelização para as igrejas amazônicas e o fortalecimento de uma ecologia integral em nada nos afastam, portanto, da nossa identidade e missão, pois ambas visam tornar a nossa casa comum, que é todo o planeta, em um mundo melhor, mais parecido com o projeto de Deus para a sua criação.

Às vésperas do início do Sínodo Especial sobre a Amazônia, unamo-nos em oração para que ele “seja uma expressão concreta da sinodalidade de uma Igreja em saída, para que a vida plena que Jesus veio trazer ao mundo (cf. Jo 10, 10) chegue a todos, especialmente aos pobres” e às populações indígenas da Amazônia, a quem devemos estimar e respeitar, como faz o Papa Francisco e como nos recordam as palavras de seus antecessores: “O Papa queria dizer a todos os índios do Brasil o amor que Deus e a Igreja lhes dedicam. É o mesmo amor com que Jesus Cristo, Filho de Deus e Fundador da Igreja, ama a todos os homens” .

Autor:
P. Adelson Araújo dos Santos SJ
Sacerdote jesuíta, nascido em Manaus, AM
Doutor em Teologia Espiritual
Professor na Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma

Veja em pdf com referências usadas pelo autor

Artigo sobre o Instrumentum Laboris(1)

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